ENSINAMENTOS ZEN - VII
A
essência do trabalho interior é tentar perceber, a todo instante, além
de toda a forma, interiormente, a sensação de
existir-mais-ou-menos-que-instantes-atrás. ‘Veja em sua própria
natureza. ’ O ‘terceiro olho’ está fechado e é preciso, com atenção,
olhar para o interior, de modo a eliminar a sua contração para que eu
possa ver, definitivamente, em minha própria natureza. Esse ‘olhar’ é o
esforço para ‘ver’ a sensação informal de existir-mais-ou-menos, que um
dia vai desencadear o satori. Essa sensação não tem continuidade pois,
mal me chega na sua pureza informal, me escapa, derivando para
percepções formais. Assim, só percebo meu estado de existência do
instante. Falta-lhe continuidade, a dimensão temporal, que devo
conquistar pelo treinamento, para que a percepção de existir seja uma
percepção contínua, uma consciência real.
Assim, a percepção de existir ao meu alcance, hoje, é limitada ao
instante presente. Varia incessantemente de acordo com as
incessantemente variáveis relações com o mundo exterior. E minha
consciência só colherá o fruto do satori quando chegar a perceber a
continuidade dessa percepção que é o espetáculo de minha criação. Diz o
Vedanta, ‘quando eu me tornar o espectador de meu espetáculo’. Em suma,
torne cada vez mais frequentes essas percepções instantâneas de
existir-mais-ou-menos-que-instantes-atrás para que haja uma percepção
contínua que será, então, pura percepção de existir. O olhar interior é
ver se, em conjunto, psique e corpo, me sinto melhor ou pior que
instantes atrás. Não importa se estou melhor ou pior; o que importa é
obter uma percepção contínua dessa oscilação do melhor para o pior e
vice-versa, do sentir-me feliz para o sentir-me infeliz, do recear para o
estar confiante etc. E só me é possível perceber esses estados variados
de existência quando as variações não dependem de minha atividade e sim
da atividade do ‘não-eu’, do mundo exterior, coisa que só acontece
quando me relaciono com atenção ativa com esse mundo. Portanto, sinta-se
no próprio centro de sua ação, onde quer que seja e em qualquer tempo.
Agora, podemos compreender porque o Zen diz: ‘Tao (o caminho) é nossa
vida do dia-a-dia’. Uma historieta: ‘Certo dia, um monge pediu ao mestre
que o instruísse no Zen. O mestre perguntou: ‘Você não almoçou?’
‘Almocei. ’, disse o monge. ‘Pois, então, vá lavar sua louça. ’ Nada de
extraordinário a fazer, mas as coisas do dia-a-dia, porém com total
atenção no que se faz. E por isso, ensina o Zen: ‘Quando estamos com
fome, comemos; quando estamos com sono, dormimos; em tudo isto, onde
intervém o finito ou o infinito? É só quando, cheio de inquietações, o
ego entra em cena e se desmanda, que nós paramos de viver e imaginamos
que nos falta alguma coisa.’ Assim, o caminho é a própria vida do
dia-a-dia, nada mais.
A batalha que temos de travar é contra a desatenção, essa nossa inércia
mental, geradora das inquietações interiores formais; é a luta para ir
contra essa corrente, avançando aos poucos até chegar a reintegrar nossa
consciência na fonte informal de nosso ser.
Vivemos, sempre, em dois planos: o das sensações, percebidas pelos
sentidos físicos, que é real; e o das imagens (interpretação que fazemos
do que percebemos com os sentidos físicos), que é mental, ilusório. No
primeiro, o homem se assemelha a todos os outros homens; no segundo,
iludido, ele pretende ser único, egotista. Em geral, sua atenção se
desloca de um para outro e se aplica apenas a um em cada instante, e os
filmes, reativo, do plano da sensação, e ativo, do plano da imagem, se
desenrolam continuamente. Tudo o que acontece no plano da sensação, e
que me dá segurança ou insegurança, influencia meu processo (ou meu
medo) de ser ou de não-ser, que se trava em mim sem tréguas. Enquanto
isso, o plano da imagem - que é o mundo exterior interpretado e
relembrado - nasce das interpretações que dou ao que percebo no plano
das sensações, associado ao que já tenho na memória.
Somente quando se adapta ao mundo exterior presente é que o homem vive
simultaneamente nos dois planos (graças às rápidas alternâncias de sua
atenção). Quando me esforço (com atenção) para perceber meu estado do
instante de existência, verifico que essa atenção dissolve meu filme
imaginativo ativo, porque minha atenção se desloca para o filme reativo.
Logo, a atenção dissolve minha vida no plano da imagem, que é ilusório,
purificando, assim, minha vida no plano da sensação, da percepção, que é
real. O trabalho interior elimina minha vida imaginativa e valoriza
minha vida orgânica, que é real. Essa dissolução progressiva da vida no
plano da imagem nos leva ao despertar para a Realidade. Essa perda é
terrível para nós, pois julgamos o ‘viver’, que está no plano da imagem,
superior ao ‘existir’, que está no plano da sensação. Isso é como a
morte (o morrer a cada instante, de Krishnamurti), uma renúncia ao ‘céu’
ilusório, a tudo que nos parecia ‘sagrado’ anteriormente. O
deslocamento da atenção para o plano das sensações reais dissolve as
‘miragens’ do plano da imagem (o filme emotivo-imaginativo) que faziam
com que eu atribuísse valor àquilo que não tem valor algum, pois é pura
ilusão. Embora o Zen afirme que nada temos a fazer, esse trabalho
interior exige atividade incessante da atenção como se estivéssemos ‘com
a cabeça quente, em chamas’, o tempo todo.
Não posso conhecer a força vital que permeia sem cessar o organismo,
por ser informal, mas posso percebê-la. Quando me sucede algo agradável,
se consigo expulsar de minha mente todas as idéias a isso relativas,
sinto em mim, diretamente, uma espécie de efervescência de vida em
excesso; quando sucede algo desagradável, se consigo afastar todas as ideias a ele relativas, sinto em mim, diretamente, uma espécie de vazio,
como uma torrente que me arrasta para o nada. Logo, posso levar a
atenção ao ponto exato em que tem início a manifestação do nascimento,
em meu ser, da energia primordial. Quando levo a atenção para perceber o
que está por trás da sensação agradável ou desagradável, verifico que a
agitação imaginativa (vinda da satisfação ou insatisfação) cessa. A
atenção no plano formal desintegra a energia vital; a atenção no plano
informal (de como me sinto, por exemplo), a mantém íntegra, a acumula,
acumulação necessária ao surgimento, de súbito, do satori.
A atenção ao koan (não é este que tem importância) faz com que a mente
se afaste do mundo das formas, que é o propósito dessa prática. Contudo,
é necessária a atenção ao mundo real presente das formas, que produz
excitação, agitação, fazendo com que a energia informal jorre de sua
fonte central; levando-se, então, a atenção para o informal, que impede a
desintegração da energia jorrada, esta é acumulada para o satori.
Segundo os místicos, o homem já participa da natureza de Buda; é
perfeito, nada lhe falta. Mas, não se dá conta disso por estar preso no
emaranhado de suas atividades imaginativas. Tais atividades são
necessárias no início da vida do homem, enquanto a máquina não está
ainda concluída. Mas, uma vez plenamente desenvolvida a máquina humana, a
imaginação impede a acumulação de energia necessária para se chegar ao
conhecimento não-dualista. Infelizmente, o homem toma o alívio
momentâneo de sua angústia, proporcionado pela imaginação, como uma
melhora real de suas condições, no sentido do anulamento da angústia. Na
realidade, esse alívio momentâneo tem um preço: o agravamento
progressivo da condição para a qual ele busca alívio. Ele crê na
utilidade de suas ‘ruminações mentais’, identificado com a mente
imaginativa, porque não vê nada em si mesmo além desse ‘eu’ pessoal, do
qual tem uma percepção dualista. Ignora a existência em si de algo
diferente do ‘eu’, invisível e que trabalha nas sombras, em seu
benefício.
No entanto, quando observa a vida de seu corpo, verifica que trabalhos
maravilhosos de todo tipo aí se realizam ‘espontaneamente’, sem que para
isso tenha concorrido aquilo que denomina ‘eu’. Seu organismo é mantido
por processos cuja complexidade desafia qualquer imaginação. Quem faz
tudo isso? Se o conhecimento mediato dualista espontaneamente se
desenvolveu, será que o conhecimento não-dualista não poderá também se
desenvolver espontaneamente?
Para o Zen, a evolução normal do homem é espontânea e inconsciente e
culmina no satori (como também afirma Krishnamurti). O Princípio age
continuadamente; mas o filme emotivo-imaginativo trabalha contra esse
desenvolvimento, por desperdiçar a energia. Porém, quando começamos a
compreender que essa força que nos faz evoluir age espontânea e
continuadamente em nós, mesmo que disso não estejamos conscientes,
veremos que o mundo dos fenômenos nos oferece um interesse menos
constrangedor. O Zen diz: “Desapegue-se; deixe que as coisas sejam como
são. Obedeça à natureza das coisas para estar em harmonia com o
Caminho.” E o homem passa a ver o mundo com ‘indiferença’ (como ensina
Krishnamurti). Por nós mesmos, somos incapazes de estabelecer em nós
qualquer harmonia. É o Princípio que o faz. Deixemos, portanto, de
oferecer resistência com nossas atividades imaginativas e com
desatenção, que o Princípio fará sua parte. E, à medida que deixo de dar
atenção a opiniões, as crenças diminuem e a Fé cresce. Por isso diz o
Zen: ‘O satori cai sobre vós de súbito, depois que esgotardes todos os
vossos recursos’.
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