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sábado, 30 de outubro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - V  


Apelamos para Deus como refúgio, ajuda ou um remédio qualquer, e assim, a igreja, os sacerdotes e as religiões, adquirem enorme significado, quando, na realidade, nenhum significado têm. Para atender nossas íntimas necessidades psicológicas, fazemos uso de tudo, das pessoas, máquinas, técnicas, sem que tenhamos nenhum amor por elas; só por nosso interesse egoísta. E assim é nosso dia-a-dia. Daí porque há tanto conflito e sofrimento em nossa vida.

Só existe amor quando não há nenhuma forma de utilização, exploração ou dependência. As exigências psicológicas, com sua inconstância e sua eterna busca, que levam à substituição de uma dependência por outra, de uma crença por outra, de um compromisso por outro, é a própria essência do “eu” (é o que forma e o que é o “eu”). Adotar uma ideia, um método, um dogma, ou pertencer a alguma seita - o que mostra, como se supõe, desprendimento e altruísmo -, é a origem e a essência do eu. Isso não passa de disfarce, de máscara. O homem atinge a maturidade ao libertar-se de todas essas exigências psicológicas. Dessa liberdade nasce uma paixão pura; pura porque livre de motivo e de busca de recompensa.

A maioria questiona apenas o superficial. Outros vão mais longe, e outros negam tudo. Contestar certos fragmentos da existência é relativamente fácil: a igreja com seus deuses, a autoridade e o poder que dela emanam, o político, com suas atividades egocêntricas. Podemos ir longe na contestação de valores que aparentam ter importância, como as relações sociais, os absurdos praticados pela sociedade e pelos governos, o conceito do belo firmado pelos críticos ou pelos que julgam saber. Mas, é possível deixar de dar atenção, abandonar tudo isso e ficarmos sozinhos, não no sentido de isolamento e frustração, mas por termos compreendido o seu significado, sem esforço ou sentimento de superioridade, na certeza de termos esgotado a questão, de termos investigado cada coisa até o fim.

E, como é importante negar! Negar sem desejar recompensa, sem alimentar a amargura ou a esperança nascidas da experiência e do saber. Negar é ficar só, sem preocupar-se com o amanhã. É fundamental ficar só, livre de qualquer padrão ou método, qualquer experiência, qualquer dependência; é o único meio de libertar a consciência da escravidão ao tempo. Rejeitar a experiência e o conhecido é penetrar no desconhecido. O negar é de efeito imediato, explosivo; não se trata de exercício intelectual; no próprio ato de negar há energia, energia da compreensão, energia que jamais cede diante do medo e do conformismo. É devastadora a negação; ela não mede consequências, nem exprime uma reação, não sendo, pois, o oposto da afirmação. Na contestação não há escolha e, assim, ela não surge do conflito dos opostos. Escolha é conflito e vem da imaturidade. A nossa libertação do conhecido decorre da completa negação do pensamento, da ideia e da palavra, do ‘eu’. O amor nasce da total negação e da total recusa à emoção, à imaginação e ao sentimentalismo.

Pouca gente admira as montanhas, as flores, as nuvens, o pôr do sol, as estrelas, a lua. A maioria olha, sem ver, e passa adiante. O ato de ver exige humildade e inocência. Lá está aquela montanha iluminada pelo sol, e poder vê-la como se jamais a tivéssemos visto, vê-la com o olhar livre do passado, livre da memória acumulada, é uma maravilhosa experiência. A palavra experiência aqui é inadequada, pois é, erradamente, impregnada de emoção, saber, reconhecimento e da idéia de continuidade; mas não se trata de nada disso. Referimo-nos a alguma coisa totalmente original, nova. Para vermos o novo é necessária a humildade jamais contaminada pelo orgulho ou vaidade; a humildade que faz surgir a inocência.

A humildade não é uma virtude cultivável, nem pertence ao campo da moral social ou da respeitabilidade. Mesmo os santos a desconhecem, pois aceitam louvores por sua santidade. Aquele que adora uma imagem ou um ser mais elevado não é humilde pois está, sempre, a pedir, a implorar, a mendigar. O acúmulo de bens, experiências ou aptidões, nega a humildade.

O ato de aprender está livre do processo de acumulação, mas a aquisição de conhecimentos não está. O saber, o adquirir conhecimentos, é de natureza mecânica; o aprender é de instante a instante. Havendo comparação (avaliação, medição, julgamento, conceituação, classificação), cessa o ato de aprender, que é fruto de percepção imediata e instantânea, fora dos limites do tempo, e que, por ser instantâneo, não tem a interferência do eu.

A humildade não admite comparação; é impossível cultivá-la e não se pode falar em mais ou menos humilde. A moral e a técnica podem ser cultivadas e avaliadas. Mas a humildade, como o amor, está além dos limites do cérebro e, portanto, nele não pode estar; está além do ego.

A meditação é fenômeno extraordinário desde que seja sem direção e sem propósito, sem causa ou motivo, sem método preestabelecido (espontânea, sem esforço e inconsciente). É a morte sem retorno, ação devastadora que atinge todos os recantos mais secretos do pensamento e da memória. Na meditação o tempo cessa; não existe o amanhã. Isso é meditação e não essa tola e calculista atividade do cérebro que busca segurança. A meditação destrói toda segurança. Nela existe grande beleza, não a beleza criada pelo homem ou pela natureza, mas a beleza vinda do vazio, de onde surgem todas as coisas. Toda e qualquer operação mental, dentro do espaço-tempo, tem de cessar. Meditação significa risco e destruição para aqueles que querem levar uma vida acomodada, superficial, de ilusão e sonho.

A morte é inevitável. Podemos tentar esquecê-la, racionalizá-la, ou acreditar na reencarnação ou na ressurreição. Mas, quer busquemos refúgio nas religiões, nos livros, ou onde for, ela estará presente em todos os momentos da vida. É necessário conviver com a morte para conhecê-la. Nosso medo impede que ela se revele. De nada serve o acúmulo de conhecimentos. Há sempre um limite, mas não para a morte. Amar não significa aceitarmos a morte; não podemos habituar-nos com a destruição. Para nós é impossível amar o desconhecido (pois não o conhecemos). Mas, na verdade, nada conhecemos, nem a nós mesmos, nem os seres mais íntimos. Entretanto, é preciso amar o desconhecido. Porém, só amamos aquilo que nos traz segurança e conforto. Temos aversão à insegurança e ao desconhecido, pois temos medo deles. Podemos apreciar o perigo, dar a própria vida por alguém, matar em defesa da pátria, mas nada disso é amor. Há sempre, nessas ações, o desejo de recompensa, de reconhecimento e, sobretudo, de satisfação pessoal.

Mas, sabemos o que é o amor? Nós conhecemos a sensação de ter alguém, a emoção, o desejo, o sentimento e o processo mecânico de pensar nesse alguém, mas nada disso é amor. Dizemos amar nosso marido, nossa esposa, os filhos; odiamos a guerra ao mesmo tempo em que a fazemos. Nosso amor contém ódio, ciúme, inveja, ambição e medo; logo, isso não é amor. Amamos o poder, a fama, males que corrompem. Mas, o amor é o desconhecido com sua extraordinária beleza. Penetrar nesse desconhecido significa não mais estar no desespero ou na dúvida. É morrer para o passado e, portanto, viver na total incerteza do amanhã, pois saberemos que tudo é incerto. Para o amor e a morte não há continuidade. Somente a memória e o quadro na parede têm continuidade mas isso, como acontece com todas as coisas mecânicas, produz desgaste, dando lugar a novos quadros e novas memórias. Continuidade é deterioração, e esta não pode conter a morte, nem pode conter a vida.

“Do estado de absoluta atenção e silêncio surge o novo, surge a criação”.

A meditação não é atividade egocêntrica geradora de desatenção e conflito; nada tem em comum com a ausência de pensamento da criança absorta em seu brinquedo. Também não é recurso a ser usado para aquietar a mente. Está muito além disso. O auto-conhecimento é o princípio da meditação.

Viver é perceber a totalidade que contém o fragmento. Mas, o que acontece é exatamente o oposto: vivemos grudados ao fragmento, e com isso queremos atingir o todo, a totalidade. Só conhecemos o fragmento, que é sempre estreito, limitado, mas através dele buscamos, sem sucesso, o desconhecido, o absoluto. Jamais abandonamos o conhecido, pois nos traz a ilusão de segurança, quando, na verdade, tudo em que confiamos pode falhar, até as coisas mais simples, em particular no campo das relações humanas, das crenças e dos deuses de nossa criação, onde tudo é impermanente e imprevisível. Em face do receio da impermanência, vivemos numa incessante busca de segurança psicológica, o que constitui a essência do conflito. É importante compreender o mecanismo criador da ilusão de que existe segurança em alguma situação ou lugar, para que essa ilusão não se torne uma coisa real para nós.

Não se pode discutir com o fato. O que é falso deve ser posto de lado, não por desejarmos a verdade, mas por lhe percebermos a falsidade. Isso não é um ato de renúncia, mas um ato de inteligência.

Compreensão é maturidade, é ausência de conflito e de sofrimento.

Não há começo nem fim na meditação; nem bom êxito, nem insucesso; nem ganho, nem perda. É movimento livre de objetivos, pois nem mesmo pertence ao “eu”, já que ela está além do tempo e do espaço. A meditação não pode ser experimentada, pois o ato de experimentar pertence ao ‘eu’ e é limitado pelo tempo, espaço, memória e reconhecimento. A meditação ‘surge’ da observação passiva realizada pelo “eu” quando está livre da autoridade, da ambição e do medo. Sem liberdade e sem auto-conhecimento, não pode haver meditação. Enquanto existir escolha, não haverá auto-conhecimento, auto-compreensão e, por consequência, não há meditação. A compreensão vem “do que é” quando cessa o conflito da escolha. O romantismo, a fantasia, a poesia e a crença - tudo que desperta emoção - nega a meditação, pois a emoção distrai. O movimento da meditação nasce da atenção total.

A beleza da flor está na forma, no perfume, na cor, que se percebe de imediato; isso é a flor não contaminada, pura. Ter memória do que ela foi, associá-la com as imagens da memória, não é a verdadeira flor. A meditação é a beleza pura da flor, isto é, a percepção não contaminada, pura.

O conhecimento arquivado na memória é obstáculo ao percebimento do novo, é barreira à criatividade. Embora indispensável para a sobrevivência, ele não nos ‘salva’ porque pertence ao passado. E, além disso, jamais conduzirá à verdade, pois não existe método, artifício ou conhecimento capaz de fazer isso. Para que haja ordem no mundo caótico em que vivemos é necessária a virtude, que é ausência de conflito. Mas, nem a virtude extrema nos leva à imensidão do desconhecido. Para isso, é necessário esvaziar o cérebro do conhecimento e do pensamento, sem, contudo, esperar qualquer recompensa. É fundamental que o cérebro fique vazio. O método e a busca devem cessar, para que floresça o vazio criador, livre do centro (o ego) que calcula e avalia, mede e compara. Como o amor, o vazio daquela imensidão surgirá mansamente, sem princípio e sem fim, irradiando energia inesgotável.

A meditação não é um processo de concentração; esta implica resistência, exclusão, isolamento e conflito. Durante a meditação, pode acontecer que a mente se concentre, sem excluir ou resistir, mas a concentração inicial impede que a meditação venha. Meditação é movimento de liberdade natural, que cessa quando volta o observador. Na ausência do meditador, a meditação é veloz e imensurável movimento, que está além de qualquer símbolo, pensamento, sentimento, raciocínio ou emoção; além do espaço e do tempo.

http://obuscadordedeus.blogspot.com  

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