O IDEAL É UMA MANEIRA HIPÓCRITA
DE VER A VIDA
Observar, ver — essa é a coisa principal; ver o que realmente somos e
não o que achamos que deveríamos ser; observar nossa avidez, inveja,
ambição, ansiedade, medo, TAIS COMO EXISTEM REALMENTE, E SEM
INTERPRETAÇÃO, NEM JULGAMENTO. Nesse estado de observação não há esforço
algum. Temos que compreender isso claramente, porque estamos
condicionados para fazer esforço. Tudo o que fazemos envolve esforço,
luta. Se desejo mudar, se por exemplo, desejo deixar de fumar, tenho de
lutar, de forçar-me, de manter minha resolução e, assim, talvez eu acabe
deixando de fumar, mas minha energia terá se esgotado nessa batalha.
Pode-se abandonar alguma coisa sem esforço? O fumar é uma coisa muito
trivial. Abandonar o prazer, em todas as suas formas, porque o prazer
sempre produz dor, eis um problema exteriormente complexo. O que no momento nos interessa é isto:
Se temos de possibilidade de abandonar alguma coisa, de agir sem
esforço. Porque paz é isso, vocês não acham? A paz alcançada por meio de
uma batalha interior não é paz, porém, exaustão, pois a paz de modo
nenhum pode ser um resultado de esforço. Só vem quando há COMPREENSÃO.
Esta é uma palavra um pouco difícil. Compreensão não significa
"compreensão intelectual". Quando dizemos que compreendemos alguma
coisa, em geral entendemos uma apreensão intelectual, conceitual. Só
pode verificar-se a percepção, quando há atenção total. A atenção total
só é possível quando "NOS ENTREGAMOS" completamente. A mente, o corpo,
os nervos, todo o nosso ser fica então sobremodo ativo. Só então há
compreensão.
Temos de compreender nossa vida de entes humanos. Para nós, a vida é uma
caótica contradição. Não a estamos descrevendo sentimental,
emocionalmente ou noutro sentido qualquer, porém, tão só, em sua
realidade. Vemo-nos confusos, aflitos, ansiosos, aterrorizados,
desesperados. Esse medo e sofrimento estão sempre a inquietar-nos. Tal é
a nossa vida, e, no final de tudo e inevitavelmente, a morte. Só isso
sabemos. Podemos imaginar coisas, ter muitos ideais, fórmulas e fugas,
mas, quanto mais fugimos, tanto maior a contradição, tanto mais profundo
o conflito.
Podemos observar nossa vida, tal como realmente é e não como deveria
ser? Os ideais são de todo em todo fúteis. Não têm nenhuma significação.
São como o ideal dos que acreditam na não-violência e, na realidade,
são violentos. Isso é um fato. Os entes humanos SÃO violentos.
Demonstram-no em suas palavras, em seus gestos, em seus atos e
sentimentos. Cultivaram o IDEAL de "não ser violento" — que representa
um estado de paz, de ausência da violência. Há o FATO e o que "deveria
ser". Entre O QUE É e o "desejável", entre o fato e a ideia, a utopia,
"o que deveria ser", acha-se o intervalo de tempo. No esforço para
alcançar "o que deveria ser", estamos sempre a semear violência. O ideal
é uma maneira hipócrita de olhar a vida. Certamente, não há nenhuma
necessidade de ideal, se sabemos olhar o fato e dele libertar-nos.
Porque não sabemos olhar os fatos e LIBERTAR-NOS deles, pensamos que com
um ideal os resolveremos. Em verdade, o ideal, a utopia é uma fuga da
realidade. Sabendo-se olhar a violência, talvez se torne possível uma
ação de espécie diferente.
Sou violento e percebo que qualquer forma de fuga à realidade, ao fato
de que sou violento, TODA E QUALQUER FUGA — bebida, ideais, etc. —
DIMINUI A ENERGIA de que necessito para olhar o fato. Preciso dessa
energia para olhar, para manter-me completamente ATENTO. Isso também é
um fato simples. Se vocês desejam OLHAR qualquer coisa que seja,
necessitam de muita energia. Se só estão incompletamente atentos, porque
possuem ideais que não deviam ter, então estão dissipando a energia de
vocês e, por conseguinte, são incapazes de olhar. Olhar é uma operação
que requer TODA atenção de vocês. Só se pode OLHAR quando não se está
querendo alcançar nenhum ideal, nem desejando alterar O QUE É.
Só aparece o desejo de alterar O QUE É quando o fato é desagradável.
Quando agradável, não desejamos alterá-lo. Nossa preocupação é perseguir
o ideal e evitar a dor. Nosso maior interesse é o prazer e não a
violência ou a não-violência, a bondade, etc. Queremos prazer, e para
alcançá-lo estamos dispostos a tudo. Enquanto estivermos a olhar o fato
com a intenção de alterá-lo, não teremos possibilidade de alterá-lo,
porquanto nosso principal interesse é modificar o fato, para termos
prazer — ainda que seja um prazer muito nobre.
Devemos perceber isso
muito claramente, porque os nossos valores morais, éticos e religiosos
estão todos baseados no prazer. Eis o fato verdadeiro. Não é um fato
imaginário, como veremos, se NOS SONDARMOS MUITO PROFUNDAMENTE e
OLHARMOS TODOS OS VALORES QUE ESTABELECEMOS. Quando existe esse
princípio do prazer, tem de haver inevitavelmente dor. Olhamos a
violência com o fim de transformá-la num prazer e passamos deste a um
prazer maior; por isso somos incapazes de alterar o fato de que somos
violentos. Consideramos a vida com a mira no prazer.
No fundo os entes humanos são violentos por várias razões. Uma das
razões fundamentais é que todas as suas atividades se concentram em
perpetuar o EU, o EGO. A atividade egocêntrica é uma das causas da
violência. Por outro lado, a fim de realizar uma revolução radical,
tenho de compreender o princípio do prazer. Amo os meus desuses; isso
me proporciona enorme satisfação. Vocês amam os seus deuses, suas
fórmulas, a nacionalidade e a bandeira de vocês. O mesmo faço eu. Tudo
isso se baseia no prazer. Posso dar-lhe diferentes nomes, mas não
importa; este é o fato. Ora, é possível considerarmos a violência sem
procurarmos transformá-la em prazer; posso observar simplesmente o fato
de que sou violento?
Quando podemos olhar a violência, sem tecer a respeito dela
nenhuma imagem, qual é o estado da mente ou do cérebro que está a
olhar? Para nos libertarmos da imagem, temos de investigar muito
profundamente a questão da formação de imagens e, uma vez feito esse
exame, com máximo de escrúpulo e atenção, o cérebro não fica "em
branco", num estado de entorpecimento. Ao contrário, torna-se sumamente
ativo, porém não estará em atividade o "formador de imagens". Com essa
atenção pode-se OLHAR.
Krishnamurti