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segunda-feira, 18 de abril de 2016

O QUE SIGNIFICA
 "ESTAR SÓ"?

Parte II


Tendo medo, necessitamos de guias, autoridades, escrituras, salvadores - com o que tornamos a mente incapaz de descobrir alguma coisa sozinha. E nós precisamos estar sós, para descobrir o que é verdadeiro. Porque a Verdade só pode ser descoberta pela mente que está só - não no sentido de solidão, isolamento.
 
Ao rejeitarmos todas as coisas que nos foram impostas e abandonarmos as várias crenças, equivale a rejeitarmos a sociedade, opormo-nos à sociedade. Aquele que está fora da sociedade, que já não está na sujeição da sociedade - só esse é capaz de descobrir o que é Deus, a Verdade.
 
Para acharmos por nós mesmos o que é verdadeiro, não devemos rejeitar toda e qualquer autoridade? Não devemos repudiar a autoridade do livro, do sacerdote, dos Mestres, dos Salvadores, dos vários instrutores religiosos, daqueles que praticam a ioga, etc? Isso, na verdade, significa que devemos ser capazes de estar sós, desamparados, sem dependermos de ninguém para nenhuma espécie de estímulo. Isso é como fazer uma viagem desacompanhado de um guia. Quando não tem guia, a mente precisa estar atenta, no mais alto grau, para toda forma de ilusão, e só quando nos emancipamos completamente da ideia da autoridade, é que estamos aptos a nos examinar sem medo. É o medo que nos faz recorrer a outros, para sermos por eles guiados.
 
Que entendemos por medo? Medo de quê? Medo de não ser? Medo do que você é? Medo de perder, de ter prejuízo? O medo, quer consciente quer inconsciente não é abstrato: ele só existe em relação a alguma coisa. O que tememos é estarmos inseguros; isto é, tememos a solidão, o ser nada,  o sentimento de completo desnudamento.
 
Mas, quando vemos o que é a solidão, quando conhecemos o que significa estar só, sem fugir, temos então possibilidade de superá-la; porque estar só é inteiramente diferente de solidão. É necessário “estarmos sós”; mas hoje nunca estamos sós. Não somos indivíduos, somos apenas um feixe de reações coletivas.
 
Pois bem, para compreendermos o que é “estarmos sós”, precisamos compreender todo o processo do temor. A compreensão do temor traz, no fim, esse estado no qual nos vemos completamente vazios, sós; isto é, ficar frente a frente com uma solidão insaciável, impreenchível, da qual não há possibilidade de fuga. Você verá então que é possível superar a solidão - e, então, não existe nem esperança nem desesperança, porém um estado de solidão isento de temor.
 
Mas, se há verdadeiro empenho  em descobrir a verdade, ou Deus, temos de nos libertar de todos os nossos condicionamentos. Significa isso que precisamos ser capazes de estar totalmente sós e de encarar a verdade relativa ao que é, sem fuga.  Se você experimentar isso, verá que a mente está disposta a examinar o seu próprio vazio, totalmente, sem desejo de fuga - verá que essa mente se torna muito tranquila, só, livre, criadora. Esse estado pode ser o Real.
 
“Estar só” tem significação inteiramente diferente; tem beleza. Quando o homem se liberta da estrutura social - de avidez, inveja, ambição, arrogância, sucesso, posição - quando de tudo isso se vai, está então completamente só. Há então grande beleza, sentimento de grande energia.
 
Senhores, para a mente incapaz de “estar só”, a busca nenhuma significação pode ter. “Estar só” é ser incorruptível, simples, livre de toda tradição, todo dogma, toda opinião, do que os outros dizem, etc., etc. Essa mente não busca, porque nada há que buscar; sendo livre, ela é serena, sem desejos, imóvel.
 
Acho que sabemos o que é solidão - esse medo extraordinário, essa ansiedade resultante do processo egocêntrico da mente. Você nunca teve na vida o sentimento de completo isolamento? Vendo-nos sozinhos, queremos ser amados; sentimo-nos solitários, ligamos o rádio, vamos ao cinema, buscamos distrações. Não queremos fazer frente ao estado de solidão e escapamos, pomo-nos em fuga daquela solidão, buscamos companhias, amor,  marido ou esposa, etc.; pomo-nos, de alguma forma, na dependência de outrem, porque então não temos de enfrentar, dentro de nós mesmos, aquele estado de solidão, de vazio, em torno do “eu”.
 
Agora, se você puder enfrentar o vazio, esse estado de isolamento de todas as relações, enfrentá-lo sem fugir, sem medo, sem fazer esforço algum para preenchê-lo ou alterá-lo, estará então só, num estado de completo abandono da sociedade; e esse “estar só” não é fuga à sociedade, não necessita de reconhecimento por parte da sociedade.  A sociedade é um “processo” de reconhecimento; sou reconhecido como santo, como escritor, homem bom. Tornando-se independente de tudo isso, a mente fica completamente só - não solitária, porém só.  Não está mais sendo influenciada pela sociedade - está completamente dissociada de qualquer espécie de reconhecimento, e é capaz, portanto, de “estar só”. 

Ora, é necessário o “estar só”, para que a realidade tenha existência na nossa mente.  Só a mente que está só, não corrompida, pura, só essa mente é capaz de perceber o que é Deus, o que é a Verdade. E essa possibilidade nos é dada apenas quando enfrentamos a solidão.  Quando  a mente se deixa ficar em presença desse processo  egocêntrico, limitante, vazio, então esse próprio vazio lhe dá a oportunidade de “estar só”. A mente é então nova, única, pura; só nesse estado, a mente é capaz de receber o “eterno”.
 
Não pode haver um imenso espaço para a mente funcionar, se ela não está inteiramente só. “Estar só” e “estar isolado” são, naturalmente, dois e diferentes estados. Sabemos muito bem o que é isolamento: esse estado em que nos vemos insulados, sem companheiros, sem relações, mesmo que estejamos cercados de nossa família e vivendo ativa e prosperamente. Apesar de tudo isso, manifesta-se um estranho sentimento de isolamento.
 
Nunca estamos sós; estamos rodeados de pessoas e de nossos próprios pensamentos. Mesmo na ausência de pessoas, vemos as coisas através do crivo dos nossos pensamentos. Não há momento ou até pode existir, porém muito raramente, da ausência do pensamento. Não sabemos o que é “estar só”, livre de toda associação, continuidade, palavra e imagem. Somos solitários, mas não sabemos o que significa “estar só”. A dor da solidão enche-nos o coração, e a mente é abafada com o medo. A solidão, esse profundo isolamento, é a sombra que  entenebrece a vida.
 
O “viver só” requer muita inteligência; e ser ao mesmo tempo flexível. Viver só, sem as muralhas das satisfações egocêntricas, requer extrema vigilância; porque uma vida solitária favorece a indolência e hábitos confortantes. Uma vida solitária favorece o isolamento, e só os sábios podem viver sós, sem causarem mal a si próprios e a outros. O retirar-se ou isolar-se, com o fim de achar, é pôr fim ao descobrimento. Precisamos de uma solidão que não seja aquela em que a mente se fecha em torno de nós mesmos, mas a solidão da liberdade. O que está completo está sozinho, e o incompleto busca o caminho do isolamento.
 
Verbalmente você poderá até concordar. Entretanto, consciente ou inconscientemente, sua mente se rebela contra a ideia de ficar completamente só a fim de descobrir. Estar completamente só é estar livre de contaminação pela sociedade - a sociedade, que é constituída de inveja, avidez, vaidade, desejo de poder e prestígio, ânsia das coisas mundanas e das chamadas extra mundanas - e só essa mente está livre para investigar e descobrir a verdade ou a falsidade daquilo que a supera. Assim, o autoconhecimento é o começo da sabedoria.
 
Não sei se você já experimentou o que é estar completamente só, sem nenhuma pressão,  motivo ou influência, sem a ideia do passado e do futuro. Estar inteiramente só é muito diferente do estado de solidão. Há solidão quando o “centro de acumulação” se sente isolado em suas relações com os outros.  Falo daquela solitude em que a mente não está contaminada, porque compreendeu o processo da contaminação, que é a acumulação. Quando a mente se acha completamente só porque, pelo autoconhecimento, compreendeu o “centro de acumulação”, vê-se então que, por estar vazia, não influenciada, ela é capaz de ação não relacionada com a ambição, a inveja ou com qualquer dos conflitos que conhecemos.
 
Como você sabe, para a maioria de nós “estar só” é uma coisa terrível. Não me refiro aqui à solidão, que é coisa diferente. Refiro-me ao “estar só”: estar só com alguém ou com o mundo; estar só com um fato. Só, no sentido de que a mente não está sujeita a influências, já não se acha presa ao passado, nem tem futuro, nem busca, nem teme: está só. O que é puro está só; a mente que está só conhece o amor, porque já não se enreda nos problemas do conflito, do sofrimento e do preenchimento. Só essa mente é nova,  religiosa.
 
Estar só é negar o condicionamento e o conteúdo passado da consciência, livre da influência, da tradição, da carência psicológica, do apego, da dependência. Observar sem discriminar e a renúncia ao condicionamento que conduz à solidão, que não é isolamento ou atividade egocêntrica. Tampouco significa fuga da existência. Pelo contrário, é a libertação total do sofrimento e do conflito, do medo e da morte. Essa solidão é a própria mutação da consciência, a completa transformação daquilo que foi. Ela é o vazio e a ausência do ser e do não-ser. A mente se renova, a cada instante, na chama desse vazio. Apenas à mente vulnerável é acessível o infinito, em que da destruição surge o novo, a criação e o amor.
 
O homem deve ser só, mas esse “ser só” não é isolamento. Significa estar liberto do mundo da avidez, do ódio e da violência, de seus métodos sutis, e da dolorosa solidão e do desespero humano. Estar só é estar “de fora”, não pertencer a nenhuma religião ou nação, a nenhuma crença ou dogma.  É essa solidão que alcança uma inocência completamente imune à maldade do homem. Só a inocência pode viver no mundo, mesmo com toda a desordem nele existente, e ao mesmo tempo não pertencer a ele. Ela não se reveste de galas especiais. A flor da bondade não se encontra ao longo de nenhum caminho, porque não há caminho para a Verdade.
 
Esse estar só não é a dolorosa e temível solidão. É o recolhimento do ser, em si mesmo - um estado não corrompido, rico, completo. O estar só é o expurgo de todos os motivos, todas as atividades do desejo, todos os fins. O estar só não é um produto final da mente. Não se pode desejar estar só. Tal desejo é meramente fuga à dor de se não poder comungar.
 
A solidão, com seus temores e tormentos, é isolamento. Esse processo de isolamento, quer amplo, quer estreito, é gerador de confusão, conflito, sofrimento. Do isolamento nunca pode nascer o estar só; um tem de desaparecer, para que o outro possa existir. O estar só é indivisível, e o isolamento é separação. Aquilo que está só é flexível. Unicamente o que está só pode estar em comunhão com aquilo que é sem causa, o imensurável. Para o que está só, a vida é eterna; não existe a morte.
 
O homem que deseja realmente descobrir se há, ou não, um estado além da estrutura do tempo, deverá estar livre da civilização; da “vontade coletiva”; deverá estar só.
 
Pergunta: Você tem estado em retiro Podemos saber se há nisso alguma significação?
 
Krishnamurti: Você não deseja, também, às vezes, recolher-se à quietude, para fazer um balanço das coisas, a fim de não se tornar simples máquina de repetição, um discursador, um explicador, um expositor?
 
Julgo essencial que você entre, de vez em quando, em recolhimento, deixando tudo o que está fazendo, detendo por completo as suas crenças e experiências, e olhando-as de maneira nova, em vez de ficar a repetir, como máquinas, o que crê ou o que não crê. Você deixaria, assim, entrar ar fresco em sua mente Isso significa que você tem de estar inseguro.
 
Se vocês forem capazes de tanto, estarão então abertos aos mistérios da natureza e para as coisas que sussurram ao seu redor, e, finalmente, encontrarão  o Deus que aguarda o momento de vir, a verdade que não pode ser chamada, mas vem por si mesma. Não estamos abertos ao amor e a outros processos mais delicados que se verificam dentro de nós, porque vivemos fechados em nossas ambições, realizações, desejos.
 
Nesse retiro, não mergulhe noutra coisa qualquer, não abra livro algum, absorva-se em novos conhecimentos e novas aquisições. Rompa completamente com o passado e verá o que acontecerá. Faça-o e conhecerá o deleite. Descortinará as imensidões do amor, da compreensão, da liberdade. Quando seu coração está aberto, então é possível a vinda da realidade. Eis por que é salutar entrarmos em retiro, em recolhimento  e fazer parar a rotina - não só a rotina da existência exterior, mas também a rotina que a mente estabelece para sua própria segurança e conveniência.



  Coletânea de textos de Krishnamurti

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