AMOR, SEXO E AUTOTRANSCENDÊNCIA
Por Que a Felicidade Surge Pela Devoção Altruísta
Se o desejo de ser honesto for maior que
o desejo de ser ‘bom’ ou ‘mau’, então o poder
terrível dos nossos erros* revelar-se-á. E atrás do
erro surgirá o temor (o temor de ser excluído da
vida) e atrás do temor, a dor (a dor de não ser amado)
e atrás desta dor do isolamento, o mais íntimo, o mais
recôndito, o mais secreto de todos os desejos humanos:
o desejo de amar e entregar-se em amor e fazer parte
da corrente viva que chamamos de fraternidade. E
no momento em que o amor é descoberto por
detrás do ódio, todo ódio desaparece.”
(Fritz Kunkel, “In Search of Maturity”)
Quando
falamos e pensamos no amor, devemos lembrar que ele é um fenômeno
especificamente humano. Devemos cuidar para que ele seja preservado em
sua humanidade, ao invés de ser tratado de forma reducionista. O
reducionismo é um procedimento pseudocientífico que toma os fenômenos
humanos e, ou os reduz, ou os deduz a partir de fenômenos inferiores ao
homem. O amor, por exemplo, é frequentemente interpretado de maneira
reducionista, como mera sublimação dos impulsos e instintos sexuais que o
homem compartilha com todos os outros animais. Tal interpretação
bloqueia o real entendimento de todos os diversos fenômenos humanos.
Na
verdade, o amor é aspecto de um fenômeno humano mais abrangente que vim
a chamar de autotranscendência.[1] Com este termo desejo expressar que o
ser humano sempre se relaciona e está orientado em direção a algo
externo a si. O homem não está, como algumas teorias motivadoras da
atualidade gostariam de nos fazer crer, preocupado basicamente em
gratificar necessidades e satisfazer impulsos e instintos e, em assim
procedendo, manter ou recuperar a homeostase, isto é, o equilíbrio
interior, um estado sem tensões. Por mérito da qualidade de
autotranscendência da realidade humana, o homem está preocupado
basicamente em ir além de si mesmo, seja na direção de um significado
que ele queira preencher, ou na direção de um outro ser humano a quem
ele deseje encontrar no plano amoroso. Em outras palavras, a
autotranscendência manifesta-se através do serviço a uma causa ou pelo
amor a uma outra pessoa.
O
encontro amoroso, no entanto, impede que se considere e se utilize
outro ser humano como um meio para atingir um fim. Ele impede, por
exemplo, que usemos alguém como um mero instrumento para reduzir as
tensões provocadas e criadas pelos impulsos e instintos libidinosos ou
agressivos. Tal atitude para com o parceiro é, de qualquer modo, uma
distorção do sexo humano.
Isto
se deve ao fato de que o sexo humano é sempre mais do que simples sexo,
e é mais do que simples sexo precisamente na medida em que serve e
funciona como a expressão física de algo metassexual, a saber, a
expressão física do amor. E somente na medida em que o sexo desempenha
esta função de corporificação, de encarnação do amor – apenas então ele
também atinge o clímax de uma experiência verdadeiramente
recompensadora. Assim, Maslow estava certo ao ter salientado que as
pessoas que não sabem amar nunca extraem do sexo a mesma emoção como as
que amam. E dentre aqueles fatores que mais contribuíram para enaltecer a
potência ao grau mais elevado, segundo 20.000 leitores de uma revista
americana de psicologia que responderam a um questionário sobre o
assunto, estava o romantismo, quer dizer, algo que se aproxima do amor.
É
claro que não há muita precisão em dizer que somente o sexo humano é
mais do que mero sexo. Conforme Irenaeus Eibl-Eibesfeldt [2] evidenciou,
em alguns vertebrados, o comportamento sexual serve à coesão grupal, e
este é particularmente o caso dos primatas que vivem em bandos: assim,
em determinados símios, a relação sexual às vezes supre de forma
exclusiva uma finalidade social. Nos humanos, afirma Eibl-Eibesfeldt,
não há dúvida de que a relação sexual serve à propagação da espécie, mas
também à relação monogâmica entre os parceiros.
Porém,
embora o amor seja um fenômeno humano por sua própria natureza, a
humanidade do sexo é apenas o resultado de um processo de
desenvolvimento – é o produto do amadurecimento progressivo.[3]
Comecemos com a diferenciação feita por Sigmund Freud entre a finalidade
dos impulsos e instintos e o seu objeto: poder-se-ia dizer que a
finalidade do sexo é a redução das tensões sexuais, ao passo que o seu
objeto é o parceiro sexual. Porém, no meu modo de ver, isto só se aplica
à sexualidade neurótica. Para a pessoa madura, o parceiro não é de
forma alguma um “objeto”; a pessoa madura, ao contrário, vê nele um
outro sujeito, um outro ser humano, em sua própria humanidade; e, se
realmente o amar, até mesmo percebe nele uma outra pessoa, o que
significa que o vê em sua singularidade – e só o amor capacita uma
pessoa a captar outra pessoa nessa mesma singularidade que constitui a
pessoalidade de um ser humano.[4]
A
promiscuidade é, por definição, exatamente o oposto de uma relação
monogâmica. Um indivíduo que cede à promiscuidade não precisa considerar
a singularidade de um parceiro e, portanto, não pode amá-lo. Uma vez
que somente o sexo que esteja embutido no amor pode ser realmente
recompensador e satisfatório, a qualidade da vida sexual de um tal
indivíduo é inferior. Não é de admirar, então, que ele tente compensar
esta falta de qualidade com a quantidade de atividade sexual. Isto, a
seu turno, exige uma estimulação sempre mais variada e crescente, como a
que é fornecida, por exemplo, pela pornografia.
Disto
se poderia depreender que não somos perdoados de modo algum por
glorificarmos tal fenômeno de massa como a promiscuidade e a
pornografia, considerando-os algo progressivos; eles são antes
regressivos; afinal, são sintomas de um retardamento que deve ter
ocorrido na maturação sexual da pessoa.
Não
devemos esquecer que o mito do sexo-pelo-prazer-do-sexo (ao invés de
permitir que o sexo se torne a expressão física de algo metassexual),
enquanto algo progressivo, é vendido e difundido pelas pessoas que sabem
que isto é um negócio lucrativo.
O
que me intriga é o fato de a nova geração comprar não só o mito, mas
também a hipocrisia que ele oculta. Em uma época como a nossa, em que a
hipocrisia nos assuntos relativos a sexo é tão condenada, é estranho ver
a hipocrisia daqueles que propagam uma certa liberação de qualquer
censura passar despercebida. Será assim tão difícil reconhecer que sua
real preocupação é a liberdade ilimitada para ganhar dinheiro? [5]
Mas
não pode haver negócio bem sucedido a menos que exista uma necessidade
substancial a ser atendida por este mesmo negócio. E, de fato, estamos
presenciando, em nossa cultura atual, o que se poderia chamar de
“inflação do sexo”. Só podemos entender este fenômeno em oposição a um
fundo muito amplo. Hoje em dia somos confrontados com um número sempre
crescente de clientes que reclamam de uma sensação de ausência de
significação, de vazio, vácuo interior, vazio existencial, como eu
costumo chamá-lo. Isto se deve a dois fatos: em contraste com o animal, o
homem não é informado pelos impulsos e instintos quanto ao que deve
fazer; e, em contraste com o homem de tempos atrás, as tradições e os
valores não lhe dizem mais o que deveria ser feito. Em nossos dias, ele,
às vezes, não sabe mais o que realmente deseja.[6]
É
precisamente dentro deste vazio existencial que a libido sexual está se
hipertrofiando. E é esta hipertrofia que provoca a “inflação do sexo”.
Como em qualquer espécie de inflação – por exemplo, a do mercado
financeiro – a inflação sexual está associada à desvalorização. E o sexo
está tão desvalorizado quanto está desumanizado. Assim, observamos a
tendência atual de levar uma vida sexual que não esteja integrada na
vida particular da pessoa, mas, ao contrário, orientada pelo prazer. A
despersonalização do sexo é compreensível uma vez que a diagnostiquemos
como sintoma daquilo que denomino frustração existencial: a frustração
da procura de um sentido pelo homem. [7]
Essas
são as causas; mas o que dizer dos efeitos? Quanto mais a procura de
sentido de alguém for frustrada, mais o indivíduo embarca no que, desde a
Declaração de Independência da América, tem sido chamado de “busca da
felicidade”. Em última análise, a busca pretende servir ao propósito da
intoxicação e da estupefação. Mas, que tristeza, é a própria busca da
felicidade que a condena ao fracasso. A felicidade não pode ser
perseguida porque ela deve seguir-se ao natural, e ela só pode vir como
resultado do viver a autotranscendência, a dedicação e a devoção para
com a causa a ser servida, ou a pessoa a ser amada.
Em
nenhum outro lugar esta verdade é mais perceptível do que no campo da
felicidade sexual. Quanto mais a transformarmos em um objetivo, tanto
mais nos escapará. Quanto mais um homem tentar demonstrar sua potência,
mais propenso estará a tornar-se impotente; e quanto mais uma mulher
tentar demonstrar a si mesma que é capaz de obter gozo completo, maior
tendência terá a ser vítima de frigidez. E a maior parte dos casos de
neurose sexual de que tomei conhecimento nas minhas muitas décadas de
prática como psiquiatra pode ser facilmente atribuída a este estado de
coisas.
Assim,
a tentativa de curar tais casos tem de começar pela eliminação do
caráter de exigência que o neurótico sexual geralmente imputa e atribui à
realização sexual. Elaborei a técnica por meio da qual este tratamento
pode ser implementado, em artigo publicado no International Journal of
Sexology, em 1952.[8] O que desejo afirmar aqui, contudo, é o fato de
que nossa cultura atual – que, devido à motivação delineada acima,
idolatra a realização sexual – contribui ainda mais com o caráter de
exigência experimentado pelo neurótico sexual e, assim, com a sua
neurose.
O
uso da pílula, que permitiu maior exigência e espontaneidade às
parceiras, encorajou involuntariamente esta tendência. Autores
americanos observam que o movimento de liberação feminina, por ter
libertado as mulheres de antigos tabus e inibições, trouxe como uma de
suas consequências que até mesmo as colegiais se tornaram muito mais
exigentes quanto à sua satisfação sexual, reclamando-a de seus colegas
de escola.[9] O resultado paradoxal foi uma nova série de problemas
chamados de “impotência colegial” ou “a nova impotência”.[10]
Os
tabus e inibições vitorianos estão desaparecendo, e, à medida em que
essa liberdade verdadeira vai sendo obtida, um passo à frente está sendo
dado. Porém, a liberdade ameaça degenerar em mera permissão e
arbitrariedade, a menos que seja vivenciada em termos de
responsabilidade. É por isso que não canso de recomendar que a Estátua
da Liberdade da Costa Leste seja complementada por uma Estátua da
Responsabilidade na Costa Oeste.
Viktor E. Frankl
NOTAS:
[1] Frankl, V.E., “Psychotherapy and Existentialism”, Washington Square Press, Nova Iorque, 1967.
[2] Eibl-Eibesfeldt, I., “Frankfurter Allgemeine Zeitung”, 28 de fevereiro de 1970.
[3] Frankl, V.E., “The Doctor and the Soul”, Vintage Books, Nova Iorque, 1973.
[4] Frankl, V.E., “Man’s Search for Meaning”, Pocket Books, Nova Iorque, 1963.
[5]
Frankl, V.E., “Encounter: The Concept and Its Vulgarization”, The
Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 1 (1973), p. 73.
[6]
Frankl, V.E., “The Feeling of Meaninglessness: A Challenge to
Psychotherapy”, The American Journal of Psychoanalysis, 32 (1972), p.
85.
[7] Frankl, V.E., “Sede de Sentido”, Quadrante, 087706-9 (código do catálogo).
[8] Frankl, V.E., “The Pleasure Principle and Sexual Neurosis”, The International Journal of Sexology, 5 (1952), p. 128.
[9] Ginsberg, G.L., Frosch, W.A. and Shapiro, T., “The New Impotence”, Arch. Gen. Psychiat., 26 (1972), p. 218.
[10]
Konrad Lorenz mostrou não ser somente entre os humanos que o caráter de
exigência ou, no que diz respeito ao assunto, a agressividade sexual
por parte da fêmea pode resultar na impotência do macho; isto ocorre
também entre os animais. Existe uma espécie de peixe cujas fêmeas
costumam nadar “de modo faceiro” para longe dos machos em busca de
acasalamento. Todavia, Lorenz conseguiu treinar uma fêmea a fazer o
oposto – aproximar-se à força do macho. A reação deste? Exatamente a que
suspeitaríamos que um colegial demonstrasse: completa incapacidade de
concluir a relação sexual!
*Na
citação de abertura do texto acima, substituímos a palavra “vícios”,
que em português tem uma conotação negativa específica, pela palavra
“erros”, mais ampla e que se aplica a todos. (Carlos Cardoso Aveline)
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