A ARTE DE ESCUTAR
Parte III
Pergunta: É somente a partir da dor e do sofrimento que se desperta para a realidade da vida?
Krishnamurti: O sofrimento é a coisa com que estamos
mais familiarizados, com o que estamos constantemente a viver.
Conhecemos o amor e a sua alegria, mas na sua sequela seguem-se muitos
conflitos. Seja o que for que nos dê o choque maior a que chamamos
sofrimento, manter-nos-á despertos para enfrentar a vida completamente,
ajudar-nos-á a descartar as muitas ilusões que criamos em nosso redor.
Não é só o sofrimento ou o conflito que nos mantêm despertos, mas
qualquer coisa que nos dê um choque, que nos faça questionar todos os
falsos padrões e valores que criamos à nossa volta na nossa procura de
segurança.
Quando sofrem enormemente, tornam-se integralmente
conscientes, e nessa intensidade de consciência descobrem os verdadeiros
valores. Isto liberta a mente de criar mais ilusões.
Pergunta: Porque é que tenho medo da morte? E o que está para além da morte?
Krishnamurti: Penso que uma pessoa tem medo da morte
porque sente que não viveu. Se for um artista, pode ter medo que a
morte o leve antes de ter finalizado o seu trabalho; tem medo porque não
se realizou. Ou se for um homem de vida comum, sem capacidades
especiais, tem medo porque também não se realizou. Você diz, “Se me
cortarem a minha realização, o que resta? Como eu não compreendo esta
confusão, esta labuta, esta escolha e conflito incessantes, existirá uma
oportunidade ulterior para mim?” Tem medo da morte quando não se
realiza na acção; isto é, tem medo da morte quando não enfrenta a vida
integralmente, completamente, com plenitude da mente e com sentimentos
verdadeiros. Por isso, a questão não é porque tem medo da morte, mas
antes, o que o impede de enfrentar a vida na íntegra. Tudo tem que
morrer, tem que se gastar. Mas se tiver a compreensão que lhe permita
enfrentar a vida integralmente, então nisso haverá vida eterna,
imortalidade, nem princípio nem fim, e não há medo da morte. Novamente, a
questão não é como libertar a mente do medo da morte, mas como
enfrentar a vida integralmente, como enfrentar a vida para que haja
realização.
Para enfrentar a vida na íntegra deve-se estar livre de todos os
valores defensivos. Mas as nossas mentes e os nossos corações estão
sufocados com tais valores, que tornam a nossa acção incompleta, e por
isso existe o medo da morte. Para encontrar o valor verdadeiro, para se
libertarem deste contínuo medo da morte, e do problema da vida após a
morte, têm que conhecer a verdadeira função do indivíduo, tanto no
criativo como no colectivo.
Agora quanto à segunda pergunta: O que está para além da morte?
Existe uma vida após a morte? Sabem porque é que uma pessoa geralmente
faz tais perguntas, porque quer saber o que está no outro lado? Ela
pergunta porque não sabe como viver o presente; está mais morta que
viva. Ela diz, “Deixa-me descobrir o que vem depois da morte”, porque
não tem a capacidade de compreender este eterno presente. Para mim, o
presente é eternidade; a eternidade reside no presente, não no futuro.
Para para quem assim se interroga a vida tem sido toda uma série de
experiências sem realização, sem compreensão, sem sabedoria. Por isso
para ele a vida após a morte é mais atraente que o presente, e por isso
as inumeráveis perguntas sobre o que está para além. O homem que se
interroga sobre a vida após a morte já está morto. Se viverem no eterno
presente, a vida após a morte não existe; então a vida não é dividida em
passado, presente e futuro. Então há apenas plenitude, e aí há o êxtase
da vida.
Pergunta: Acha que a comunicação com os espíritos dos mortos é uma ajuda para a compreensão da vida na sua totalidade?
Krishnamurti: Porque deveria pensar que os mortos
são mais prestáveis que os vivos? Porque os mortos não o podem
contradizer, não se lhe podem opor, ao passo que os vivos podem. Na
comunicação com os mortos você pode ser fantasista; por isso conta mais
com os mortos que com os vivos para o ajudarem. Para mim, a questão não é
se há vida para além daquilo a que chamamos morte; para mim, tudo isso é
irrelevante. Algumas pessoas dizem que se pode comunicar com os
espíritos dos mortos; outras, que não se pode. Para mim, a discussão
parece de muito pouco valor; porque para compreender a vida com as suas
velozes deambulações, com a sua sabedoria, não pode contar com outros
para que o libertem das ilusões que você criou. Nem os mortos nem os
vivos o podem libertar das suas ilusões. Só no interesse desperto pela
vida, na constante vigilância da mente e do coração, existe o viver
harmonioso, existe a realização, a riqueza da vida.
Pergunta: Fiquei com a impressão de que tem um certo
desdém pela aquisição de conhecimento. Quer dizer com isso que a
educação ou o estudo dos livros – por exemplo, o estudo da história ou
da ciência – não tem valor? Quer dizer que o senhor mesmo não aprendeu
nada dos seus professores?
Krishnamurti: Eu estou a falar de viver uma vida
completa, uma vida humana, e nenhuma quantidade de explicações, sejam de
ciência ou de história, libertará a mente e o coração do sofrimento.
Pode estudar. Pode aprender a enciclopédia de cor, mas você é um ser
humano, ativo; as suas ações são voluntárias, a sua mente flexível, e
não a pode sufocar com conhecimento. O conhecimento é necessário, a
ciência é necessária. Mas se a sua mente for aprisionada por
explicações, e se for dada uma explicação satisfatória para a causa do
sofrimento, então leva uma vida superficial, uma vida sem profundidade. E
é isso que nos está a acontecer. A nossa educação está a tornar-nos
cada vez mais néscios; não está a ensinar-nos nem a profundidade do
sentimento nem a liberdade de pensamento, e as nossas vidas são
desarmoniosas.
O interlocutor quer saber se eu não aprendi dos professores. Receio
bem que não, porque não há nada para aprender. Alguém lhes pode ensinar a
tocar piano, a resolver problemas de matemática; podem ensinar-lhes os
princípios da engenharia ou a técnica de pintura; mas ninguém lhes pode
ensinar a realização criativa, que é a própria vida. E contudo estão
sempre a pedir para ser ensinados. Dizem, “ Ensine-me a técnica de
viver, e saberei o que é a vida.” Eu afirmo que este próprio desejo de
um método, esta própria ideia, destrói a vossa liberdade de ação, que é
a própria liberdade da vida em si.
Jiddu Krishnamurti
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