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domingo, 5 de junho de 2016

JESUS E A NÃO DUALIDADE

Sobre a frase “tudo o que não é assumido não é salvo”, frequentemente me perguntam se Jesus assumiu a paternidade, se assumiu o envelhecimento. Respondo que Ele assumiu todas as faces do ser humano. A face do homem transfigurado no Monte Thabor e também a face do homem desfigurado na cruz.
 
Mas será que Ele assumiu a face da paternidade? 
 
O que os evangelhos nos contam é que Ele era muito paternal e muito maternal para com as crianças. Usava frequentemente a imagem da criança que mama em sua mãe, que para Ele era uma imagem de não-dualidade, onde dois fazem um. 

Os discípulos talvez pensem que é preciso que regridamos, que é preciso que nos tornemos criancinhas, que é preciso que retornemos à unidade indiferenciada, à unidade fusional da criança com sua mãe. Jesus precisa bem que não se trata disso. Não se trata de regredir, de voltar à infância tornando-se criancinhas, vivendo como criancinhas como fazem estes adultos que imitam as crianças e que não são crianças, são infantis. 

Trata-se de reencontrar a qualidade da inocência e, sobretudo, da confiança na vida, confiança nos viventes que compartilham nossa vida. Mas esta confiança precisa ser reconquistada e, então, é preciso fazer de dois, um.

Não se deve retornar ao um, mas sim assumir o dois, assumir a dualidade que acabamos de falar, indo além do dois, além do Tu e do Eu. É preciso
descobrir o terceiro incluído que nos une, o terceiro incluído secretamente, para falar como os físicos. Trata-se de fazer do dois, um; isso começa com a unidade entre o exterior e o interior. O que está no interior do cântaro está também no exterior, é o mesmo espaço. Descobrir isso é um ato de consciência.

Devemos também fazer um do alto e do baixo; mas onde começa o alto e onde termina o baixo? Para uns o alto começa na cabeça, para outros no tornozelo. Como diz Lao-Tsé, o alto e o baixo se tocam, então não é preciso colocar em oposição o céu e a terra. O céu não está somente acima das nossas cabeças, ele é também o espaço que nos envolve. A terra está no céu, o céu está na terra.

 
Como diz ainda Lao-Tsé: “O céu está voltado para a terra e a terra está voltada para o céu”. Os dois são inseparáveis mas algumas vezes opomos o céu e a terra dentro de nós. Então é preciso reencontrar a aliança entre a matéria e o espírito, entre o céu e a terra. Outra aliança que deve viver em nós é a aliança entre o masculino e o feminino. 

Este texto que tem quase 20 séculos é estranhamente atual, pois cada vez mais, em conferencias e seminários, fala-se da integração entre o feminino e o masculino, entre a anima e o animus.

Para podermos encontrar o outro, um outro inteiro, é preciso que já tenhamos realizado em nós mesmos a unidade entre o masculino e o feminino. Não se trata de procurar a outra metade, mas trata-se de procurar o outro, inteiro. Há muitos encontros de metades, mas há poucos encontros de seres inteiros.

Procurar sua outra metade é sempre se procurar a si mesmo, é procurar a metade que nos falta, a metade masculina ou a metade feminina. Ocorre que, quando tivermos vivido algum tempo com esta metade que veio de fora e graças a esta metade exterior integramos a nossa metade interior, poderemos nos perguntar o que faremos com essa que nos ajudou em nossa integração.
 
Isso pode se transformar em um drama. Em um drama ou no momento em que verdadeiramente escolhemos. Porque eu não escolho mais para preencher a minha falta. Eu escolho por ele mesmo, pela sua diferença. O que era um casal transforma-se em uma aliança de dois seres inteiros onde existe algo divino. O encontro entre a Sofia e o Logos, entre Yeshoua de Nazaré e Miriam de Magdala é o encontro entre dois seres inteiros...

Podemos dizer a alguém: “Não tenho mais necessidade de você, posso viver muito bem sem você, estou muito bem sozinho (é uma bela declaração de amor), mas escolhi viver com você.” Não falamos mais na ordem da necessidade, mas estamos na ordem do desejo. Não falamos da falta, mas da liberdade compartilhada. Nessa aliança existe algo de sagrado.

Jesus nos lembra no evangelho que somos capazes de amar um outro não somente a partir da nossa sede mas a partir da nossa fonte.
Neste momento importante de nossa vida paramos de pedir ao outro, de exigir, que ele preencha nossa sede, que ele preencha a nossa falta e podemos realmente amá-lo.
 
Agora, o masculino não é apenas um macho, o feminino não é apenas uma fêmea. As relações entre homem e mulher não são mais as relações entre macho e fêmea com todos os jogos mais ou menos sadomasoquistas de sedução e de dominação. Agora, estamos na relação entre duas pessoas.



Jean-Yves Leloup
 
 
 

Flávio Gikovate, médico psicoterapeuta, afirma que "estamos entrando na era da individualidade, que não tem nada a ver com egoísmo. O egoísta não tem energia própria; ele se alimenta da energia que vem do outro, seja ela financeira ou moral. A nova forma de amor, ou mais amor, tem nova feição e significado. Visa  a aproximação de dois inteiros, e não a união de duas metades.
E ela só é possível para aqueles que conseguirem trabalhar sua individualidade.  Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para uma boa relação afetiva. Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando, para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal.
Na solidão, o indivíduo entende que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas dentro dele mesmo, e não a partir do outro. Ao perceber isso, ele se torna menos crítico e mais compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um.
O amor de duas pessoas inteiras é bem mais saudável. Nesse tipo de ligação, há o aconchego, o prazer da companhia e o respeito pelo ser amado".

Ele está certo. Como podemos amar - sendo o amor impessoal, incondicional - se somos apenas uma metade, uma fração? Por esta razão agimos de forma condicional e possessiva acorrentando o outro a outra metade da fração, certos de que necessitamos disso para sobreviver. "Jesus nos lembra no evangelho que somos capazes de amar um outro não somente a partir da nossa sede mas a partir da nossa fonte". Urge que reflitamos profundamente sobre os nossos relacionamentos. KyraKally



 

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