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quarta-feira, 6 de abril de 2016

A MISTERIOSA ENERGIA 
DO AMOR I

 Religiões Verbais Não Promovem a Ética:
A Base da Ação Correta 
Está na Capacidade de Amar

Em décadas recentes, a ciência abriu diversos novos campos de atuação para sua exploração e uso. As investigações no mundo subatômico e o aproveitamento da energia atômica são apenas dois exemplos destas aventuras. Talvez o último reino a ser explorado seja o misterioso domínio do amor altruístico. Embora esteja agora no início, é provável que o seu estudo científico torne-se uma área da maior importância para futuras pesquisas: o tópico do amor inegoísta já foi colocado na agenda de hoje da história, e está para se transformar em seu assunto principal.

Antes da Primeira Guerra Mundial e das catástrofes mais recentes do nosso tempo, a ciência evitou em muito este campo. Pensava-se que os fenômenos do amor altruístico pertenciam à religião e à ética mais do que à ciência. Eles eram considerados bons temas para pregação mas não para a pesquisa e o ensino. Além do mais, a ciência de antes da guerra estava muito mais interessada no estudo dos criminosos do que no dos santos, dos loucos mais que no dos gênios, da luta pela sobrevivência mais que no do auxílio mútuo, e do ódio e do egoísmo mais que no da compaixão e do amor.

A explosão dos gigantescos desastres após 1914 e o perigo iminente de uma nova guerra suicida promoveram uma alteração radical na situação. Estas calamidades deram um impulso ao estudo científico do amor inegoísta. Elas também levaram a revisões básicas de muitas teorias até agora tidas como científicas, especialmente aquelas que tratavam das causas e dos meios de evitar as guerras, as revoluções e o crime.

Dentre outras coisas, estas revisões mostraram que, sem o reforço da energia do amor inegoísta, todas as receitas da moda para a eliminação destes males da humanidade não logram cumprir sua tarefa. Esta conclusão também se aplica a todas as prescrições que tentam impedir conflitos por meios puramente políticos, educacionais, ou supostamente religiosos, econômicos, ou até militares. Por exemplo, podemos gostar de imaginar que, se amanhã todos os governos do mundo se tornarem democráticos, teremos por fim uma paz duradoura e uma ordem social sem crimes. Contudo, estudos meticulosos recentes sobre a criminalidade comparativa de 967 guerras e 1629 distúrbios internos da história da Grécia, de Roma e dos países ocidentais, desde 600 a.C. até os dias de hoje, mostram que as democracias dificilmente foram menos beligerantes, turbulentas e repletas de crimes, que as autocracias. [1]

O mesmo vale para a educação em sua forma atual como uma panaceia contra as guerras internacionais, as guerras civis e os crimes. Desde o século X até hoje, a educação tem feito enorme progresso. A quantidade de escolas de todos os tipos, o percentual de alfabetizados e o número de descobertas e invenções científicas aumentaram muito. Contudo, a quantidade e a mortalidade das guerras, das revoluções sangrentas e dos crimes graves não diminuiu de forma alguma. Ao contrário, neste século XX, o mais científico e mais educado, elas atingiram um apogeu incomparável e fizeram deste o mais sangrento dos últimos vinte e cinco séculos da história greco-romana e ocidental.

De modo semelhante, o tremendo progresso do conhecimento e a sujeição de todas as formas de energia física não proporcionaram ao homem uma paz duradoura. Antes, eles aumentaram muito as suas chances de ser destruídos em todas as formas de conflitos humanos.

Até mesmo a religião superficial - puramente verbalista e ritualística - não ajuda muito nesta tarefa, se uma tal religião “cômoda” não for implementada por gestos de amor altruísta. Jesus, São Tiago e São Paulo afirmaram muito corretamente que “a fé sem obras é morta”, e que “em Jesus, nem a circuncisão tem valor, nem a incircuncisão, mas a fé agindo pela caridade. [2] Como a prática sistemática dos mandamentos do amor é bem mais difícil que a mera profissão de fé “verbal-ritualística”, as pessoas verdadeiramente religiosas, que praticam sem cessar os seus preceitos morais, sempre têm constituído uma minoria insignificante em qualquer grupo religioso. Dentre milhões de cristãos, poucos são os que praticam regularmente tais mandamentos do Sermão da Montanha como: “amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam”, “a quem te ferir a face, oferece a outra” [3] ou a maioria dos demais preceitos deste Sermão.

O mesmo se aplica aos adeptos de outras religiões que possuem milhões e milhões de membros. Quando investigamos setenta e três indivíduos convertidos por um evangelista popular, descobrimos que apenas um desses “convertidos em massa” tinha alterado de modo tangível seu comportamento público em direção altruísta. Esta profunda divergência entre os nobres ensinamentos e as práticas ignóbeis explica os modestos resultados das religiões quanto à prevenção das guerras. Como esta divergência parece estar aumentando nos últimos séculos, existe pouca chance de que as religiões verbalistas alcancem este objetivo no futuro.

Por último, o mesmo deve ser dito de outras receitas “mágicas” para a eliminação das formas mortais dos conflitos sociais. Tampouco qualquer instituição das economias comunistas, socialistas ou capitalistas pode concretizar esta tarefa porque nenhuma das sociedades históricas com estes tipos de economia ficou isenta dessa guerra. Nem mais auspiciosas são as crenças no estabelecimento de uma paz duradoura - internacional e interna - através de uma “retaliação maciça” por instrumentos de guerra nucleares ou “de última geração”.

Praticada durante milênios, esta política de “paz pelo poder” ou, conforme os romanos si vis pacem para bellum (se quereis a paz, preparai a guerra), não trouxe à humanidade sequer períodos de paz razoavelmente longos. Estudos recentes mostram que, na média, a incidência de guerra ocorria entre cada dois a quatro anos na história greco-romana e euro-americana, enquanto os distúrbios internacionais importantes aconteciam entre cada cinco a dezessete anos nestes países.

Finalmente, os mesmos estudos revelaram o fato de que cada vez que um artefato de guerra mais mortífero era inventado, a extensão, a destrutividade e a quantidade de mortos, feridos e desaparecidos aumentavam em vez de diminuir. Estes fatos “sinistros” demonstram suficientemente bem a desesperança de estas políticas atingirem uma paz duradoura.

Resumindo: a lição inesquecível proporcionada pelas catástrofes deste século mostra de maneira convincente que sem a crescente “produção, acumulação e circulação” da energia do amor altruísta, nenhum dos demais meios conseguirá impedir as futuras guerras suicidas, nem estabelecer uma ordem harmoniosa no universo humano.

As misteriosas forças da história parecem ter dado um ultimato ao homem: pereçam por suas próprias mãos, ou se elevem a um nível moral mais alto pela graça do amor criador. Esta situação explica porque está se iniciando agora um estudo sério desta energia, e porque ela tem a probabilidade de vir a ser um importante campo de pesquisa no futuro.

Pitirim A. Sorokin


NOTAS:
[1] Quando o autor se refere ao período pós-guerra e aos estudos recentes, deve-se ter em mente que este artigo foi escrito em setembro de 1958. (N.T.)
[2] Gálatas 5:6. (N.T.)
[3] Lucas 6, 27,29. (N.T.)

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