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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

 O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - I

A essência de seus ensinamentos

 

NOTA DO EDITOR: A autora, M. Lutyens, que durante anos acompanhou Krishnamurti pelo mundo, afirma que aqui está a essência de seus ensinamentos. Ele escreveu diariamente, de junho de 1961 a janeiro de 1962, enquanto fazia palestras pelo mundo e, todos os dias, era abençoado com a percepção daquilo que está além do espaço e do tempo.  

Obs.: aquilo que a física quântica denomina “consciência una”, o absoluto, é “mente” para K., embora, às vezes, nos livros, haja certa confusão no uso dessas palavras; “criatividade” é “criação”. 

 


No cérebro estão armazenados todo o conhecimento e as experiências, isto é, tudo aquilo que já passou; logo, o cérebro nada mais é do que passado. Por isso, é limitado. Suas atividades são planejadas, refletidas, raciocinadas, mas, por funcionar dentro dos limites do espaço e do tempo, não pode entender nem perceber aquilo que está além do espaço e do tempo, aquilo que é ilimitado, o todo, o absoluto, o que chamamos ‘Deus’. O absoluto é a mente não localizada; (a mente localizada é a ‘parcela’ da mente que está no cérebro de cada um); a mente se acha vazia e, por causa desse vazio, o cérebro existe no espaço e no tempo para que o todo se perceba a si mesmo, como afirmam cientistas e sábios. Só quando o cérebro se libertar de seu condicionamento, isto é, não mais avaliar, comparar, conceituar, pensar, se emocionar, se recordar e deixar a avidez, a inveja, a ambição, poderá compreender aquilo que é integral, a mente, ‘Deus’. Essa compreensão traz inteligência e compaixão. O raciocínio e o intelecto jamais compreenderão o absoluto porque o limitado não pode compreender o ilimitado, o finito não pode compreender o infinito.

“... começou de novo aquele sentimento de imensa vastidão; simplesmente, ela estava ali; não havia centro (eu) no qual a experiência ocorresse, ou de onde ela surgisse”. (a ‘coisa’ surge quando o ego cessa suas operações; como ensinam os místicos: ‘quando o eu não é, Deus é’; e o Velho Testamento: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

A imaginação, a emoção e a memória, interferem e distorcem a observação, que só é pura quando o cérebro está vazio e imóvel. O cérebro só se torna imóvel quando, por ter atingido um estado de extrema sensibilidade, é incapaz de interferir e distorcer as coisas, e se acha passivamente consciente.

Para se perceber ‘Deus’ é necessário que cessem todos os mecanismos de defesa psicológica criados e adotados pelo homem: experiências, dependências de caráter religioso, deuses, crenças, conhecimentos. Essas coisas nos condicionam totalmente; e só cessam pelo auto-conhecimento trazido pela meditação.

O homem é incapaz de criar, porque nele domina o ego, com suas aptidões, talentos e técnicas, mas, sempre limitado. A criação jamais é produzida pelo ego, a mente localizada, que é parte, fragmento, mas sempre pelo todo (e a parte pode se transformar no todo através da meditação).

Todo processo do pensamento deve ser compreendido; todo pensamento é reação contra alguma coisa, e a ação, que dele resulta, traz confusão e conflito.

Todos julgam difícil e indesejável a ação gratuita, a ação que não visa lucro. As atividades do homem e os valores sociais sempre se baseiam na ação que lhe pode trazer vantagem e satisfação. E isso sempre produz descontentamento, o que acaba gerando ciúme e ódio. Por outro lado, a satisfação freqüente destrói a sensibilidade do cérebro.

Ser virtuoso, apenas para merecer as graças dos ‘céus’ ou o respeito social, faz a vida estéril e sem sentido. Esse comportamento, por ter um objetivo, forma uma cadeia de fugas de nós mesmos, fuga “daquilo que é”, pois ficamos tentando parecer o que, na verdade, não somos.

A vida não tem sentido se não formos capazes de perceber a essência das coisas, isto é, de perceber o todo. Mas isso está além do pensamento e do sentimento, além do raciocínio, além do alcance do cérebro.

O importante não é mudar, mas fazer cessar a interferência do eu; mudar é, apenas, continuação modificada do que foi, do que existiu antes. As reformas sociais e econômicas são apenas reações, continuação modificada do que sempre existiu. Tais mudanças não destroem as raízes do egocentrismo. A destruição, no sentido em que empregamos a palavra, é uma ação que não visa resultados nem objetivos. Por exemplo, a destruição da inveja é um processo total; tal ação, livre de motivo, elimina a repressão e o controle. É possível realizar essa destruição; basta ver a totalidade da inveja. Essa percepção é instantânea e não depende de tempo. Isto é, no instante em que se compreende o que é verdadeiramente a inveja, esta deixa de existir (o mesmo ocorre com o medo, o ódio, ambição etc).

O controle, sob qualquer forma, prejudica a plena compreensão dos fatos. Todos vivem atormentados por muitos medos. Conformação, fruto da existência disciplinada, jamais nos liberta do medo. O hábito destrói a liberdade; o hábito de pensar, de beber e outros, conduzem a uma vida superficial e aborrecida. A religião organizada, com suas crenças, dogmas e rituais, impede o acesso à vastidão da mente (à consciência una). E é esse acesso que purifica o cérebro e dele elimina a noção de tempo e de espaço. O homem que se associa a religiões organizadas é imaturo.

“...sempre que estávamos quietos, sozinhos, em qualquer lugar, a coisa tornava-se perceptível. Mas, é absurdo tentar expressar estas coisas verbalmente; as palavras, por mais esmeradas e precisas, não transmitem a realidade”. (‘a palavra não é a coisa’; não há palavras que possam descrever o absoluto, ou conceituar ‘Deus’, como os místicos sempre afirmaram).

Existe, na vida, um único movimento indivisível que é exterior e interior. A maioria segue o movimento exterior, do conhecimento, das idéias, crenças, respeito à autoridade, busca de segurança, de prosperidade etc. Em reação a tudo isso, há aqueles que seguem o movimento interior, com suas visões, esperanças, segredos, conflitos, desesperanças. Sendo este movimento uma reação (pois o ego interfere e reage com sua interpretação em relação àquilo que percebe do mundo exterior), ele se acha em conflito com o mundo exterior; disso nasce a contradição com seu sofrimento, ansiedade e a vã tentativa de mudar ou fugir do fato, daquilo que ‘é’, fuga sempre impossível.

O fluir interior e o fluir exterior da vida formam um único movimento indivisível. Com a compreensão profunda do mundo exterior, daquilo que é, dos fatos, sem as interpretações e comparações que sempre o ego faz, inicia-se o movimento interior, mas agora não mais em oposição ou contradição entre si. Cessado o conflito, o cérebro, ainda que altamente sensível e alerta, aquieta-se. Só assim, torna-se válido o movimento interior. Deste movimento, nascem uma sabedoria e uma compaixão que não resultam do raciocínio ou do auto-sacrifício intencional, mas daquela profunda compreensão.

“A força e a beleza da flor estão em sua total vulnerabilidade...” (a vulnerabilidade da não-memória, da não-resistência, do não-planejamento, do não-pensamento, da inocência, do eterno fluir..., pois não existem reações).

No pensamento nada existe de novo ou de santificado. O pensamento pode reunir uma confusão de sistemas, dogmas, crenças, imagens e símbolos; porém, suas projeções são tão sagradas quanto os projetos para a construção, por exemplo, de uma casa, pois na área do pensamento nada existe de sagrado; o pensamento pode produzir qualquer coisa bela ou feia. Existe, porém, o sagrado que não vem do pensamento, nem do sentimento ou emoção; não é reconhecível pela memória, nem pelo raciocínio, nem pode ser imaginado pelo cérebro. Nem a palavra, nem o pensamento, nem o símbolo ou o dogma podem definir o sagrado. Ele é indizível, incomunicável. Isso é um fato.

Um fato é para ser visto, mas o ato de ver não pode ser interpretado (pelo eu, pelo raciocínio). Quando o ‘eu’ interpreta um fato, este se torna impuro e deixa de ser um fato. O “ver” é da mais alta importância; está fora do espaço e do tempo, é imediato e instantâneo. E o que se vê é sempre novo (se há interferência do eu, com o raciocínio, lembrança, associação, conceituação, não é mais ‘ver’; o fato torna-se impuro). No ‘ver’ não há repetição, nem o processo gradual do tempo.

O sagrado não necessita do observador (enquanto, para que se manifestem, no espaço-tempo, o mundo e seus objetos, há necessidade de um observador com mente senciente, como afirmam os físicos quânticos e psicólogos).

“O sagrado está presente inundando o quarto e transbordando por cima dos montes, atravessando os mares, cobrindo e transpassando a terra e o universo”

Amor não é apego. O amor não produz sofrimento, desespero, esperança, enquanto o apego produz tudo isso. É impossível tornar o amor respeitável ou ajustá-lo ao esquema social. Possuir e ser possuído são considerados formas de amor, erradamente. O desejo de possuir uma pessoa ou objeto não é apenas uma exigência social ou das circunstâncias, mas nasce das profundezas da nossa solidão. Cada um procura preencher essa solidão (que todos possuem por não entenderem o significado da vida) de diferentes modos: bebendo, seguindo uma religião, uma crença, viajando, enriquecendo, buscando um afeto, ou com outra atividade qualquer. Mas, tudo isso é apenas fuga; fuga geradora de apego, prisão, conflito e frustração e, evidentemente, sofrimento. Mas, apesar dessas fugas, a solidão permanece. Não podemos fugir da solidão; ela é um fato, e a fuga do fato, daquilo que é, ou a tentativa de modificá-lo, é origem de mais confusão e sofrimento, pois pensamos que podemos fugir e não podemos; ninguém pode fugir àquilo que é. O importante é compreender profundamente o porquê da solidão; compreendendo, a solidão desaparece.

http://obuscadordedeus.blogspot.com  

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