Translate

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

ENSINAMENTOS ZEN - IV


Monge: ‘Há um caminho particular para se trabalhar no Tao?

Mestre: ‘Sim, há um caminho: Quando se tem fome, come-se: quando se está cansado, descansa-se. ’

Monge: ‘Mas, isso é o que fazem todas as pessoas; então elas seguem o mesmo caminho que tu?’

Mestre: ‘Não é o mesmo caminho, porque quando comem, elas não se limitam a comer, elaborando toda espécie de imaginação. Quando descansam, não se restringem a fazê-lo, dando livre curso a mil pensamentos ociosos. Eis porque o caminho delas não é o meu caminho

O homem comum só tem consciência de imagens; assim, o fato de ser inconsciente do existir não surpreende. Ele não tem consciência daquilo que nele é real e só a tem daquilo que nele é irreal. A obtenção do satori* é apenas a tomada de consciência de existir, hoje inconsciente nele, tomada de consciência da Realidade única e fundamental da vida vegetativa universal que é a manifestação do Princípio Absoluto (‘Isso’ que Eu sou é infinitamente mais do que meu ‘eu’). É a isso que o Zen chama ‘ver em sua própria natureza’.

O homem comum tem de obter a percepção imediata do valor infinito da vida vegetativa pela desvalorização total da sua vida egotista. O trabalho interior necessário para isso consiste apenas em desfazer todas as ilusórias crenças egotistas que lhe mantêm fechado o ‘terceiro olho’. Isso porque para o homem o que é importante é o viver; para ele viver são imagens, pensamentos, ilusões, memória, competições, emoções, adrenalina, ideais, expectativas, ao passo que o existir é morte (o fato, as sensações sem emoções, sem associações nem imaginações).

O homem conhece, indiretamente, a realidade do existir (vida vegetativa) ao perceber, de modo direto, as flutuações ou variações que ameaçam os fenômenos que constituem essa vida. Por exemplo, quando tem fome percebe diretamente a ameaça que a falta de alimento faz pairar sobre sua existência vegetativa. Se não sentisse fome, não teria consciência de que sua manifestação fenomênica está ameaçada. Através da fome, tem consciência indireta de sua existência vegetativa. A alegria e a tristeza de suas afirmações e negações egotistas significam reduções e ampliações da ameaça que o mundo exterior faz constantemente pairar sobre a totalidade de sua vida vegetativa; alegrias e tristezas são, portanto, tomadas indiretas, percepções da consciência de sua existência vegetativa.

Em suma, todas as flutuações positivas ou negativas de como me sinto (disposição, humor, saúde etc.) resultam das variações da pura e perfeita alegria vegetativa fundamental. Isso só é sentido, de forma indireta, nas flutuações do sentimento de segurança ou insegurança relativas à minha vida vegetativa. A percepção direta dessa perfeita alegria vegetativa anula todo medo da morte, medo que vem da evocação mental imaginativa da morte; mas a percepção direta da realidade da existência anula todos os fantasmas imaginados e inventados pelo homem, referentes a um passado ou futuro sem realidade presente. Com o satori, o homem sente a pura e a perfeita alegria somente pelo fato de existir enquanto existe.

Não temos diretamente consciência de nossa existência, mas apenas de suas variações fenomênicas. É a crença na realidade absoluta dessas variações que nos separa da consciência daquilo que está sob essas variações (e que nunca sofre variações: a existência numênica, princípio da existência fenomênica). Devemos compreender a perfeita igualdade dos fenômenos opostos (alegria-tristeza, segurança-insegurança, vida-morte, construção-destruição etc.) diante do que é sob essas variações. O Zen diz que a escravidão do homem reside no desejo de viver. E é possível observar em muitos seres humanos o terror de desperdiçar a vida, quando, na verdade, nela nada há a desperdiçar ou a aproveitar, pois ela é o que é.

Quando se observa com imparcialidade, o homem percebe que não é o autor consciente e voluntário de seus sentimentos e pensamentos, que são tão somente fenômenos que vêm a ele. Numa observação criteriosa, o homem perceberá que seus pensamentos chegam a ele. Assim, não somos responsáveis nem mesmo por nossos pensamentos e, em consequência, nem por nossas ações, pois não somos seus autores voluntários; portanto, nada fazemos livremente, nada fazemos por nossa decisão ou escolha, isto é, a escolha não é nossa (como diz, hoje, a nova física e Krishnamurti que afirma: ‘aquele que escolhe é imaturo’, e a bíblia: ‘É o Senhor que opera em nós o pensar, o querer e o fazer’).

Contudo, o homem julga que pode fazer alguma coisa para diminuir os sofrimentos que o acometem, sobretudo porque sente, ligada a eles, em particular aos sofrimentos morais, uma angústia fundamental, da qual as alegrias são apenas tréguas passageiras. Em sua busca de como se livrar desses sofrimentos, verifica que a maioria dos ensinamentos, que admitem ser possível tal libertação ou salvação, se baseia na teoria errada de que é preciso fazer, aos poucos, evoluir sua consciência através de um trabalho especial (aquisição de virtudes etc.); que deverá transcender a si mesmo, no decorrer da vida, até obter o aperfeiçoamento moral necessário.

Segundo o Zen, o homem nada necessita fazer (para sua salvação) pois, desde sempre, ele possui ‘a natureza de Buda’ (Jesus: ‘o reino de Deus está dentro de vós’, e Paulo: ‘não é por vossas obras que sois salvos, mas pela graça de Deus’). Há nele tudo o que é necessário para ter o percebimento de que sempre foi e sempre é livre. Mas, a condição do homem ao nascer comporta certa modalidade de desenvolvimento que traz um hiato, uma não-união entre soma e psique. Com isso, ele não goza da consciência absoluta que é, no entanto, plenamente sua. Não que lhe falte alguma coisa; a máquina está completa, perfeita. É necessário, apenas, estabelecer a reunião das duas partes, e isso é feito por um trabalho interior, progressivo e que pode ser longo, mas o despertar é instantâneo e fulgurante. É um voltar a si, um abrir os olhos à realidade que sempre esteve aqui. Embora possa durar bastante tempo, o homem obtém, já durante o trabalho, uma redução do sofrimento que resultava da crença de que não é livre.

O homem é um organismo psicossomático (soma e psique, corpo e mente). Quando a mente ainda não está concluída, a criança não tem consciência da distinção entre o eu e o não-eu. Mais tarde, adquire consciência dessa distinção, o que constitui verdadeiro traumatismo. Antes, não havia nenhuma existência autônoma frente a ele; portanto, sua existência nada tinha a temer; mas, de súbito, percebe, ao tomar contato com o obstáculo do mundo, que há coisas que existem independentemente dele e que, por isso, lhe parecem ameaçadoras. Nesse instante surge o medo da morte, do perigo que o não-eu representa para o eu, o que provoca no eu um estado afetivo de guerra contra o não-eu. O indivíduo deseja existir e deseja a destruição daquilo que não lhe é favorável e que existe fora dele. A criança se afirma ao dizer ‘eu; não você!’. O eu é tudo que é favorável à existência do indivíduo; o não-eu, tudo o que é desfavorável. Há dois campos opostos e o que está em jogo, em última análise, é a sua continuidade ou cessação, a vida ou a morte. Nessa fase, o indivíduo passa a ser inteiramente parcial, nunca se colocando no lugar do outro. Daí vem o comportamento das crianças, totalmente afetivo, egoísta e irracional.

Na chamada idade da razão, a mente torna-se capaz de percepções abstratas, gerais, imparciais; pode colocar-se no lugar do outro e imaginar um bem distinto da afirmação do eu sobre o não-eu. Pode sentir impulsos para ideias de Bem, do Belo, do Verdadeiro. Mas, nesse momento, todos os poderosos mecanismos afetivos de auto-afirmação já estão alicerçados sob uma perspectiva inteiramente egotista e parcial. A parte puramente animal do começo já está solidamente estruturada e é radicalmente contrária à parte abstrata quando esta surge. Não existindo a união das partes, o indivíduo não pode usufruir uma consciência una, íntegra. A parte abstrata, isolada da parte animal, não imagina senão formas sem substância, imagens, entre elas uma imagem ideal, divina, bela, boa e verdadeira (o eu, alma, espírito) que, não havendo um justo amor de sua parte abstrata por sua parte animal, o homem passa a adorar e imitar. Surge o amor-próprio, amor de sua parte abstrata por uma imagem, ideal e sem realidade, de si mesmo, o ego (espírito, alma).

Graças à imaginação, cria um mundo subjetivo (interior, imaginado) que lhe é mais favorável, que reduz a competição com o não-eu, e o homem se torna civilizado, adaptado, aceitando a vida em sociedade com todas suas incoerências e absurdos, com isso suavizando a luta contra o não-eu. Mas, a situação se torna grave quando os mecanismos adaptativos (entre eles acordos entre o eu e o não-eu, leis e regras e costumes sociais civilizados) esgotam sua eficácia, e o homem, pelo medo do fracasso, não consegue mais negar suas pretensões de vencer o não-eu. A vida frustrou, pouco a pouco, suas esperanças de ser recompensado por ter sido gentil, bom, sábio; sofreu infelicidades que considera injustas, e deixa de crer naquelas fantasias. Retoma o combate, mas sente que, por isso, a parte abstrata (alma, espírito) como se estivesse do lado do inimigo, o repreende muitas vezes. O homem fica, então, mais dividido ainda. Há aqueles que procuram esquecer a parte abstrata e passam a viver em confortável egoísmo, os materialistas; e aqueles cuja parte abstrata é mais forte e passam a viver em confortável renúncia altruística, os espiritualistas.

 
EM BUSCA DE DEUS 
http://obuscadordedeus.blogspot.com  
* A palavra significa literalmente "compreensão". 

Nenhum comentário:

Postar um comentário