Translate

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - III  

 A essência de seus ensinamentos 

Criação não significa paz. Paz e conflito pertencem à esfera do espaço-tempo, ao movimento exterior e interior da existência. O inefável nem mesmo pode ser imaginado pelo pensamento, pois este é o próprio tempo, enquanto a criação o transcende, está além do espaço e do tempo.

A coisa existe; eis tudo. Nada pode freá-la, nem fazê-la surgir. Ela não encerra nem futuro, nem passado, nem presente. Não tem origem, nem direção, nem forma, medida ou qualidade, e abrange todas as visões e todas as coisas. É indiferente, intocável, grandiosa. Sem ela nada existe. Tentar interpretá-la é distorcer a verdade e errar.

O cérebro se alimenta de suas próprias reações e experiências; vive delas mas, tanto a reação quanto a experiência o limitam e o condicionam. Sem a experiência, sem o conhecimento, sem a memória, é impossível agir para as necessidades da sobrevivência; mas essa ação é sempre fragmentada e limitada. A experiência serve apenas para fortalecer o ego. O ato de experimentar é condicionado pela experiência, pelo passado (porque o ego interpreta tudo que experimenta em face do conhecimento que já possui). Estamos, assim, atados ao passado, àquilo que já é conhecido. A liberdade está no esvaziar a mente de toda experiência (pensamento, memória, emoção, imaginação, isto é, de todo condicionamento). Quando o cérebro cessa de alimentar-se da memória e do pensamento, quando morre para o ato de experimentar, sua atividade deixa de ser egocêntrica e vai buscar forças em outras fontes. Isso é o que torna a mente religiosa. Quando cérebro está livre do tempo, por terem cessado suas reações e associações, surgem a inocência e o amor.

A criação não é para os talentosos nem para os bem dotados; esses conhecem a criatividade, não a criação. A criação é incomunicável. Criar é ir além do pensamento, da imagem e da palavra. Logo, o cérebro não dispõe de meios para entrar em contato com a criação. Para a criação, o conhecimento é obstáculo, mas, sem o auto-conhecimento, nada se cria. O afiado instrumento do intelecto nem mesmo pode imaginar a criação. Escrever um poema não é criação. Esta só vem com o findar de toda atividade cerebral; não deve restar nem sombra de conflito ou imitação. A criação resulta da morte total (não fisiológica, mas morte (esquecimento) de tudo isso que chamamos vida; do conhecido, do passado, do que somos).

“... No instante em que descansávamos, contemplando as nuvens, surgiu, de repente, aquela bênção pura. Inundou completamente a sala e o coração; de intensidade envolvente e penetrante, sua beleza derramava-se sobre a terra... Sentimos alegria irreprimível; não havia causa, sentimentalismo, nem emoção que a ocasionasse. Era uma alegria pura, simples, imaculada, rica, inocente. Por trás dela, não havia pensamento ou motivo, nem podíamos compreendê-la, pois era inteiramente gratuita. Essa imensa alegria jorrava de todo nosso ser, cujo interior estava completamente vazio... jorrava sem direção; mas, ao conhecê-la, o coração e a mente jamais serão os mesmos”.

A consciência não pode conter a imensidão da inocência; não pode buscá-la nem cultivá-la, mas pode recebê-la. A totalidade da consciência tem de aquietar-se, e fazer cessar todo desejo e busca. “Aquilo” surge quando a consciência silencia. Meditar é esvaziar a consciência, mas sem a intenção de receber e, sim, para desfazer-se de toda finalidade, propósito e motivo. É preciso haver espaço para o silêncio, espaço que surge com a destruição do pensamento e de suas associações. Só nesse vazio ocorre a criação. Mas essa destruição tem de ocorrer naturalmente, espontaneamente, sem esforço.

Costumamos olhar de fora para dentro, isto é, vemos um fato ou coisa, fora de nós e, em seguida, reagimos, interpretando-o, conceituando-o, comparando-o; passamos de um conhecimento para outro, sempre acumulando e o ato de suprimir é, ainda, processo de acumulação. Nossa consciência é formada por milhares de lembranças e reconhecimentos (associações); é a percepção da folha trêmula, da flor, do homem que passa, da criança correndo; a percepção do rochedo, do rio, do céu, do mar, do vento, do odor desagradável ou bom, da melodia, das cores. Com esse processo de experimentar e reconhecer em face das reações exteriores e interiores, procuramos tomar consciência do mundo interior e tentamos penetrar mais e mais na profunda vastidão da mente. Mas, todo esse processo de experimentar e reconhecer está ainda na consciência, que é limitada pelo espaço-tempo. Conhecemos a consciência pelos sinais interiores, pela profundidade e complexidade de pensamento e sentimento. Mas, tudo isso é ainda só a forma externa da consciência; partindo do exterior estamos tentando descobrir o interior. Será isso possível? Teorias e especulações nada significam; são mesmo obstáculos a todo descobrimento. A partir do conhecido tentamos chegar ao desconhecido. Mas não existe, em nosso cérebro, nenhum instrumento ou mecanismo capaz de realizar essa proeza.

O presente é a sombra de ontem, que se prolonga até o amanhã, um tanto alterada, mas conservando as características de ontem. O cérebro, como só vive no passado, nada mais é que passado. A consciência está sempre armazenando, acumulando, interpretando aquilo que recebe; ela não pára de receber de todos os sentidos e da memória; de acumular, de experimentar, de julgar, comparar, planejar, modificar. Ela não vê apenas com os olhos mas, também, com todo o acúmulo de informações e conhecimentos já armazenados na memória (interpretações). Receber e acumular informações, na forma de imagens, sons etc, é a própria razão de sua existência. Guarda tudo aquilo que tem recebido ao longo dos séculos - instintos e defesas - na memória genética, sempre acumulando, ou rejeitando com a intenção de acumular mais. Ao voltar-se para o mundo exterior, ela o faz para julgar, medir ou comparar. E, voltando-se para o interior, o faz com aquela mesma visão exterior, que pesa, mede, compara e julga. E não tem fim esse processo, no qual há um misto de fugaz alegria e de sofrimento.

Mas, observar, ver e escutar sem a interferência da consciência (do ego) - uma ação que não visa receber - faz parte do movimento que leva à liberdade. (‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’). Esta ação não tem ponto de partida e, assim, age em todas as direções, sem a barreira do espaço-tempo. É completo seu ato de escutar e ver. Disso nasce a atenção. Já, da concentração nasce o conflito criado pela distração, exclusão e escolha.

Expresso ou não, verbalizado ou buscando expressão, o pensamento é a própria mente localizada. Ele nunca está quieto; a ação, que se expressa nas formas de pensamento, intensifica o seu processo de reação. Mas, haverá beleza no pensamento? A beleza e o amor que o pensamento conhece são os opostos da feiúra e do ódio. Mas, na dimensão onde existe verdadeira beleza e verdadeiro amor não existem opostos.

Ver, sem interferência do pensamento ou da reação da memória (do ego), difere totalmente do ver baseado no pensamento e na sensação. É superficial o que se vê com o pensamento. Ver, sem o pensar, é visão integral. E isso é totalmente explosivo. Para ver e ouvir verdadeiramente, a consciência deve aquietar-se, condição essencial para que surja a criação destruidora (das ilusões e do sofrimento). Isto é a totalidade da vida (o nível da mente total, como fala Wilber); o pensamento é apenas um fragmento disso.

“Aquela estranha bênção surge espontaneamente e é sempre diferente”.

A essência do pensamento é aquele estado em que não existe nem pensador, nem pensar. Por mais profundo e elevado que seja o pensamento, ele jamais deixará de ser frívolo e superficial. Aquela essência surge com o cessar do ato de pensar. Contudo, não existe método nem sistema capaz de fazer cessar o pensamento.

A essência do ser é o não-ser, e para “ver” a totalidade do não-ser, deve o homem libertar-se do desejo de “vir-a-ser” (isto é, a essência do ser é o próprio universo, o todo; para se compreender a totalidade, o todo, deve o homem libertar-se do desejo de vir a ser aquilo). Não há liberdade se existe continuidade (do ser, memória, ego), pois tudo que continua é limitado pelo tempo. Toda experiência prende o pensamento no tempo, e só a mente livre do desejo de experimentar é que pode perceber sua própria essência. Esse estado psicológico, que é o cessar de buscar a experiência, não significa paralisia mental; ao contrário, é o começo do fim da mente acumulativa (de experiências) e condicionada. Acumular é ato mecânico, repetitivo. Torna-se livre a mente que destrói esse mecanismo de acumulação e defesa e, assim, permanece indiferente ao ato de experimentar.

O que deve existir é a percepção do fato, e não a experiência do fato; a opinião sobre o fato, sua avaliação, considerá-lo belo ou feio, agradável ou ruim, é experimentar, reagir ao fato. E isso significa interpretar o fato, fugir dele. Porém, ver um fato sem a interferência do pensamento ou emoção, sem avaliá-lo, sem analisar se é bom ou ruim, é fenômeno profundo e grave. A experiência, isto é, interpretar o fato, é coisa tola, imatura e sem valor; é algo que se perde ou se ganha com a maior facilidade. 

http://obuscadordedeus.blogspot.com 

Nenhum comentário:

Postar um comentário