... a
necessidade, a paixão e o amor, acho que tudo isso está
relacionado entre si. Se pudermos examinar esta matéria de modo profundo e
fundamental talvez então possamos compreender todo o significado
do desejo. Mas, antes de podermos compreender o desejo, com todos os
seus conflitos e torturas, acho necessário compreender-se a questão da
necessidade.
Naturalmente,
temos necessidade de certas coisas exteriores, superficiais, tais sejam
roupas, teto e alimentos. Estas coisas são essenciais para todos nós.
Mas, necessitamos realmente de mais alguma coisa? Psicologicamente,
existe uma necessidade real de sexo, de fama, do imperioso impulso da
ambição, do perpétuo ansiar por mais e mais? De que necessitamos,
psicologicamente? Pensamos que necessitamos de muitas coisas, e daí é
que resulta todo o sofrimento da dependência.
Mas, se examinarmos realmente, se investigarmos profundamente a
questão, existe alguma necessidade essencial, psicologicamente,
interiormente? Acho que valeria a pena fazermos seriamente esta pergunta
a nós mesmos. A dependência psicológica de outra pessoa nas relações, a
necessidade de estar em comunhão com outro, a necessidade de aderir a
um dado padrão de pensamento e de atividade, a necessidade de
preenchimento, de nos tornarmos famosos — todos conhecemos essas
necessidades e constantemente estamos cedendo a elas. E penso que seria
significativo se pudéssemos, cada um de nós, tentar descobrir quais são
realmente as nossas necessidades e até que ponto delas dependemos.
Porque, se não compreendermos a necessidade, não seremos capazes de
compreender o desejo, não seremos capazes de compreender a paixão e, por
conseguinte, o amor. Seja rico, seja pobre, um homem necessita
evidentemente de comida, de roupa e de teto, embora, mesmo aí, a
necessidade possa ser limitada, pequena, ou expansível. Mas, além dessa,
existe realmente alguma necessidade? Por que se tornaram tão
importantes as nossas necessidades psicológicas, por que se tornaram uma
força tão imperiosa e compulsiva? São elas, meramente, uma fuga de algo
muito mais profundo?
Em nossa
investigação não estamos procedendo analiticamente. Estamos tentando
encarar o fato, ver exatamente o que é; e isso não requer nenhuma
espécie de análise, de psicologia, de engenhosas e digressivas
explicações. O que estamos tentando é ver por nós mesmos quais são as
nossas necessidades psicológicas, e não explicá-las, não
racionalizá-las, e sem perguntar: “Que faremos sem elas? Eu tenho de
tê-las”. Isso fecha a porta à ulterior investigação. E, evidentemente, a
porta está também hermeticamente fechada quando a investigação é
puramente verbal, intelectual ou emocional. A porta está aberta quando
desejamos realmente enfrentar o fato, e isso não requer um intelecto
extraordinário. Para se compreender um problema muito complexo,
necessita-se de uma mente clara, simples; mas nega-se a simplicidade e a
clareza quando temos uma quantidade de teorias e estamos tentando
evitar o problema.
A questão é: Por que temos essa imperiosa necessidade de preencher-nos, por
que somos tão cruelmente ambiciosos, por que tem o sexo tão
extraordinária importância em nossa vida? Não importa a qualidade ou a
quantidade de nossas necessidades, ou se alguém tem “o máximo” ou “o
mínimo”; mas, por que existe esse tremendo impulso para nos
preenchermos, na família, num nome, numa posição, etc., com todas as
respectivas ansiedades, frustrações e sofrimentos — impulso que a
sociedade estimula e a igreja abençoa?
Ora, se
examinardes isso, pondo de parte a reação de dizer: “Que me aconteceria
se eu não tivesse êxito na vida?” — descobríreis, sem dúvida, algo muito
mais profundo, ou seja o medo de “não ser”, do isolamento completo, do vazio e da solidão. Ele lá está, profundamente oculto, esse anseio tremendo, esse medo de se ver isolado de tudo.
Eis a razão por que nos apegamos a todas as formas de relação. Eis por
que existe a necessidade de pertencer a alguma coisa, a um culto, uma
sociedade, de entregar-se a certas atividades, de ater-se a determinada
crença; porque, dessa maneira, podemos fugir da realidade interior, profunda.
É esse medo, por certo, que força a mente, o intelecto, nosso ser
inteiro, a aderir a uma dada forma de crença ou de relação, a qual se
torna, então, necessidade.
Não sei se
alcançastes este ponto, nesta investigação, — não verbalmente, porém
realmente. Isso significa descobrir diretamente e enfrentar o fato de se
ser nada, de se estar interiormente vazio
como uma concha e coberto das joias do saber e da experiência que, na
realidade, nada mais são do que palavras e explicações. Ora, para
enfrentar esse fato sem desespero, sem sentir quanto ele é terrível,
porém, simplesmente, “ficar com ele”, é necessário em primeiro lugar
compreender a necessidade. Se compreendermos o significado da
necessidade, ela não terá mais tanta preponderância, em nossa mente e
coração.
Voltaremos a
este tópico mais tarde. Mas passemos a considerar o desejo. Conhecemos —
não é verdade? — o desejo que se contradiz, se tortura, se lança em
diferentes direções; a dor, a agitação, a ansiedade do desejo, e o
disciplinar, o controlar dele. E, em nossa eterna batalha com ele,
torcemo-lo, desfiguramo-lo, tornamo-lo irreconhecível; mas ele subsiste,
vigilante, expectante, premente. O que quer que se faça — sublimá-lo,
fugir-lhe, rejeitá-lo ou aceitá-lo, soltar-lhe as rédeas — ele está
sempre presente. E sabemos que os instrutores religiosos e outros têm
dito que devemos ser isentos de desejos, cultivar o desapego — coisa
realmente absurda, porquanto o desejo tem de ser compreendido e, não,
destruído. Se destruís o desejo, podeis destruir a própria vida. Se
pervertemos o desejo, se o moldamos, controlamos, dominamos, reprimimos,
podemos estar destruindo algo extraordinariamente belo.
Temos de
compreender o desejo; mas é dificílimo compreender essa coisa tão cheia
de vitalidade, tão exigente e premente, pois no próprio preenchimento do
desejo gera-se a paixão, com os prazeres e dores respectivos. E para se
compreender o desejo não deve, naturalmente, haver escolha. Não se pode
julgar o desejo chamando-o “bom” ou “mau”, “nobre” ou “ignóbil”, ou
dizer: “Conservarei este desejo e rejeitarei aquele”. Tudo isso deve ser
posto de parte para podermos descobrir a verdade relativa ao desejo —
sua beleza, fealdade, ou o de adquirir conhecimentos e acumular vários
tipos de experiência, ao que quer que seja. Este é um assunto muito
interessante, mas aqui no Oeste, ou Ocidente, muitos desejos podem ser
preenchidos. Tendes carros, prosperidade, melhor saúde, a possibilidade
de ler livros, ao passo que no Oriente existe ainda carência de
alimentos, de roupa e de moradia, bem como a desdita e a degradação da
pobreza. Mas tanto no Ocidente como no Oriente, o desejo sempre arde em
todos os sentidos; ele está sempre presente, exteriormente e também
interiormente, bem entranhado. O homem que renuncia ao mundo está tão
tolhido pelo seu desejo de buscar Deus, como o está o homem que busca a
prosperidade. Assim, o desejo está presente a todas as horas, ardente,
contraditório, criando agitação, ansiedade, culpa e desespero.
Não sei se
já fizestes experiências a esse respeito; mas que aconteceria se não
condenássemos o desejo, se não o julgássemos “bom” ou “mau”, porém
ficássemos simplesmente apercebidos dele? Será que sabeis o que
significa “estar apercebido de alguma coisa”? Em geral, não estamos
“apercebidos”, porque nos acostumamos a condenar, a julgar, a avaliar, a
identificar, a escolher. A escolha, evidentemente, impede o
percebimento, porque a escolha é sempre feita como resultado de
conflito. Estar apercebido, ao entrar numa sala, ver os móveis, o tapete
ou a falta dele, etc. — ver, simplesmente, estar apercebido de tudo sem
tendência para julgar — é dificílimo. Já experimentastes olhar para uma
pessoa, uma flor, uma ideia, uma emoção, sem fazer escolha, sem emitir
julgamento?
E se
fizermos o mesmo com o desejo, se “vivermos com ele” — sem rejeitá-lo ou
dizer “Que farei com este desejo? Ele é tão feio, veemente, violento”,
sem lhe aplicar um nome, um símbolo, sem encobri-lo com uma palavra —
existe então ainda a causa da agitação? É então o desejo algo que se
deve lançar fora, destruir? Desejamos destruí-lo porque um desejo está
em antagonismo com outro, criando conflito, sofrimento e contradição; e
pode-se ver como tentamos fugir desse conflito perene. Assim, pode-se
estar apercebido da totalidade do desejo? O que entendo por “totalidade”
não é simplesmente um desejo ou muitos desejos, mas a “qualidade total”
do próprio desejo. E só se pode estar apercebido da totalidade do
desejo, quando não há opinião a seu respeito, nem palavra, nem
julgamento, nem escolha. Estar apercebido de cada desejo ao surgir, não se identificar com ele nem condená-lo
— nesse estado de alerta existe desejo ou o que existe é uma chama, uma
paixão, que nos é necessária? A palavra “paixão” é de ordinário
reservada para uma coisa: o sexo. Mas, para mim, paixão não é sexo.
Precisamos de paixão, intensidade, para podermos viver realmente com uma
coisa; para vivermos plenamente, contemplarmos uma montanha, uma
árvore, olharmos realmente para um ente humano, devemos ter intensidade
apaixonada. Mas essa paixão, essa chama é negada, quando estamos
tolhidos por vários impulsos, exigências, contradições, temores. Como
pode sobreviver uma chama se a sufocamos com uma quantidade de fumo?
Nossa vida é só fumaça; buscamos a chama, mas a estamos negando pelo
reprimir, controlar, moldar a coisa que chamamos desejos.
Sem a
paixão, como pode haver beleza? Não me refiro à beleza de quadros,
edifícios, pinturas de mulheres, etc., que têm suas peculiares formas de
beleza, mas não estamos tratando da beleza superficial. Uma coisa
construída pelo homem, como uma catedral, um templo, um quadro, um
poema, ou uma estátua, pode ser ou pode não ser bela. Mas existe uma
beleza superior ao sentimento e ao pensamento e que não pode ser
percebida, compreendida ou conhecida se não existe paixão. Mas não
interpreteis erroneamente a palavra “paixão”. Não é uma palavra feia;
não é uma coisa adquirível no mercado ou de que se pode falar
romanticamente. Não tem absolutamente nenhuma relação com a emoção, o
sentimento. Não é coisa respeitável; é uma chama destruidora de quanto é falso. E temos sempre tanto medo de deixar essa chama consumir as coisas que nos são caras, as coisas que chamamos importantes!
Afinal de
contas, a vida que atualmente levamos, baseada em necessidades, desejos e
métodos de controlar o desejo, faz-nos mais superficiais e vazios do
que nunca. Podemos ser talentosos, ilustrados, e capazes de repetir tudo
o que aprendemos; mas as máquinas eletrônicas fazem a mesma coisa e já,
em certos setores, as máquinas se tornaram mais capazes do que o homem,
mais exatas e rápidas em seus cálculos. E assim estamos sempre voltando
a este mesmo tópico, ou seja, que a vida que vivemos atualmente é bem
superficial, estreita, limitada, e isso porque, profundamente, estamos vazios, sós, e sempre tentando encobrir, preencher esse vazio;
por isso, a necessidade, o desejo se torna uma coisa terrível. Nada
pode preencher esse profundo vazio interior — nem deuses, nem
salvadores, nem o saber, nem as relações, nem os filhos, nem o marido,
nem a esposa — nada. Mas se a mente, o intelecto, a totalidade de vosso ser, é capaz de encará-lo, de “viver com ele”, vereis então que, psicológica, interiormente, não há necessidade de coisa alguma. Esta é a verdadeira liberdade.
Isso, porém, requer profundo discernimento, profunda investigação, incessante vigilância; e desse modo talvez venhamos a saber o que é o amor.
Como pode haver amor quando há apego, ciúme, inveja, ambição e todas as
hipocrisias que acompanham esta palavra? Mas, se tivermos passado por aquele vazio
— que é uma realidade e não um mito nem uma ideia — veremos que o amor e
o desejo e a paixão são uma mesma coisa. Se se destrói uma, destrói-se a
outra; se se corrompe uma, corrompe-se a beleza. Para se penetrar tudo
isso requer-se, não uma mente desapegada, dedicada ou uma mente
religiosa, mas uma mente disposta a investigar, uma mente nunca
satisfeita, que está sempre a olhar, a vigiar, a observar a si própria — a conhecer a si mesma. Sem o amor, nunca será possível descobrir o que é a verdade.
PERGUNTA: Como se pode descobrir qual é o nosso problema principal?
KRISHNAMURTI:
Por que dividir os nossos problemas em principais e secundários? Não é
tudo problema? Por que fazer deles pequenos problemas ou grandes
problemas, problemas essenciais ou não essenciais? Se pudéssemos
compreender um só problema, examiná-lo muito profundamente, por maior ou
menor que ele seja, esclareceríamos todos os outros problemas. Esta não
é uma resposta retórica. Consideremos um problema qualquer: cólera,
ciúme, inveja, ódio — conhecemo-los todos muito bem. Se examinardes com
profundeza a cólera, em vez de procurardes expulsá-la, que encontrais
então? Por que se encoleriza uma pessoa? Porque se sente magoada: alguém
lhe disse algo ofensivo; e se lhe dizemos algo que a lisonjeia,
sente-se satisfeita. Por que se ofende uma pessoa? Porque atribui
importância a si mesma, não é verdade? E por que existe essa importância
própria? Porque cada um tem de si mesmo uma ideia, um símbolo, uma
imagem — uma ideia do que deveria ser, do que é, do que não deveria ser.
Por que cria uma pessoa uma imagem a respeito de si própria? Porque
nunca estudou o que ela é realmente. Pensamos que devemos ser isto ou
aquilo, o ideal, o herói, o exemplo. O que nos desperta a cólera é ver
que está sendo atacado o nosso ideal, a ideia que temos de nós mesmos. E
a ideia que temos de nós mesmos representa nossa fuga ao fato, ao que
somos realmente. Mas, quando estais observando o fato real, o que sois
realmente, ninguém vos pode ofender. Então, se uma pessoa é mentirosa e
lhe dizem que ela é mentirosa, isso não pode significar uma ofensa,
porque se trata de um fato. Mas, se queremos aparentar que não somos
mentirosos e alguém nos diz que o somos, tornamo-nos encolerizados,
violentos. Assim, estamos sempre vivendo num mundo imaginário, mítico, e
nunca no mundo da realidade. Para se observar o que é, vê-lo, familiarizar-se com ele, não deve haver julgamento, nem avaliação, nem opinião, nem medo.[...]
PERGUNTA: Por que nos assalta o medo ao nos tornarmos apercebidos de nosso próprio vazio?
KRISHNAMURTI:
O medo só se manifesta quando estamos fugindo da coisa que é; quando a
estamos evitando, repelindo. Se vos adiais verdadeiramente em presença
da coisa, olhando-a de frente, existe medo então? Fugir, movimentar-se
para longe do fato, atemoriza. O temor é “mecanismo” de pensamento, e o
pensamento origina-se do tempo; e se não compreenderdes todo o
“mecanismo” do pensamento e do tempo, não compreendereis o medo. Olhar o
fato, sem procurar evitá-lo, é pôr fim ao temor. [...]
PERGUNTA: A libertação pode ser realizada por todos?
KRISHNAMURTI:
Decerto. Ela não é dada só a uns poucos. O estado de libertação não é
uma espécie de “aristocracia”; está ao alcance de quantos queiram
investigá-lo. Lá está, com beleza e força sempre mais ampla e profunda,
quando há autoconhecimento. E cada um pode começar a conhecer-se
observando a si próprio, como quem se vê ao espelho. O espelho não
mente; mostra-vos vossas feições exatamente como são. Da mesma maneira
podeis observar-vos, sem desfiguração. Começais então a descobrir-vos. É
uma coisa extraordinária o autoconhecimento. O caminho da realidade,
daquela imensidão desconhecida, não passa pela porta de uma igreja nem
por livro nenhum, mas apenas pela porta do autoconhecimento.
Krishnamurti, O Passo Decisivo
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