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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

ENSINAMENTOS ZEN - II


O homem percebe, fora de si, fenômenos construtivos e destrutivos, positivos e negativos. Pelo desejo de existir, ele prefere necessariamente construção e não destruição. A preferência afetiva torna-se parcialidade intelectual, e ele passa a acreditar que o aspecto positivo do mundo é o bem, o único legítimo, e que deve eliminar, na medida do possível, o aspecto negativo, que é o mal. Daí decorre a ‘saudade’ de um ‘paraíso’ perdido, considerado livre de todo aspecto negativo. Nesse estágio de raciocínio imperfeito, o homem imagina a existência de dois princípios inferiores (opostos), mas não a do Princípio Superior, cósmico, universal e absoluto, que os concilia. Para ele, os impulsos construtivos, que vê dentro de si mesmo, são positivos, qualidades, virtudes, o bem; e os destrutivos, são negativos, defeitos, o mal. Do mesmo modo que imaginou um paraíso, imagina que o positivo precisa dominar o negativo; que a evolução consiste em eliminar todos os ‘defeitos’ e possuir apenas ‘virtudes’. Pensa que foi isso que o chamado ‘santo’ fez, o homem no qual existem apenas impulsos construtivos, e procura, a todo custo, imitá-lo. No entanto, uma evolução desse tipo não é compatível com a realização intemporal que exige a síntese (união) conciliadora dos opostos, na qual haverá equilíbrio perfeito entre impulsos negativos e positivos.

Ignorando a existência do Princípio Cósmico Único, o homem confere aos princípios inferiores uma natureza absoluta e passa a idolatrá-los. O positivo torna-se Deus e, o negativo, o Diabo, as forças que produzem o mal, criação inexplicável para cientistas e filósofos que não conseguem conciliar Deus, o misericordioso criador de todas as coisas, com a figura do Diabo, que é tido, pelas religiões populares, como o inimigo invencível do Criador e dos homens. Se o Diabo existe, é criação de Deus e implica em que Deus necessita do Diabo, senão não o teria criado ou, então, que não é misericordioso ou não tem forças para destruí-lo, coisas incompreensíveis.

Sem conhecimento de um Princípio Superior Conciliador dos opostos, essa visão dualista Deus-Diabo, ‘bem-mal’, é uma conclusão lógica natural para a mente que não teve uma iniciação mística. Mas essa é uma conclusão incompleta e, assim, ilusória.

Segundo o Zen, os dois princípios inferiores, iguais ‘numenicamente’ (no atemporal), são desiguais ‘fenomenicamente’ (no espaço-tempo), sendo o positivo superior ao negativo, do nosso ponto de vista. Contudo, se a força que move a irmã de caridade é rigorosamente igual à força que move a mão do assassino, a ajuda aos necessitados, ajuda que serve à vida, tem inegável superioridade sobre o ato de matar, que é contra a vida; mas esses dois atos, encarados do ponto de vista cósmico, são iguais, pois não passam de representantes simbólicos das forças positiva e negativa, que são iguais e complementares.

Assim, todo fenômeno construtivo manifesta o jogo da força ativa (ação), e todo fenômeno destrutivo manifesta a força passiva (reação). Eis porque o homem realizado é tão construtivo: ele se libertou das respostas condicionadas apenas reativas, e não mais ‘reage’ simplesmente’, mas, por ser ativo, ele ‘age’.

O comportamento destrutivo do homem ‘mau’ parece resultar de uma força destrutiva ‘ativa’. Mas, o que ocorre é que ele, de início, age para afirmar-se (construção) mas, em virtude de ignorância e de associações equivocadas, essa ação resulta em destruição (reação).

O homem realizado faz o ‘bem’ como mera conseqüência de ser realizado; ele já aboliu toda crença na primazia ilusória do principio inferior positivo, o ‘bem’. Sua conduta não é a do homem que se ‘domesticou’ para ser um ‘santo’; o comportamento deste, fixado, imitativo, sistematizado, pode acabar causando mais destruição do que construção. A conduta do homem realizado, ao contrário, gera mais construção do que destruição, sem que isso seja, em absoluto, uma meta para ele, pois decorre de sua realização e sua atividade se ajusta, de maneira totalmente adequada (ação correta) às circunstâncias. Em resumo, a ética verdadeira é resultado da percepção da Realidade intemporal. Antes disso, toda ética é prematura (forçada, imitação, falsa) e obstáculo (por exigir esforço, força de vontade), pelas restrições que estabelece (o eu está ativo, envolvido num esforço de vir a ter virtudes, ética), à obtenção do satori (iluminação) e de sua ética perfeita. A ética prematura é obstáculo ao satori porque provoca destruição da energia psíquica necessária à sua obtenção, já que exige, daquele que não é virtuoso, esforço para agir como se o fosse.

Isso não significa que o homem que se dedica à sua libertação deva anular sua preferência afetiva pelo ‘bem’ (deve abandonar toda e qualquer preferência) Ele deve aceitar essa preferência com a mesma compreensão e neutralidade com que deve aceitar toda sua vida interior; ele não deve transformar, essa preferência afetiva, numa parcialidade intelectual que seria obstáculo ao estabelecimento de sua paz interior. Não estamos condenando as doutrinas ‘espiritualistas’ que exaltam a virtude, porém o homem deve pensar e agir como considera que deve fazê-lo. Dizemos, apenas, que essas doutrinas, por si mesmas, não levam à obtenção do satori (devido à imposição e mandamentos e regras). Se deseja o satori, o homem deve buscar transcender, pela compreensão, toda doutrina que ensina qualquer parcialidade entre positivo e negativo (entre certo e errado). (Não esqueçamos que antes do satori, toda virtude é prematura e, por isso, forçada, não passando de imitação ou de obediência imposta pela sociedade e pelas religiões). (só não é prematura quando advém da experiência máxima).

O Zen afirma: ‘O caminho perfeito não oferece nenhuma dificuldade, exceto a de recusar toda preferência... (mesmo a preferência ao bem ou ao mal). A mínima preferência pode fazer céu e terra se separarem’ (nos traz de volta ao plano da dualidade ilusória).

As religiões afirmam que o homem deve lutar pela sua salvação, verdadeira contradição pois, então, o homem estaria sujeito (preso) ao dever de ser livre. E todos acreditam nisso que as religiões ensinam tanto que, em geral, o homem treme ante a possibilidade de morrer sem haver atingido a perfeição moral. Vê-se que o homem não pensou que um dever é sempre imposto por uma autoridade. Os religiosos dirão que essa autoridade é ‘Deus’. Mas, quem é esse Deus que, ao me impor algo, é distinto de mim e necessita de minha ação? Não foi ele que me criou como eu sou, sujeito a errar inúmeras vezes, mais inclinado ao mal que ao bem (como diz Teresa de Ávila)?

Assim, a angústia e a atenção do homem se concentram na questão da salvação, erro que lhe traz inquietude, sentimento de indignidade, cuidado egoísta sobre si mesmo, coisas que são obstáculos à sua paz mental, à harmonização interior, ao desapego ao próprio ego, enfim, que impedem o estabelecimento do clima interior de tranquilidade que condiciona a obtenção do satori. Essas religiões negam qualquer valor ao temporal e se concentram em obter a felicidade após a morte, engano que, fatalmente, implica na necessidade de ensinar os outros, pois, se acredito que tenho de promover minha salvação, não posso deixar de crer que tenho de levar os outros a promoverem a sua. Na pior das hipóteses, isso gera algo como a Inquisição; na melhor, gera o nascimento de inúmeras ‘religiões’ e igrejas que, como mostra a história, se dedicaram a influenciar e a confundir a mente de homens que não as questionavam e não lhes pediam nada.

Ao contrário, o Zen afirma que o homem já é livre, que não existe nenhum grilhão a que esteja submetido; somente ilusões de grilhões. E que ele gozará de total liberdade a partir do momento em que deixar de crer que precisa libertar-se, tirando das costas o terrível dever da salvação.

Por isso, o Zen diz: ‘Não ponha nenhuma cabeça acima da sua. Não busque a verdade; pare, apenas, de apegar-se a opiniões suas ou de outrem’ (como, também, ensina Krishnamurti).

EM BUSCA DE DEUS
http://obuscadordedeus.blogspot.com  

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