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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - IV  

A essência de seus ensinamentos 
 
A maturidade não resulta do tempo, nem é questão de idade ou de cultura. Nem livros, nem instrutores, nada e ninguém pode nos dar maturidade. Ela não é um fim em si mesma; e vem sem que o pensamento a procure; chega de súbito, imprevistamente. E é imprescindível haver, na vida, esse amadurecimento, que não resulta da doença ou do sofrimento, nem do esforço ou da esperança. Nele existe austeridade; não a austeridade da penitência ou do hábito religioso, mas da displicente e espontânea indiferença para com as coisas mundanas, frente a suas virtudes, seus deuses, sua respeitabilidade, esperanças e valores. Cumpre negar tudo isso para que nasça a austeridade contida no estar só. Estar só é viver livre de qualquer influência (de livros, gurus, crenças, opiniões). Essa solidão é a essência da austeridade, e surge quando o cérebro funciona com clareza, não perturbado por traumas psicológicos causados pelo medo e pelos conflitos.

Todo conflito destrói a sensibilidade e a energia do cérebro; a ambição, com seu incessante esforço de vir-a-ser algo mais, provoca desgaste do seu delicado mecanismo; a avidez e a inveja o perturbam através do prazer e da frustração. É essencial uma atenção sem escolha, uma percepção livre da ideia de receber ou de ajustamento a um padrão. Também, comer em excesso ou deleitar-se com alguma coisa, perturba o corpo e deixa o cérebro insensível.

“A coisa vem quando o cérebro não a está buscando, quando nem sequer estamos pensando nela...”.

A imaginação não tem qualquer valor e é perigosa; só o fato tem valor. A fantasia e a imaginação podem dar prazer, mas sempre decepcionam. Importa compreender a fantasia e a imaginação pois, no próprio ato de compreender, elas desaparecem. O cérebro deve cessar com sua incessante e habitual tagarelice do certo e do errado, do bom e do mau, do interpretar e comparar.

Experimentar sem o experimentador é algo completamente novo; nessa condição é que surge a ‘luz’. Não se trata de intuição, na qual o observador aceita, interpreta e obedece, de modo racional ou cego. Não é desejo, ânsia, que interpretamos como intuição ou “voz de Deus”. É preciso abandonar, duma vez, tudo isso que impede a compreensão desse sentimento, dessa percepção, desse estado de atenção; estado de atenção, pois “sentir” exige o rigor da lucidez, de um cérebro livre de qualquer confusão ou conflito.

Só se pode sentir a essência das coisas quando há humildade para investigar, até o fim e sem desvios, o sofrimento, a inveja, o medo, a violência, a ambição. O cérebro, porém, não possui essa humildade. Essa investigação requer a mais elevada forma de simplicidade, não aquela de vestir a roupa do mendigo ou de fazer apenas uma refeição por dia. É necessária a destruição de nossas defesas psicológicas, das resistências, das crenças e de seus deuses. Sem isso, nunca viremos a conhecer aqueles mistérios que são a vida e a morte, o amor e a beleza absolutos.

Meditação é a atenção em que existe um estado de consciência (de atenção) sem escolha no movimento de todas as coisas - o canto dos pássaros, o serrote cortando a madeira, a agitação das folhas, o vento, o barulho do riacho, o menino gritando, os sentimentos, os motivos, os pensamentos contraditórios e, indo mais fundo, a percepção da consciência total. Nessa atenção, o tempo deixa de existir, e as distorções, interferências e movimentos da consciência (mente) se aquietam e silenciam. Nesse silêncio existe um movimento incomparável e imenso, imperceptível, que constitui a própria essência do sagrado e da vida total.

“Íamos começar a almoçar, quando ela penetrou pela porta aberta da sala. Podíamos senti-la fisicamente qual uma onda a invadir o quarto. Tratava-se de uma intensa e crescente energia, de poder destruidor. As palavras não são a coisa, e a realidade é verbalmente inexprimível; ela deve ser vista, ouvida, sentida...”. “... não se tratava da morte do corpo; isso seria um acontecimento bem simples; mas a morte que destrói (o homem velho) dando lugar à criação...”

Aquilo que tem continuidade significa decadência, automatismo, ambição, hábito. Aí existe a corrupção, mas não a morte. A morte é o nada absoluto, é o vazio do qual desabrocham a vida e o amor. Sem a morte total, não há criação.

A meditação não é busca ou pesquisa. É uma explosão e um descobrimento. Não é o ajustamento do cérebro ou uma análise introspectiva. Também não é concentração, que acumula e escolhe. É uma coisa que vem naturalmente ao compreendermos, e em consequência abandonarmos, as afirmações e realizações positivas ou negativas. Só acontece com o total esvaziamento do cérebro. Nada o cérebro pode criar enquanto não estiver limpo de todas as coisas que acumula para proteger a existência egocêntrica. O importante é esse esvaziamento e não o que se encontra no vazio; só, então, se pode perceber esse vazio. Daí brotam todas as virtudes - não as virtudes aprovadas pela moralidade vigente, nem as virtudes da respeitabilidade social. Desse vazio brota o amor; do contrário não é amor. Esse vazio é o princípio e o fim de todas as coisas (é a ausência do ‘eu’; e, quando o ‘eu’ não está, ‘Deus’ está: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

Uma coisa é o silêncio mecânico provocado por nós; outra coisa é o silêncio do vazio. O silêncio provocado por nós é repetitivo, habitual, corruptor, forçado; o cérebro, quando exausto e em conflito, procura-o como refúgio. O silêncio do vazio é explosivo, criativo e nunca é o mesmo. Não podemos buscá-lo e ele jamais se repete; portanto, não oferece nenhuma segurança.

Porque essa luta incessante em busca da perfeição? Não se tratará, apenas, de uma ideia transmitida pelo sacerdote ou pelo guru a fim de que o homem se mantenha disciplinado e sociável? Na busca de perfeição o que na verdade se procura é segurança, conforto, aplausos e reconhecimento; assim, ela é sempre lucrativa para aquele que a busca. Um hábito mecânico, praticado repetidas vezes, acaba por atingir a perfeição. Mas, só se pode aperfeiçoar o hábito; pensar, acreditar sempre na mesma coisa, acaba por se tornar automático. Será essa a perfeição que todos desejam? A perfeição é uma forma ambicionada de bom êxito, e é exaltada pelos respeitáveis e pelos que atingem o sucesso. No entanto, a tentativa de atingir a perfeição significa, realmente, o desejo de chegar nos primeiros lugares, bater o recorde, como numa competição. É como estar competindo com o semelhante ou com os santos, para atingir a perfeição, e isso é, erradamente, considerado ato de fraternidade e amor, ato enaltecido pelos respeitáveis. Mas cada passo para se chegar à perfeição só produz frustração, e leva a confusão e sofrimento, o que aumenta o desejo individual de se tornar mais perfeito. Sempre desejamos ser perfeitos em algum sentido. Isso equivale a um meio de preenchimento (do vazio existente em nós), e o prazer resultante é vaidade, orgulho, de onde vai nascer mais frustração e sofrimento; pois o desejo de perfeição, exterior ou interior (que se assemelha à competição), nega o amor e, sem amor, não importa o que se faça, há sempre frustração e sofrimento.

O amor não é nem perfeito, nem imperfeito; só quando ele está ausente é que surgem estes dois opostos. O amor jamais busca a perfeição. Ele é chama límpida e pura, enquanto o desejo de atingir a perfeição é apenas fumaça que esconde a realidade ante nossos olhos. Desse modo, a perfeição está no esforço mecânico do hábito, na imitação e no medo crescente (medo de não atingir a perfeição, medo de ficar para trás, de ser menos que os demais). No mundo educa-se para a competição e para o sucesso; o objetivo, o motivo, adquire tanta importância que o amor, à coisa em si, desaparece. É como se um instrumento musical não seja usado por amor à melodia, mas por aquilo que representa para o músico em termos de fama, prestígio, lucro e poder.

O importante é ser e não o vir-a-ser. Ao findar o esforço para vir-a-ser surge a plenitude do ser (Como diz Benoit, a salvação se efetiva quando abandonamos todo esforço em busca da salvação). O esforço para vir-a-ser deve cessar; daí nascerá aquilo que transcende os limites da moral e da virtude social.

A meditação é a ausência do eu, do ego, a morte; é o silêncio do vazio interior. O cérebro, o pensamento, não pode, de maneira nenhuma, gerar esse silêncio, que somente surge com o parar do funcionamento do cérebro, parar que deve ser espontâneo, sem motivo, sem esperança ou garantia de recompensa. Essa é a única maneira de o cérebro permanecer sensível, vivo e tranquilo. Faz parte da meditação a compreensão, pelo cérebro, de suas atividades superficiais e profundas, o auto-conhecimento; nisto consiste a base da meditação e sem o auto-conhecimento que a meditação pode trazer tudo se torna sem significado e conduz à auto-ilusão e à auto-hipnose.

A maturidade não vem com a idade ou com o tempo. Não existe um tempo entre o agora e o amadurecimento. A maturidade é aquele estado no qual cessou toda a escolha; só os imaturos escolhem e, assim, ficam conhecendo o conflito que nasce da escolha. Na maturidade só existe uma direção a ser seguida: aquela que não vem da escolha. Qualquer espécie de conflito revela imaturidade. Não existe amadurecimento psicológico; pois não existe evolução psicológica; o que existe é, apenas, esse processo orgânico e natural de crescimento, com a inevitável acumulação de conhecimentos, o que nos traz maior compreensão das coisas do mundo, mas não do intemporal. Maturidade é a compreensão que transcende todo e qualquer conflito, seja ele interior ou exterior.

O conflito, a frustração e o preenchimento formam um só movimento, tanto interior quanto exterior. O conflito deve ser compreendido em sua inteireza, não apenas intelectualmente, mas no contato vivo e real com sua essência. Esse contato emocional e direto com o conflito, com a crise, deixa de ocorrer se simplesmente nos limitarmos a aceitá-lo intelectualmente, ou a negá-lo de forma sentimental, ou a fugir dele. A aceitação ou a rejeição não alteram o fato, e nem o raciocínio ou a imaginação podem provocar a crise necessária para que o compreendamos em sua totalidade. Isso só vem com a percepção pura do fato. Essa percepção não acontece se houver identificação com o fato, condenação ou aprovação. Ela só é possível quando o cérebro cessa sua atividade, limitando-se a observar, deixando de classificar e interpretar, de julgar e avaliar. Existirá, necessariamente, conflito enquanto houver desejo de preenchimento, com sua inevitável série de frustrações; enquanto existir a ambição, com seu disfarçado espírito de competição, enquanto houver inveja e o enganador desejo de vir-a-ser.
 
A compreensão independe do tempo; está sempre no presente, nunca no amanhã; é agora ou nunca; deixada para depois, sofre a interferência do ‘eu’ e se deteriora. Desde que cesse no cérebro o julgamento e a interpretação do ato de “ver”, o ‘ver’, ter percepção, compreender, é instantâneo. O “ver”, isto é, o compreender profundamente, independe de raciocínio. Na maioria das vezes, é o medo que impede o “ver”, que impede a compreensão. O medo, com suas defesas e sua coragem, é origem de conflito. O “ver” não vem do cérebro; o “ver” não é nosso, é atemporal. E a percepção do fato, não contaminada, cria sua própria ação, sempre correta, completamente diferente da ação baseada no raciocínio ou no pensamento; esta provoca conflito sem fim.

Existe paixão quando não há nenhuma exigência interior. Roupa, alimento e abrigo são necessidades básicas de sobrevivência, não exigências psicológicas; estas se traduzem nos secretos desejos e anseios que conduzem ao apego. O sexo, a bebida, a fama, a idolatria, com toda sua complexidade; o desejo de auto-preenchimento, seguido da inevitável ambição e frustração; a busca dos deuses e da imortalidade, todas estas formas de íntimas exigências (psicológicas) geram o apego, origem do medo, do sofrimento e da solidão. A necessidade de auto-expressão através da música, literatura, pintura ou outro meio qualquer, conduz a desesperado apego a esse meio. O músico que usa seu instrumento para alcançar fama, ou glória, deixa de ser músico; ele não ama a música em si, mas sim o lucro que ela lhe dá. Utilizamos uns aos outros de acordo com nossas necessidades e disfarçamos essa mútua exploração com palavras agradáveis e melodiosas; e isso dá origem a mais conflito e a mais sofrimento.


http://obuscadordedeus.blogspot.com    

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