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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

ENSINAMENTOS ZEN - VI


O homem deve ativar sua mente formal numa tentativa perseverante de perceber, para além de seus limites, o informal, tentativa que, apesar de absurda em si mesma, leva um dia ao desencadeamento do satori, não como resultado do sucesso dos esforços feitos, mas, ao contrário, como resultado do fracasso definitivo desses esforços. Isso se assemelha à situação do homem que está separado da luz por uma parede e que só pode ver a luz tornando a parede cada vez mais alta; chega um dia em que todos esses absurdos esforços levam a parede a tal altura que ela desmorona bruscamente, queda triunfante que mergulha o homem na luz.

Esse esforço absurdo é que devemos fazer quando nos empenhamos em perceber nossa sensação informal de existir-mais-ou-menos em todos os momentos do nosso dia. Com esse esforço, aprendemos, não a fazer algo novo, mas a deixar de produzir as costumeiras e inúteis agitações interiores, o que trará a calma indispensável para a eclosão do satori, que é a mais alta realização do ser humano (ver, também, Jung).

O determinismo total cósmico age no plano dos fenômenos e no nível universal; só o imaginamos como ordem total; a totalidade dos fenômenos positivos equilibra-se com a totalidade dos fenômenos negativos. Cada fenômeno se integra numa totalidade na qual é equilibrado por um fenômeno exatamente oposto e complementar.

Já a ‘ordem’ do determinismo desordenado relativo aos fenômenos que percebemos no espaço-tempo não é ‘real’, pois é parcial. Porém, o homem, ignorante, toma o que vê pelo ‘real’ e, assim, acredita na realidade única do parcial tanto que o denomina ‘determinismo’. Por outro lado, esse homem tem certa intuição inata da Realidade, o Princípio Supremo, que imagina dotado de liberdade. Como, para ele, o determinismo só existe no nível parcial, pois nem mesmo imagina o determinismo universal, opõe o único determinismo que conhece à liberdade do Princípio Supremo. Assim, chega ao dualismo da oposição determinismo-liberdade, que é totalmente ilusório. Mesmo julgando-se separado, o homem deseja ser livre, sem compreender que é, justamente, sua libertação do determinismo parcial que o levará ao determinismo total e à percepção da inseparabilidade.

Aquém do ato livre adequado existe toda uma hierarquia de atos que são mais ou menos adequados de acordo com a maior ou menor amplitude do determinismo que a eles preside. No ponto mais baixo dessa hierarquia está o ato puramente instintivo, automático, sem nenhuma reflexão, no qual opera uma espontaneidade que está aquém da reflexão. Após, com a intervenção frequente da reflexão, a espontaneidade inferior desaparece pouco a pouco, e o ato torna-se mais e mais adequado às circunstâncias, até que, com o satori, o ato conquista uma espontaneidade inteiramente nova e torna-se perfeitamente adequado à totalidade espaço-temporal do universo fenomênico, superando-se qualquer reflexão (não há mais escolha; o ato praticado é o único que poderia sê-lo). Quanto mais aumenta o rigor do determinismo, mais e mais o ato é sentido como interiormente livre, até que não há mais restrições e o ato é rigorosamente livre. Portanto, meu ato é interiormente tanto mais livre quanto mais rigorosamente definida a razão pela qual tenho de agir.

(Não é verdadeira a renúncia enquanto se atribui um valor àquilo a que se renuncia).

Atenção total. Tentativa de ver tudo sem imagens, isto é, com atenção total. É esse esforço absurdo, mas necessário, que devemos fazer quando nos empenhamos em perceber nossa sensação informal de existir-mais-ou-menos no decorrer de todos os instantes de nossa vida.

Quando o homem se ‘realizar’, seu organismo psicossomático deixará de ser regido apenas pelas leis do determinismo parcial e passará a sê-lo, também, pela lei do equilíbrio cósmico universal, lei sobremodo ordenada, princípio de todas as leis aparentemente desordenadas do determinismo parcial. No momento em que me ‘realizo’, deixo de sofrer restrições, não porque o que me restringia foi destruído, mas porque se ampliou infinitamente e veio coincidir com a totalidade na qual o ‘eu’ e o ‘não-eu’ são apenas ‘um’, e a palavra restrição perdeu todo sentido. O homem, após o satori, só pratica, em qualquer circunstância, a ação perfeitamente adequada e correta de acordo com os princípios cósmicos. Nisso está a perfeita liberdade (não há mais reflexão nem escolha). Na medida em que diminui minha liberdade ‘exterior’ de resposta, aumenta minha liberdade ‘interior’. Minha vontade é tanto mais livre quanto mais rigorosamente definido é o que tenho a fazer (como ensinam, também, o bramanismo, a Meditação Transcendental e Krishnamurti).

Para o Zen, deve-se recusar qualquer disciplina ‘particular’ (moral, crenças, religiões, virtudes etc.); deve-se aceitar a disciplina ‘total’, que consiste exatamente em recusar toda disciplina particular. Por isso, ensina o Zen: ‘Deixe de cultivar opiniões’, ‘O caminho perfeito rejeita toda preferência’, ‘Desperte a mente sem fixá-la em nada’.

No estado egotista fundamental, ‘viver’ é afirmar o ‘eu’, é tentar vencer o ‘não-eu’, vitória material pela aquisição de bens materiais, fama e respeito (domínio do ‘eu’ sobre o ‘não-eu’; obtenção da glória que ‘imortaliza’ o ‘eu’ separado, o homem particular). O estado afetivo fundamental original do homem comum é simples: ele ama o seu ‘eu’, em oposição ao ‘não-eu’, e odeia o ‘não-eu’ que, julga, se opõe ao seu ‘eu’. Quanto mais o homem progride no auto-conhecimento, mais esses amores perdem valor e eficácia, o que faz com que o ‘eu’ e o ‘não-eu’ se aproximem, até que, no limite da compreensão, o ego explode no satori, se dissolve no todo, aniquilando-se e realizando-se ao mesmo tempo, quando percebe que o ‘eu’ e o ‘não-eu’ são uma coisa só (nós somos o universo).

As percepções particulares, advindas das sensações do mundo exterior, interpretadas pela imaginação, dependem de meu estado psicossomático (condições mentais e fisiológicas, isto é, dos efeitos produzidos pela boa ou má saúde, insônia, má digestão, álcool, drogas, preocupação, irritação, nervosismo, tranquilidade etc.) Minha atenção se divide entre duas preocupações: minha afirmação frente à ameaça do mundo exterior, e a ‘avaliação’ interior do resultado favorável ou desfavorável dessa ameaça relativa à continuidade ou à cessação de minha existência vegetativa. No caso do neurótico, tão grande parcela de sua atenção se ocupa com a continuidade ou cessação de seu processo de ‘ser’, e lhe resta tão pouca atenção para o contato com o mundo exterior, que ele tem a impressão que esse mundo é irreal e se sente impossibilitado de se concentrar numa vida normal.
 
Toda angústia resulta do encontro com o ‘não-eu’ e traduz o medo de ser vencido nesse encontro. O homem não realizado só tem consciência dos fenômenos e, portanto, não está consciente daquilo que os transcende. Ainda que esteja feliz por estar se afirmando, momentaneamente que seja, no antagonismo eu/não-eu, sempre persiste a dúvida se conseguirá manter-se nessa condição. Mas, essa angústia é irreal, não existe, embora pareça existir, e todos os seus fenômenos afetivos se passam como se ela existisse.

Mas, à medida que avanço no auto-conhecimento, numa compreensão correta da vida interior, passo a vincular meu sofrimento, não mais com o que me acontece de forma pessoal, mas com minha condição de homem universal. As angústias se hierarquizam numa escala qualitativa segundo o grau de profundidade de minha compreensão. E, quando essa compreensão atua efetivamente em mim, cessa o processo do meu ser ou do meu nada pessoais, isto é, na medida em que as causas da minha angústia se universalizam em minha compreensão, nessa medida deixo de sofrer. Assim, a compreensão, aos poucos, nos liberta da angústia; quanto mais compreendo que minha angústia depende de uma condição que não se refere de forma específica a mim, tanto mais se desfaz em mim o absurdo e angustiante processo ‘ser ou não ser’ (o medo) do qual provinham todas as minhas angústias. A compreensão dissipa todos os fantasmas desse ilusório processo e atenua progressivamente todas as emoções que daí vinham. Assim, caminhamos para o satori. Segundo o Zen, o que anuncia sua chegada são estados interiores de serenidade, de neutralidade afetiva (indiferença), até que a dolorosa angústia se transforma na perfeita alegria de existir.
 

EM BUSCA DE DEUS 
http://obuscadordedeus.blogspot.com 

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