O QUE SIGNIFICA
"ESTAR SÓ"?
Parte II
Tendo medo, necessitamos de guias, autoridades, escrituras, salvadores - com o que tornamos a mente incapaz de descobrir alguma coisa sozinha. E nós precisamos estar sós, para descobrir o que é verdadeiro. Porque a Verdade só pode ser descoberta pela mente que está só - não no sentido de solidão, isolamento.
Ao rejeitarmos todas as coisas que nos foram impostas e
abandonarmos as várias crenças, equivale a rejeitarmos a sociedade,
opormo-nos à sociedade. Aquele que está fora da sociedade, que já não
está na sujeição da sociedade - só esse é capaz de descobrir o que é
Deus, a Verdade.
Para acharmos por nós mesmos o que é verdadeiro, não devemos rejeitar
toda e qualquer autoridade? Não devemos repudiar a autoridade do livro, do sacerdote, dos Mestres, dos Salvadores, dos vários
instrutores religiosos, daqueles que praticam a ioga, etc? Isso, na
verdade, significa que devemos ser capazes de estar sós, desamparados,
sem dependermos de ninguém para nenhuma espécie de estímulo. Isso é como
fazer uma viagem desacompanhado de um guia. Quando não tem guia, a
mente precisa estar atenta, no mais alto grau, para toda forma de
ilusão, e só quando nos emancipamos completamente da ideia da
autoridade, é que estamos aptos a nos examinar sem medo. É o medo que nos
faz recorrer a outros, para sermos por eles guiados.
Que entendemos por medo? Medo de quê? Medo de não ser? Medo do que você
é? Medo de perder, de ter prejuízo? O medo, quer consciente quer
inconsciente não é abstrato: ele só existe em relação a alguma coisa.
O que tememos é estarmos inseguros; isto é, tememos a solidão,
o ser nada, o sentimento de completo desnudamento.
Mas, quando vemos o que é a solidão, quando conhecemos o que significa
estar só, sem fugir, temos então possibilidade de superá-la; porque
estar só é inteiramente diferente de solidão. É necessário “estarmos
sós”; mas hoje nunca estamos sós. Não somos indivíduos, somos apenas
um feixe de reações coletivas.
Pois bem, para compreendermos o que é “estarmos sós”, precisamos
compreender todo o processo do temor. A compreensão do temor traz, no
fim, esse estado no qual nos vemos completamente vazios, sós; isto
é, ficar frente a frente com uma solidão insaciável, impreenchível, da
qual não há possibilidade de fuga. Você verá então que é possível
superar a solidão - e, então, não existe nem esperança nem desesperança,
porém um estado de solidão isento de temor.
Mas, se há verdadeiro empenho em descobrir a verdade, ou Deus,
temos de nos libertar de todos os nossos condicionamentos. Significa isso que precisamos ser capazes de estar totalmente sós e de
encarar a verdade relativa ao que é, sem fuga.
Se você experimentar isso, verá que a mente está disposta a examinar o
seu próprio vazio, totalmente, sem desejo de fuga - verá que essa
mente se torna muito tranquila, só, livre, criadora. Esse estado
pode ser o Real.
“Estar só” tem significação inteiramente diferente; tem beleza. Quando o
homem se liberta da estrutura social - de avidez, inveja, ambição,
arrogância, sucesso, posição - quando de tudo isso se vai, está
então completamente só. Há então grande beleza, sentimento de grande
energia.
Senhores, para a mente incapaz de “estar só”, a busca nenhuma
significação pode ter. “Estar só” é ser incorruptível, simples, livre de
toda tradição, todo dogma, toda opinião, do que os outros dizem, etc.,
etc. Essa mente não busca, porque nada há que buscar; sendo livre, ela é
serena, sem desejos, imóvel.
Acho que sabemos o que é solidão - esse medo extraordinário, essa
ansiedade resultante do processo egocêntrico da mente. Você nunca teve
na vida o sentimento de completo isolamento? Vendo-nos sozinhos,
queremos ser amados; sentimo-nos solitários, ligamos o rádio, vamos ao
cinema, buscamos distrações. Não queremos fazer frente ao estado de
solidão e escapamos, pomo-nos em fuga daquela solidão, buscamos
companhias, amor, marido ou esposa, etc.; pomo-nos, de
alguma forma, na dependência de outrem, porque então não temos de
enfrentar, dentro de nós mesmos, aquele estado de solidão, de vazio, em
torno do “eu”.
Agora, se você puder enfrentar o vazio, esse estado de isolamento de
todas as relações, enfrentá-lo sem fugir, sem medo, sem fazer
esforço algum para preenchê-lo ou alterá-lo, estará então só, num estado
de completo abandono da sociedade; e esse “estar só” não é fuga à
sociedade, não necessita de reconhecimento por parte da sociedade.
A sociedade é um “processo” de reconhecimento; sou reconhecido como
santo, como escritor, homem bom. Tornando-se independente de
tudo isso, a mente fica completamente só - não solitária, porém só.
Não está mais sendo influenciada pela sociedade - está completamente
dissociada de qualquer espécie de reconhecimento, e é capaz, portanto,
de “estar só”.
Ora, é necessário o “estar só”, para que a realidade tenha existência na nossa mente. Só a mente que está só, não corrompida, pura, só essa mente é capaz de perceber o que é Deus, o que é a Verdade. E essa possibilidade nos é dada apenas quando enfrentamos a solidão. Quando a mente se deixa ficar em presença desse processo egocêntrico, limitante, vazio, então esse próprio vazio lhe dá a oportunidade de “estar só”. A mente é então nova, única, pura; só nesse estado, a mente é capaz de receber o “eterno”.
Ora, é necessário o “estar só”, para que a realidade tenha existência na nossa mente. Só a mente que está só, não corrompida, pura, só essa mente é capaz de perceber o que é Deus, o que é a Verdade. E essa possibilidade nos é dada apenas quando enfrentamos a solidão. Quando a mente se deixa ficar em presença desse processo egocêntrico, limitante, vazio, então esse próprio vazio lhe dá a oportunidade de “estar só”. A mente é então nova, única, pura; só nesse estado, a mente é capaz de receber o “eterno”.
Não pode haver um imenso espaço para a mente funcionar, se ela não está
inteiramente só. “Estar só” e “estar isolado” são, naturalmente, dois e
diferentes estados. Sabemos muito bem o que é isolamento: esse estado em
que nos vemos insulados, sem companheiros, sem relações, mesmo que
estejamos cercados de nossa família e vivendo ativa e prosperamente.
Apesar de tudo isso, manifesta-se um estranho sentimento de isolamento.
Nunca estamos sós; estamos rodeados de pessoas e de nossos próprios
pensamentos. Mesmo na ausência de pessoas, vemos as coisas através do
crivo dos nossos pensamentos. Não há momento ou até pode existir, porém muito raramente,
da ausência do pensamento. Não sabemos o que é “estar só”, livre de toda
associação, continuidade, palavra e imagem. Somos solitários, mas não
sabemos o que significa “estar só”. A dor da solidão enche-nos o
coração, e a mente é abafada com o medo. A solidão, esse profundo
isolamento, é a sombra que entenebrece a vida.
O “viver só” requer muita inteligência; e ser ao mesmo tempo
flexível. Viver só, sem as muralhas das satisfações egocêntricas,
requer extrema vigilância; porque uma vida solitária favorece a
indolência e hábitos confortantes. Uma vida solitária favorece o
isolamento, e só os sábios podem viver sós, sem causarem mal a si
próprios e a outros. O retirar-se ou isolar-se, com o fim de achar, é
pôr fim ao descobrimento. Precisamos de uma solidão que não seja
aquela em que a mente se fecha em torno de nós mesmos, mas a solidão da
liberdade. O que está completo está sozinho, e o incompleto busca o
caminho do isolamento.
Verbalmente você poderá até concordar. Entretanto, consciente ou
inconscientemente, sua mente se rebela contra a ideia de ficar
completamente só a fim de descobrir. Estar completamente só é estar
livre de contaminação pela sociedade - a sociedade, que é constituída de
inveja, avidez, vaidade, desejo de poder e prestígio, ânsia das coisas
mundanas e das chamadas extra mundanas - e só essa mente está livre para
investigar e descobrir a verdade ou a falsidade daquilo que a supera.
Assim, o autoconhecimento é o começo da sabedoria.
Não sei se você já experimentou o que é estar completamente só, sem
nenhuma pressão, motivo ou influência, sem a ideia do passado e do
futuro. Estar inteiramente só é muito diferente do estado de solidão. Há
solidão quando o “centro de acumulação” se sente isolado em suas
relações com os outros. Falo daquela solitude em que a mente não
está contaminada, porque compreendeu o processo da contaminação, que é a
acumulação. Quando a mente se acha completamente só porque, pelo
autoconhecimento, compreendeu o “centro de acumulação”, vê-se então que,
por estar vazia, não influenciada, ela é capaz de ação não relacionada
com a ambição, a inveja ou com qualquer dos conflitos que conhecemos.
Como você sabe, para a maioria de nós “estar só” é uma coisa terrível.
Não me refiro aqui à solidão, que é coisa diferente. Refiro-me ao “estar
só”: estar só com alguém ou com o mundo; estar só com um fato. Só, no
sentido de que a mente não está sujeita a influências, já não se acha
presa ao passado, nem tem futuro, nem busca, nem teme: está só. O que é
puro está só; a mente que está só conhece o amor, porque já não se
enreda nos problemas do conflito, do sofrimento e do preenchimento. Só
essa mente é nova, religiosa.
Estar só é negar o
condicionamento e o conteúdo passado da consciência, livre da influência, da tradição, da carência
psicológica, do apego, da dependência. Observar sem
discriminar e a renúncia ao condicionamento que conduz à solidão, que não é
isolamento ou atividade egocêntrica. Tampouco significa fuga da
existência. Pelo contrário, é a libertação total do sofrimento e do
conflito, do medo e da morte. Essa solidão é a própria mutação da
consciência, a completa transformação daquilo que foi. Ela é o vazio e a
ausência do ser e do não-ser. A mente se renova, a cada instante, na
chama desse vazio. Apenas à mente vulnerável é acessível o infinito, em
que da destruição surge o novo, a criação e o amor.
O homem deve ser só, mas esse “ser só” não é isolamento. Significa estar
liberto do mundo da avidez, do ódio e da violência, de seus métodos
sutis, e da dolorosa solidão e do desespero humano. Estar só é estar “de
fora”, não pertencer a nenhuma religião ou nação, a nenhuma crença ou
dogma.
É essa solidão que alcança uma inocência completamente imune à maldade
do homem. Só a inocência pode viver no mundo, mesmo com toda a desordem nele
existente, e ao mesmo tempo não pertencer a ele. Ela não se reveste de
galas especiais. A flor da bondade não se encontra ao longo de nenhum
caminho, porque não há caminho para a Verdade.
Esse estar só não é a dolorosa e temível solidão. É o recolhimento do
ser, em si mesmo - um estado não corrompido, rico, completo. O estar
só é o expurgo de todos os motivos, todas as atividades do desejo,
todos os fins. O estar só não é um produto final da mente. Não se pode
desejar estar só. Tal desejo é meramente fuga à dor de se não poder
comungar.
A solidão, com seus temores e tormentos, é isolamento. Esse processo
de isolamento, quer amplo, quer estreito, é gerador de confusão,
conflito, sofrimento. Do isolamento nunca pode nascer o estar só; um tem
de desaparecer, para que o outro possa existir. O estar só é
indivisível, e o isolamento é separação. Aquilo que está só é flexível.
Unicamente o que está só pode estar em comunhão com aquilo que é sem
causa, o imensurável. Para o que está só, a vida é eterna; não
existe a morte.
O homem que deseja realmente descobrir se há, ou não, um estado além da
estrutura do tempo, deverá estar livre da civilização; da “vontade
coletiva”; deverá estar só.
Pergunta: Você tem estado em retiro Podemos saber se há nisso alguma significação?
Krishnamurti: Você não deseja, também, às vezes, recolher-se à quietude,
para fazer um balanço das coisas, a fim de não se tornar simples
máquina de repetição, um discursador, um explicador, um expositor?
Julgo essencial que você entre, de vez em quando, em recolhimento,
deixando tudo o que está fazendo, detendo por completo as suas crenças e
experiências, e olhando-as de maneira nova, em vez de ficar a repetir,
como máquinas, o que crê ou o que não crê. Você deixaria, assim, entrar
ar fresco em sua mente Isso significa que você tem de estar
inseguro.
Se vocês forem capazes de tanto, estarão então abertos aos mistérios da
natureza e para as coisas que sussurram ao seu redor, e, finalmente, encontrarão
o Deus que aguarda o momento de vir, a verdade que não pode ser
chamada, mas vem por si mesma. Não estamos abertos ao amor e a outros
processos mais delicados que se verificam dentro de nós, porque vivemos
fechados em nossas ambições, realizações, desejos.
Nesse retiro, não mergulhe noutra coisa qualquer, não abra livro algum,
absorva-se em novos conhecimentos e novas aquisições. Rompa completamente com o passado e verá o que acontecerá. Faça-o e
conhecerá o deleite. Descortinará as imensidões do amor, da compreensão,
da liberdade. Quando seu coração está aberto, então é possível a vinda
da realidade. Eis por que é salutar entrarmos em retiro, em recolhimento e fazer parar a rotina - não só a rotina da existência
exterior, mas também a rotina que a mente estabelece para sua própria
segurança e conveniência.
Coletânea de textos de Krishnamurti
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