“O ser humano normal é aquele que está livre do sofrimento”. (Somos
ainda sub-humanos, afirmou Mahresh Mahrish Yogi; ensina Krishnamurti: ‘a
vida só tem sentido quando o homem se ilumina’).
Toda a questão para a libertação do ser humano se resume em transpor o
abismo que separa a ‘verdade aceita por todos’ da verdade real, não
conhecida pela grande maioria dos seres humanos. Muitos, se a conhecem,
não a aceitam devido aos condicionamentos, preconceitos, cultura,
sociedade, crenças, ilusões, opiniões, interpretações equivocadas. Para o
ocidental, isso é muito difícil de compreender, em face de sua cultura
dualista, e ele tem de superar muitas dificuldades e caminhar bem
devagar para entender. Para as tradições orientais, a visão desse
problema é totalmente diferente.
O Zen diz: ‘O homem nada tem de complicado a fazer; é suficiente que ele
veja, diretamente, em sua própria natureza’. E o Zen não dá qualquer
importância à teoria que estuda a Realidade; só lhe é importante a
prática da meditação que o pode levar à percepção dessa Realidade.
Há só uma Realidade; ela produz toda manifestação, todas as coisas
físicas ou não, e é ilimitada, eterna e inexprimível. Mas há uma
variedade indefinida de verdades, aspectos corretamente interpretados
pelos nossos sentidos, que são efeitos da Realidade, e exprimíveis no
plano intelectual humano. No atemporal, nível do absoluto, tudo é Um só;
no espaço-tempo, nível do relativo, há toda a diversidade de seres e
eventos.
É absurdo alguém reivindicar a paternidade de qualquer idéia. O homem
não cria coisa alguma (Paulo: ‘é o senhor que opera em nós o pensar, o
querer e o fazer). Tudo se molda, ou se revela através de seu intelecto.
Se conseguirmos que nossa mente fique limpa das idéias preconcebidas,
condicionadas, ela será capaz de criar. Mediante impulsos intuitivos,
ela estabelecerá relações cada vez mais ricas de sentido entre os
conceitos que já adquiriram ressonância em nossa mente e o plano do
absoluto (também R.M.Bucke).
As escolas que ensinam que sofremos porque não dominamos nossos
impulsos, ou não nos desapegamos dos desejos, estão equivocadas pois,
para o Zen, isso leva a um ou outro apego, dando a ilusão que estamos no
caminho correto. Como não vamos bem num caminho, adotamos um outro e
presumimos que tudo irá bem agora. Mas, nada vai mal em nós; sofremos
porque não compreendemos que tudo é como deve ser, e por acreditar que é
preciso fazer algo para corrigir aquilo que, achamos, não está bem. Daí
a crença na necessidade de que devemos nos modificar, que devemos ser
virtuosos para nos salvarmos.
O problema está em que, ainda, não temos compreensão, ou ‘percepção’, da
Realidade. Ela está adormecida dentro de nós; só não está adormecida a
crença naquilo que nossos sentidos percebem no mundo das formas. Tudo
parece ir mal porque a visão de que tudo já é perfeito, eterno e
totalmente positivo, está ‘oculta’ no centro de nosso ser. Daí vem toda a
sucessão de eventos, imagens, pensamentos, crenças, totalmente
distorcidos pela nossa interpretação, que causa nossos erros e ilusões, e
que nenhuma terapêutica pode ser capaz de resolver se não conseguirmos
destruir essas ilusões.
Para o Zen, você nada tem que fazer para se libertar; você nunca sofreu
qualquer sujeição e nada existe que esteja aprisionando você. Tudo se
organizará de modo espontâneo e harmonioso, para sua percepção,
exatamente quando você deixar de tentar fazer qualquer coisa para se
libertar, e trabalhar somente para despertar sua compreensão adormecida
de que sempre esteve liberto. Essa é toda a pureza do ‘não agir’. Não
existe qualquer caminho para a libertação; isso é evidente, já que nunca
estivemos submetidos a nada e continuamos a não estar. O que temos de
fazer é somente compreender a enganosa ilusão de todos os ‘caminhos’.
Quando se obtém a clara compreensão de que tudo que se fizer para a
libertação é inútil e desnecessário, quando se superar a idéia de todos
os caminhos imagináveis, virá o ‘satori’, visão real de que não há
caminho, de que não é preciso ir a lugar algum pois, desde toda a
eternidade, estamos no centro único e fundamental de tudo. Assim, aquilo
a que se dá o nome de ‘libertação’ é a cessação da ilusão da sujeição, e
virá após certo trabalho interior, não causada por ele, mas pela Causa
Primária, o absoluto. O segredo é este: não há caminhos, não há lugar
aonde ir, pois já estamos lá.
Para o Zen, a construção não é superior à destruição (a criação implica tanto destruição quanto construção), a afirmação não é superior à negação, nem o prazer à dor, o amor ao ódio, a vida à morte, o belo ao feio. São fenômenos opostos, mas perfeitamente iguais e complementares. Há, é evidente, preferência dos seres vivos por aquilo que dá prazer. Isso resulta logicamente do desejo de existir, que está no homem e nos demais seres. Na visão do místico, o homem realizado, isto é, liberto do determinismo irracional, e que vive identificado com o Princípio da ordem cósmica, livre da necessidade ilusória de existir e da decorrente preferência pela vida em detrimento da morte, esse homem produz ações boas e construtivas e não más e destrutivas. Mas, não significa que ele seja bom e construtivo, pois já superou esses sentimentos dualistas próprios do homem comum.
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