LIBERTE-SE DO PASSADO
"Atiramos o passado ao abismo,
mas não nos inclinamos para ver
mas não nos inclinamos para ver
se está bem morto".
(William Shakespeare)
(William Shakespeare)
Parte II
A pergunta sobre se há Deus, verdade, ou realidade - ou como se queira chamá-lo - jamais será respondida pelos livros, pelos sacerdotes, filósofos ou salvadores. Ninguém e nada pode responder a essa pergunta, porém, somente vós mesmo, e essa é a razão por que deveis conhecer-vos. Só há falta de madureza na total ignorância de si mesmo. A compreensão de si próprio é o começo da sabedoria.
E, que é vós mesmo, o vós individual? Penso que há uma diferença
entre o ente humano e o indivíduo. O indivíduo é a entidade local, o
habitante de qualquer país, pertencente a determinada cultura, uma dada
sociedade, uma certa religião. O ente humano não é uma entidade local.
Ele está em toda parte. Se o indivíduo só atua num certo canto, isolado
do vasto campo da vida, sua ação está totalmente desligada do todo.
Portanto, é necessário ter em mente que estamos falando do todo e não da
parte, porque no maior está contido o menor, mas o menor não contém o
maior. O indivíduo é aquela insignificante entidade condicionada,
aflita, frustrada, satisfeita com seus pequeninos deuses e tradições; já
o ente humano está interessado no bem-estar geral, no sofrimento geral e
na total confusão em que se acha o mundo.
Nós, entes humanos, somos os mesmos que éramos há milhões de anos -
enormemente ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e
desesperados, com ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma
estranha mistura de ódio, medo e ternura; somos a um tempo a violência e
a paz.
Têm-se feito progressos, exteriormente, do carro de boi ao avião
a jato, porém, psicologicamente, o indivíduo não mudou em nada, e a
estrutura da sociedade, em todo o mundo, foi criada por indivíduos. A
estrutura social, exterior, é o resultado da estrutura psicológica,
interior, das relações humanas, pois o indivíduo é o resultado da
experiência, dos conhecimentos e da conduta do homem, englobadamente.
Cada um de nós é o depósito de todo o passado. O indivíduo é o ente
humano que representa toda a humanidade. Toda a história humana está
escrita em nós.
Observai o que realmente está ocorrendo dentro e fora de vós mesmo,
na cultura de competição em que viveis, com seu desejo de poder,
posição, prestígio, nome, sucesso etc.; observai as realizações de que
tanto vos orgulhais, todo esse campo que chamais viver e no qual há
conflito em todas as formas de relação, suscitando ódio, antagonismo,
brutalidade e guerras intermináveis.
Esse campo, essa vida, é tudo o que
conhecemos, e como somos incapazes de compreender a enorme batalha da
existência, naturalmente lhe temos medo e dela tentamos fugir pelas mais
sutis e variadas maneiras. Temos também medo do desconhecido - temor da
morte, temor do que reside além do amanhã. Assim, temos medo do
conhecido e medo do desconhecido. Tal é a nossa vida diária; nela, não
há esperança alguma e, por conseguinte, qualquer espécie de filosofia,
qualquer espécie de teologia representa meramente uma fuga à realidade -
do que é.
Todas as formas exteriores de mudança produzidas pelas guerras,
revoluções, reformas; pelas leis e ideologias falharam completamente,
pois não mudaram a natureza básica do homem e, portanto, da sociedade.
Como seres humanos, vivendo neste mundo monstruoso, perguntemos a nós
mesmos: "Pode esta sociedade, baseada na competição, na brutalidade e no
medo, terminar? - terminar, não como um conceito intelectual, como uma
esperança, porém como um fato real, de modo que a mente se torne
vigorosa, nova, inocente, capaz de criar um mundo totalmente diferente?"
Creio que isso só ocorrerá se cada um de nós reconhecer o fato central
de que, como indivíduos, como entes humanos - seja qual for a parte do
universo em que vivamos, não importando a que cultura pertençamos -
somos inteiramente responsáveis por toda a situação do mundo.
Somos, cada um de nós, responsáveis por todas as guerras, geradas
pela agressividade de nossas vidas, pelo nosso nacionalismo, egoísmo,
nossos deuses, preconceitos, ideais - pois tudo isso está a dividir-nos.
E só quando percebemos, não intelectualmente, porém realmente, tão
realmente como reconhecemos que estamos com fome ou que sentimos dor,
bem como quando vós e eu percebemos que somos os responsáveis por todo
este caos, por todas as aflições existentes no mundo inteiro, porque
para isso contribuímos em nossa vida diária e porque fazemos parte desta
monstruosa sociedade, com suas guerras, divisões, sua fealdade,
brutalidade e avidez - só então poderemos agir.
Mas, que pode fazer um ente humano, que podeis vós e que posso eu
fazer para criar uma sociedade completamente diferente? Estamos fazendo a
nós mesmos uma pergunta muito séria. É necessário fazer alguma coisa?
Que podemos fazer? Alguém no-lo dirá? Muita gente no-lo tem dito. Os
chamados guias espirituais, que supõem compreender essas coisas melhor
do que nós, no-lo disseram, tentando modificar-nos e moldar-nos em novos
padrões, e isso não nos levou muito longe; homens sofisticados e
eruditos no-lo têm dito, e também eles não nos levaram mais longe.
Disseram-nos que todos os caminhos levam à verdade; vós tendes o vosso
caminho, como hinduísta, outros o tem como cristão, e outros, ainda, o
têm como muçulmano; mas, todos esses caminhos vão encontrar-se diante da
mesma porta. Isso, quando o consideramos bem, é um evidente absurdo. A
verdade não tem caminho, e essa é sua beleza; ela é viva. Uma coisa
morta tem um caminho a ela conducente, porque é estática, mas, quando
perceberdes que a verdade é algo que vive, que se move, que não tem
pouso, que não tem templo, mesquita ou igreja, e que a ela nenhuma
religião, nenhum instrutor, nenhum filósofo pode levar-vos - vereis,
então, também, que essa coisa viva é o que realmente sois - vossa
irascibilidade, vossa brutalidade, vossa violência, vosso desespero, a
agonia e o sofrimento em que viveis.
Na compreensão de tudo isso se
encontra a verdade. E só o compreendereis se souberdes como olhar tais
coisas de vossa vida. Mas não se pode olhá-las através de uma ideologia,
de uma cortina de palavras, através de esperanças e temores.
Como vedes, não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há
instrutor, não há autoridade. Só existe vós, vossas relações com outros e
com o mundo, e nada mais. Quando se percebe esse fato, ou ele produz um
grande desespero, causador de pessimismo e amargura; ou, enfrentando o
fato de que vós e ninguém mais sois o responsável pelo mundo e por vós
mesmo, pelo que pensais, pelo que sentis, pela maneira como agis,
desaparece de todo a auto compaixão. Normalmente, gostamos de culpar os
outros, o que é uma forma de auto compaixão.
J.Krishnamurti
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