A EXIGÊNCIA DA ORDEM
PRODUZ ORDEM ?
“Por certo, só poderá apresentar-se
a ordem correta com a destruição da mente
que exige ordem para sua própria
satisfação e segurança”.
Existe grande confusão no mundo. Exteriormente, existe pobreza,
fome e corrupção; interiormente, também, existe confusão, sofrimento e
pobreza do ser. Existe contradição no mundo. Os políticos se declaram em
favor da paz e preparam a guerra; fala-se de união da humanidade, e ao
mesmo tempo, estamos assistindo à sua desintegração. E do meio desses
caos, dessa desordem, todos desejamos que saia a ordem. Temos paixão
pela ordem. Assim como temos paixão por manter nossos quartos limpos e
bem arrumados, assim também temos paixão por colocar o mundo em ordem.
Não sei se temos refletido profundamente sobre essa palavra, no que ela
implica. Queremos ordem interiormente, queremos viver sem contradição,
sem luta, sem confusão, de maneira que exclua todo sentimento de
desarmonia e luta; e, assim, recorremos aos líderes espirituais para
que nos deem a ordem ou aderimos a grupos, ou seguimos certo sistema de
ideias, de disciplinas. Eis como erigimos autoridades; queremos que nos
mostrem o que devemos fazer. Tentamos produzir a ordem pelo
ajustamento, pela imitação.
Do mesmo modo desejamos ter a ordem externa, na política, no mundo dos
negócios. Por essa razão existem ditadores, tiranos, governos
totalitários que prometem a ordem total, na qual a ninguém é permitido
pensar. Ensinam-vos o que deveis pensar, da mesma maneira como vos
ensinam o que pensar quando pertenceis a uma igreja ou a um grupo que
crê num certo sistema de ideias. A tirania da igreja é tão brutal como a
tirania dos governos. Mas gostamos dela, porque desejamos a ordem a
qualquer preço. E temo-la. A guerra produz uma ordem extraordinária num
Estado. Todos cooperam para a mútua destruição.
Cumpre, assim, compreender essa obsessão pela ordem. A sujeição de nossa
própria confusão à autoridade, interna ou externa, produz a ordem?
Compreendeis a pergunta?
Vejo-me confuso e não sei o que fazer. Minha vida é estreita, limitada,
confusa, infeliz — encontro-me num estado de contradição e não sei o que
fazer. Assim sendo, dirijo-me a alguém, instrutor, guru,
santo, salvador; e provavelmente alguns de vós viestes aqui com igual
propósito. Assim, por causa de vossa confusão escolheis vosso líder, e
quando atuais por motivo de confusão, vossa escolha só pode criar mais
confusão. Abandonai-vos à autoridade — e isso significa que não desejais
pensar, não desejais descobrir por vós mesmos o que é o verdadeiro e o
que é falso. Descobrir o que é verdadeiro e o que é falso é dificílimo;
temos de estar muito ativos, muito vigilantes. Mas, como em geral somos
preguiçosos, insensíveis, não profundamente sérios, preferimos que nos
digam o que devemos fazer; e para isso temos os santos, os salvadores,
os instrutores, para dirigirem nossa conduta interior; e exteriormente
temos os governos, os tiranos, os generais, os políticos, os
especialistas. E esperamos que, seguindo-os, nossas tribulações se
acabarão gradualmente e, por conseguinte, teremos ordem.
Por certo, a palavra “ordem” implica tudo isso, não? Ora a exigência de
ordem produz ordem? Considerai isso, por favor, pois desejo examinar
este ponto. A meu ver, a autoridade e o poder, de qualquer espécie que
sejam, são destrutivos. O poder, em qualquer forma, é coisa má, porque
estamos confusos; porque não sabemos, queremos ser ensinados.
Penso, pois, que desde o início destas palestras deve ficar bem
entendido que este orador não é nenhuma autoridade; tampouco o sois vós,
que ouvis e acompanhais o que se está dizendo. Nós estamos procurando
investigar, descobrir juntos. Se aqui viestes com a ideia de que se vos
irá dizer o que deveis fazer, partireis de mãos vazias.
A mim o que importa é perceber a existência da desordem exterior e
interior, e que a exigência de ordem é simplesmente exigência de
segurança, garantia, certeza. E infelizmente não existe segurança, nem
interna, nem externa. Os bancos poderão falir, poderá haver guerra, há a
morte, os valores da bolsa poderão sofrer uma queda desastrosa — tudo
pode acontecer, e coisas terríveis já estão acontecendo. Como vemos, a
exigência de ordem é exigência de segurança; e é isso o que todos,
velhos e moços, queremos. Não temos muita preocupação quanto a segurança interior, porque não sabemos como proceder para obtê-la, mas esperamos
alcançar, pelo menos, a segurança exterior, com bons bancos, bons
governos, uma tradição perdurável. Torna-se, assim, a mente gradualmente
satisfeita, embotada, segura, confinada na tradição, e essa mente, como é
bem óbvio, nunca descobrirá o que é verdadeiro ou o que é falso; é
incapaz de enfrentar o tremendo desafio da existência.
Espero não vos estejais deixando mesmerizar pelas minhas palavras, mas
que estejais escutando de maneira tal que possais descobrir por vós
mesmos se realmente existe tal coisa como a segurança. Este é um
problema formidável. Viver num mundo exterior onde não existe segurança,
e viver num mundo interior onde nenhuma tradição existe, onde não
existe amanhã nem hoje — isso significa que a pessoa ou se torna
desequilibrada, completamente insana, ou extraordinariamente viva e sã.
Isso não é questão de escolha. Não se pode escolher entre a segurança e a
insegurança; mas é fácil perceber que não existe segurança interior,
psicológica. Nenhum estado de relação oferece segurança; e por mais
fortemente que estejamos apegados a certa doutrina, ou crença, a isso
está sempre associada a dúvida, a suspeição, o medo. Uma investigação
desta natureza é necessária, quando há paixão pela ordem.
Não é verdadeiro, tampouco, o contrário disso: que devamos viver na
desordem, no caos. Isso é apenas uma reação. Sabeis que vivemos e
atuamos por efeito de reação. Todas as nossas ações são reações. Não sei
se já notastes isto. E se vemos que a ordem não é possível, pensamos
então, invariavelmente, que deve haver o oposto, a desordem, a reação à
ordem. Mas se se percebe a verdade de que a exigência de ordem implica
tudo o que acabamos de apontar, então, do descobrimento do que é
verdadeiro resulta a ordem verdadeira. Estou-me fazendo claro? Vou
expressá-lo de maneira diferente.
A paz, por certo, não é a ausência da guerra. A paz é coisa diversa. Não
é o intervalo entre duas guerras. Para descobrirmos o que é a paz,
precisamos estar completamente libertos da violência. Para nos
libertarmos da violência, requer-se tremenda investigação da violência.
Isso significa perceber realmente que na violência estão implicados
compulsão, ambição, desejo de êxito, perfeita eficiência,
autodisciplinamento, e o seguimento de certas ideias e ideais. Por
certo, forçar a mente a ajustar-se — não importa se a um padrão nobre ou
ignóbil — implica violência.
Dizemos que, se não nos ajustarmos, haverá caos. Mas tal afirmativa é
uma reação, não achais? A violência não é uma coisa superficial; o
sondá-la requer muita investigação. A cólera, o ciúme, o ódio, a inveja,
tudo isso são expressões da violência. Estar livre da violência é estar
em paz, não achar-se num estado de desordem. Eis porque o conhecimento
de si mesmo não é questão simplesmente de se considerarem as coisas
ocasionalmente, pelo espaço de uma manhã, e não cuidar mais disso pelo
resto da semana. É uma questão muito séria.
Assim, compreender a ordem é muito mais importante do que a reação pela
qual dizemos: “Se não houver ordem, haverá caos” — como se o mundo em
que vivemos fosse uma maravilha, belo e deslumbrante, sem caos nem
sofrimento! Basta-nos olhar a nós mesmos, para vermos como somos pobres
interiormente. Somos vazios de afeição, de simpatia, de amor, somos
feios, e mui facilmente persuadidos; e há sempre essa busca de
companhia, a impossibilidade de estarmos sós.
Importa, pois, considerarmos a ordem em sua totalidade, e não apenas
pedacinhos dela, aqueles que preferimos. E é dificílimo vermos uma coisa
totalmente — como se vê a árvore inteira. Falei um pouco extensamente a
respeito da ordem, da autoridade, e do ajustamento; e, se puderdes ver
isso de maneira total, vereis então como o cérebro, a mente, se livra
dessa exigência de ordem e, portanto, do desejo de seguir — seja a um
herói nacional, à lenda ou a outros absurdos, seja ao vosso
instrutor preferido, guru, santo, etc.
Pois bem. Que é “ver totalmente”? Em primeiro lugar, que é “ver”? É só a
palavra? Tende a bondade de acompanhar-me com um pouco de atenção, se
vos apraz. Quando dizeis “vejo”, que quereis dizer?...
Quando dizeis: “vejo aquela árvore”, a estais vendo realmente, ou vos
estais satisfazendo apenas com a palavra “vejo”? Pensai nisso. Vamos
devagar! Dizeis: “Aquilo é um carvalho, um pinheiro, um olmo — o que
quer que seja — e passais adiante? Se assim é, isso denota que não
estais vendo a árvore, porque estai confiando na palavra. Só quando
compreendeis que a palavra não é importante e podeis colocar de lado o
símbolo, o termo, o nome, é só então que podeis olhar. Isso é muito
difícil — olhar — porquanto significa que o nome, a palavra, com todas
as lembranças, reminiscências associadas à palavra têm de ser postos de
lado. Vós não olhais para mim. Tendes certas ideias a meu respeito.
Tenho uma certa reputação, etc., e isso vos impede de me verdes. Se
puderdes despojar a mente de todo esse absurdo, podereis então ver — e
esse “ver” é completamente diferente de ver através da palavra.
Podeis agora olhar para os vossos deuses, vossos prazeres favoritos,
vossos sentimentos de nobreza, de espiritualidade, etc. — despojados da
palavra? Isto é dificílimo, e são poucos os que se sentem dispostos a
olhar assim. Esse ver é total, porque já não está
associado com a palavra e as lembranças, os sentimentos que a palavra
evoca. Assim, o ver uma coisa totalmente significa que não existe
divisão, que não há reação ao que se está vendo: há, apenas, ver.
E a percepção do fato em si provoca uma série de ações dissociadas da
palavra, da memória, das opiniões e ideias. Isso não é uma façanha
intelectual, embora o pareça. Ser intelectual ou ser emotivo é um tanto
estúpido. Mas o ver totalmente o medo liberta a mente do medo.
Ora, nunca vemos uma coisa totalmente, porque estamos sempre olhando as
coisas com o intelecto. Isso não significa que não se deva fazer uso do
intelecto; pelo contrário, temos de fazer uso do intelecto em sua máxima
capacidade. Mas a função do intelecto é fracionar as coisas; ele foi
educado para observar por partes, não totalmente. Estar inteiramente
cônscio do mundo, da Terra, isso não implica nenhum senso de
nacionalidade, nem tradições, nem deuses, nem igrejas, nem repartição
das terras, nem a divisão da Terra em coloridos mapas. E ver a
humanidade como constituída de entes humanos não significa segrega-los
em europeus, americanos, russos, chineses ou indianos. Mas o intelecto
recusa-se a ver totalmente a Terra e o homem que a habita, porque o
intelecto foi condicionado através de séculos de educação, tradição e
propaganda. Assim o intelecto com todos os seus hábitos mecânicos, seus
instintos animais, seu impulso para permanecer em segurança, protegido,
jamais pode ver coisa alguma em sua totalidade. Entretanto, é o
intelecto que nos domina; é o intelecto que está sempre funcionando.
Por favor, não salteis logo à ideia de que deve haver algo além do
intelecto, de que em nós deve habitar um espírito, com o qual devemos
entrar em contato, e outros absurdos de tal laia...
O intelecto, pois, foi condicionado — pelo hábito, pela propaganda, pela
educação, por todas as influências diárias, pela insignificância da
vida e por seu próprio e incessante tagarelar. E é com esse intelecto
que olhamos. Esse intelecto, ao escutar o que se diz, ao contemplar uma
árvore, um quadro, ao ler um poema ou ouvir um concerto, é sempre
fracionário; sempre reage em termos de “gosto” e “não gosto”, em termos
de vantagem ou desvantagem. A função do intelecto é reagir e, se assim
não fosse, seríamos destruídos da noite para o dia. É, portanto, o
intelecto, com todas as suas reações, lembranças, impulsos e compulsões —
tanto conscientes como inconscientes — que olha, vê, escuta e sente.
Mas o intelecto, sendo em si, parcial, produto do tempo e do espaço, da
educação — conforme já descrevemos — não pode ver totalmente. Está
sempre comparando, julgando, avaliando. Mas a função do intelecto é
reagir, avaliar; por conseguinte, para poder ver as coisas totalmente, o
intelecto tem de suspender sua atividade. Espero me esteja explicando
claramente.
Deste modo, o percebimento total de uma coisa só pode ser verificada quando
o intelecto é altamente receptivo à razão, à dúvida, à indagação, mas
ao mesmo tempo reconhece as limitações do raciocinar, do duvidar, do
indagar e, portanto, não permite a si mesmo interferir no que está vendo. Se
desejais realmente descobrir algo que seja mais do que produto do
intelecto, este deve, em primeiro lugar, alcançar os seus limites,
interrogando, argumentando, examinando, desejando descobrir e conhecer
sua existência limitada, parcial; e essa própria existência, esse
conhecer da limitação, quieta a mente, o intelecto. Há então a visão total.
Quando se puder ver a totalidade da ordem — com todas as implicações que
já examinamos — ver-se-á também surgir, dessa compreensão total, uma
ordem de qualidade inteiramente diferente. Por certo, só poderá apresentar-se a ordem correta com a destruição da mente que exige ordem para sua própria satisfação e segurança.
Depois de o intelecto despedaçar tudo o que ele próprio criou, de
destruir o solo em que cultiva toda espécie de fantasias, ilusões,
desejos, então surgirá, em consequência dessa destruição, um amor que
criará sua ordem própria.
Krishnamurti
Parece que vivemos nos superando. Quando éramos mais instintivos tivemos que ultrapassar esses instintos para nos adaptar a racionalidade que estava surgindo, agora precisamos superar o intelecto para ser mais receptivos. É simplesmente formidável a evolução do ser humano, podemos até compará-la ao declínio das grandes civilizações, que só prevalecem enquanto tem algo a oferecer ao crescimento e aperfeiçoamento da humanidade; assim são os nossos corpos e seus componentes; cada vez mais sofrem transformações graduais e progressivas e as estruturas antigas vão sendo transcendidas e outras vão surgindo - presentemente o homem precisa ser mais intuitivo. Certamente Krishnamurti foi o introdutor desse aprendizado. KyraKally