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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

 O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - II  

A essência de seus ensinamentos

O homem, ao se ligar a alguma organização, crença, afeto ou atividade, deixa-se possuir por elas e, ao mesmo tempo, pensa que as possui. Essa posse é considerada, por todos, uma ação que visa ao bem, que se destina a melhorar o mundo e que, por isso, representa amor. Controlar ou moldar alguém, em nome desse falso amor, exprime a ideia de possuir. É apenas o desejo de encontrar segurança e conforto psicológico numa pessoa ou coisa, mas tal desejo somente produz apego. Mas, no apego, só existem dor e medo (o medo de perder o objeto possuído), com a consequente reação que conduz ao desapego ou ao ódio. Dessa contradição entre apego e desapego, nascem conflito e frustração.

Nada possuir, nem mesmo uma ideia, nem coisa ou pessoa, é uma situação maravilhosa. Sempre que uma ideia ou pensamento cria raízes, existe posse e daí nasce a luta pela libertação (com ansiedade e sofrimento).

A solidão e o isolamento fazem parte do conhecido; deles há frequentes experiências, reais ou imaginárias. Da solidão nasce a auto-suficiência, que origina cinismo e medo, que dão origem a diferentes deuses. Mas o isolamento ou a solidão voluntários não levam à verdadeira solidão; o nascer desta deve ser tão natural e espontâneo como o nascer de uma flor, livre de motivo ou de busca de recompensa. A verdadeira solidão não surge na mente individual e não é percebida pelo ‘eu’. Na verdadeira solidão ocorre a criação que destrói o ‘eu’ (a memória, o conhecido), e está sempre na área do desconhecido.

“... em meio à conversa, a ‘coisa’ surgiu. Sua presença, extraordinariamente bela e grandiosa, transmitia êxtase inexprimível. Como se tudo estivesse parado, não havia a mais leve agitação, o mais leve pensamento ou visão (experiência dos sentidos). Não existia nem o observador que interpreta, observa, condena ou aprova. Só uma infinita e silenciosa imensidade que transmitia êxtase indizível. Estavam, ali, o começo e o fim de todas as coisas...”.

Seja o que for que façamos, as experiências e os traumas que sofremos não devem deixar marcas (na memória). Suas cicatrizes reforçam o ego e, à medida que envelhecemos, ele se fortalece e torna suas muralhas quase intransponíveis.

No auge da paixão e da sensibilidade é que experimentamos a essência das coisas. E a beleza é tal que está além da palavra e da imaginação. O volume e a forma, a luz, a cor e o som, estão limitados pelo espaço e pelo tempo, presos na contradição da dualismo do belo e do feio. Mas a verdadeira beleza está além do saber e da erudição, além do espaço-tempo, no reino do absoluto.

O sucesso, em qualquer área, no campo político ou religioso, na arte ou nos negócios, é selvagem. A conquista do sucesso produz mais egocentrismo, o que leva à ausência de compaixão e ao sofrimento.

O essencial é a destruição do passado, o total esvaziamento do cérebro, devendo, no entanto, a reação e a memória se dissiparem sem esforço.

O poder emana do ascetismo, da ação, do status, da virtude, da dominação, do mando. Mas, todas essas formas de poder são maléficas, pois corrompem e pervertem. O uso do dinheiro, do talento, da habilidade para obter o poder, ou o poder que de tudo isso emana, sempre é nocivo. Existe, porém, um poder inteiramente diferente. Ele não é adquirido com sacrifícios, virtudes, preces, boas ações ou crenças, nem pela adoração ou por meditações que visem ao auto-conhecimento. Todo esforço para ser ou para vir a ser isto ou aquilo deve cessar naturalmente. Só assim pode existir aquele poder que não representa o mal, aquele poder que é inexprimível (indizível).

É fácil a gente se iludir sobre quase tudo, especialmente sobre exigências, necessidades e desejos mais profundos e sutis. É uma tarefa difícil nos livrarmos inteiramente dessas coisas. Mas, é preciso libertar-nos delas, pois, do contrário, o cérebro cria toda forma de ilusão. Assim, desejar a repetição de uma experiência, por mais bela ou interessante que tenha sido, é criar terreno onde nasce o sofrimento. E a paixão do sofrimento é tão limitante quanto a paixão do poder. O homem adquire aquela força inefável ao libertar-se de toda forma de desejo e vontade, ao compreender que desejo e vontade são reações do ego e, assim, somente levam a conflito e sofrimento.

A ação humana se baseia no desejo, na escolha e na vontade, o que produz conflito, contradição e sofrimento. Toda ação desse tipo tem um motivo, uma causa e, daí, não ser ação pura mas reação, isto é, uma ação contaminada pelo ego. Mas, a ação oriunda daquela força não tem causa, nem motivo; é pura e, por isso, imensurável e é a própria essência da vida.

“A singular presença inundava o quarto... cada recanto de nosso ser estava invadido por aquela força poderosa que tudo purificava com sua ação sagrada. É a coisa que todos desejam e, por desejarem tanto, ela lhes escapa. O monge, o sacerdote, o sanyasi torturam sua natureza no desejo de encontrá-la, mas virtude nenhuma ou oração poderão suscitá-la. É que ela não pode ser adquirida. Toda súplica, toda busca, todo motivo, devem cessar. E essa força, esse amor, não existirá se a morte for o meio de alcançá-la”. (Se o homem morrer para alcançá-la?).

Com os olhos e cérebro treinados para observar, escolher, comparar, medir, avaliar, justificar e condenar, olhamo-nos interiormente, reconhecemos objetos comparando, o que vemos exteriormente, com aquilo que já temos na memória, elaboramos ideias e associações que se transformam em raciocínio. Mas esta operação não vai muito longe, pois se acha dentro dos limites de sua própria observação e razão. Esta contemplação interior ainda faz parte da visão externa e, portanto, as duas não diferem muito. Há, porém, um tipo de observação que é diferente da observação exterior que se reflete no mundo interior. O cérebro e os olhos têm visão parcial e incompleta. Para ter a visão completa, o cérebro deve estar vivo e desperto, sem perder a tranquilidade; precisa deixar de escolher e de julgar, e deve estar passivamente consciente. Então, aquela visão interior não sofrerá a influência das interpretações do ego; e do clarão da compreensão virá uma nova percepção.

Toda sensação e emoção vêm do cérebro (espaço-tempo), mas não o amor, a compaixão e a inteligência; estes brotam do atemporal.

Porque existe a deterioração, tanto interior quanto exterior? O tempo traz o desgaste e a destruição de todos os sistemas mecânicos; e, pelo abuso ou pela doença, traz o desgaste de toda espécie de vida orgânica. Mas, donde vem a decadência psicológica? Porque escolhemos, tantas vezes, o mal em vez do bem, o ódio em vez do amor, a ambição em vez da generosidade, a ação egocêntrica em vez da ação franca? Porque o ciúme e não o amor? Ver o fato é uma coisa; as opiniões, explicações, interpretações que lhes damos, são outra coisa. Ver o fato dessa decadência é da maior importância, e não o ver as razões e origens desse fato. Perante o fato, a explicação pouco significa e, assim, o satisfazer-se com explicações e palavras é um dos principais fatores da deterioração psicológica. Por que a guerra e não a paz? O fato é que somos violentos. O conflito, tanto o interior quanto o exterior, é nossa vida do dia-a-dia, na forma de ambição, de busca de sucesso, e de frustração. A compreensão profunda, desse fato, e não sua explicação, põe fim à deterioração. A escolha, uma das maiores causas da deterioração psicológica, deve cessar totalmente para fazer parar o processo dessa decadência. O desejo de preencher o vazio interior e a satisfação ou a frustração e tristeza que daí vêm, são, também, fatores desse processo. A percepção dos fatos, sem julgamentos e sem conceitos, põe termo à deterioração psicológica.

“Tamanha a imensidão daquele sentimento que o cérebro não podia nem assimilá-lo, nem se recordar dele... Nenhum pensamento podia corrompê-lo”.

Certas coisas estão bem claras:

1. Precisamos ser “indiferentes” ao aparecimento e ao desaparecimento dos fenômenos, dos acontecimentos, dos fatos do dia-a-dia.

2. O desejo de continuar ou repetir uma experiência, ou de memorizá-la, não deve existir, por mais gratificante que ela tenha sido.

3. É indispensável sensibilidade física e certa indiferença ao conforto.

4. “Deve haver sempre autocrítica e uma boa dose de humor...” (pois estamos sempre sujeitos a insucessos e frustrações).

5. É inútil perseguir a “coisa”, pois o seu surgimento é sempre espontâneo. E, para essa percepção, o cérebro deve estar imóvel e tranquilo.

É fundamental o ato de ver, mas ver sem discriminar ou comparar, sem conceituar, sem escolher, sem ideias, sem adicionar valores, sem interpretar; essas atividades significam interferência do ego e isto contamina todo o ato de ver. Erradamente, nós só olhamos para as coisas imediatas e, preocupados em satisfazer nossas necessidades básicas, olhamos para o futuro, contaminado sempre pelo passado. Estamos acostumados a ver somente aquilo que está perto de nós. Nosso olhar, como nosso cérebro, é limitado pelo espaço-tempo. Nunca vemos além disso, nem sabemos como fazê-lo. Mas, nossos olhos têm de ver além desse limite, além do limite das ideias e valores criados pelo homem (o que a meditação proporciona), porque, só então, surgirá aquela bênção que nenhum deus pode proporcionar.

Como é fácil nos iludirmos, projetar fantasias, sobretudo quando se trata do prazer. Mas, não existirá ilusão nem decepção se não existir em nós o desejo, consciente ou inconsciente, de experimentar, se nada buscamos, se estamos indiferentes a toda espécie de experiência.

Para que tenhamos maturidade é indispensável que exista:

1. total simplicidade, que vem da humildade; simplicidade não em relação a coisas ou posses, mas na própria essência do ser; simplicidade em tudo;

2. paixão intensa, não apenas física, mas também moral;

3. sensibilidade, tanto em relação às coisas do mundo exterior, quanto em relação àquela beleza que transcende o pensamento e o sentimento;

4. amor, não aquele amor que contém ciúme, apego, dependência, ou que se divide em carnal e divino;

5. uma mente que, sem qualquer objetivo, motivo ou desejo, penetre em suas próprias profundezas, livre para ir além do espaço-tempo.

Essas coisas são adquiridas pela meditação.


http://obuscadordedeus.blogspot.com 

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