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segunda-feira, 18 de abril de 2016

O QUE SIGNIFICA
 "ESTAR SÓ"?

Parte I


Em primeiro lugar, estamos sós alguma vez? Você costuma passear sozinho no bosque? Se o faz, está só? Fisicamente, pode estar só, mas na verdade não está só, porque está acompanhado de todas as lembranças, todos os seus conflitos, todas as suas preocupações; porque você é o passado. Você só está só quando o passado desapareceu de todo, quando não há família, quando não há deuses feitos pelo pensamento, quando você não está sendo perseguido por lembranças. Somente assim você está só. E só essa solidão é capaz de ver. Porque só ela é inocente. Só os inocentes podem ver a plena beleza da vida.
 

O espaço e o silêncio são necessários, porque é quando a mente está só, livre de influências, de conhecimentos, de suas milhares de experiências, e já não está funcionando no limitado e insignificante campo de sua monótona existência de cada dia — é apenas quando a mente está livre de tudo isso, só, em silêncio, que ela é capaz de descobrir ou de encontrar uma coisa totalmente nova.
 

É possível para a nossa mente, tão fortemente condicionada que está, libertar-se e ficar só, intacta? — libertar-se, não só do moderno condicionamento tecnológico, mas também do fundo racial e cultural em que tão obviamente foi condicionada, dos dois ou três milhões de anos de profundo condicionamento que a humanidade já viveu? Somos o resultado de tantas influências, de tantas experiências, de tantos temores e ansiedades, que não podemos deixar de perguntar: Pode essa mente, sob esse enorme peso de condicionamento, libertar-se e ficar só, intacta?
 

Como pode a mente, que está sempre tão ativa, ativa em seu interesse próprio, em suas ocupações egocêntricas, como pode essa mente ficar quieta? Compreende? Ela tem de ficar quieta, porque é só quando a mente está tranquila que se pode descobrir alguma coisa nova. O silêncio é absolutamente necessário para descobrirmos, compreendermos e transcendermos as nossas limitações psicológicas. Como é possível isso à mente que está sempre tão ativa, egocentricamente focada em si própria? Esse é um problema que sempre desafiou o homem.
 

Pode-se tentar aquietar a mente, disciplinando-a, controlando-a, moldando-a, mas tal tortura não a torna quieta; pelo contrário, torna-a mais embotada. É, pois, evidente que nem o controle, nem o cultivo de um ideal para ter uma mente quieta, tem algum valor, porque, quanto mais controlamos a mente, quanto mais a forçamos, tanto mais estreita, tanto mais estacionária e embotada a tornamos.



Temos de empreender a jornada sozinhos, completamente desacompanhados, sem ajuda de ninguém, de nenhuma influência, de nenhum estímulo ou desestímulo; porque, então, já não existe "motivo" algum. A própria jornada representa o "motivo", e só os que a empreendem produzirão algo novo, algo não corrompido, neste mundo - e não os reformadores sociais, os "beneméritos", os mestres e seus discípulos, os pregadores de fraternidade. Estes nunca trarão paz ao mundo. São eles os verdadeiros malfeitores. O "homem da paz" é aquele que repele toda autoridade, que compreende, em todos os seus aspectos, a ambição, a inveja, que se desprende totalmente da estrutura desta sociedade aquisitiva e de todas as coisas envolvidas de tradição. Só então a mente é nova. E é necessária uma mente nova, para encontrar Deus, a Verdade - ou como quiserem chamá-lo - não uma mente fabricada pela sociedade, pela influência.
 

Um homem nunca indaga por que razão depende psicologicamente de outrem. Se examinar bem isso, verá o quanto é infeliz. Você não sabe o que fazer com essa solidão, esse isolamento, que é uma forma de suicídio. E, assim, não sabendo o que fazer, você depende. Essa dependência proporciona consolação, uma relação de companheirismo, mas, se esse companheirismo se altera ligeiramente, você fica enciumado, furioso.
 

Só a mente que está completamente só pode achar a realidade. E existe uma realidade - não uma realidade teórica, não uma certa coisa inventada pelos cristãos ou pelos hinduístas ou experimentada por uns poucos santos, conforme o peculiar condicionamento de cada um, porém uma realidade, uma imensidade que só pode ser descoberta pela mente que percebeu seus próprios movimentos e compreendeu a si própria.    


Você já esteve alguma vez  só? Sentiu o que significa 'estar só' ? Provavelmente nunca porque sempre está rodeado de sua família, sempre ocupado, em seu emprego, a ler um livro, (navegando pela internet) e na incessante tagarelice dos jornais (e da TV). Assim, provavelmente, nunca conheceu o estranho sentido do completo isolamento. Ocasionalmente pode ter tido sugestões a esse respeito, mas é provável que nunca tenha experimentado um contato direto com ele, com a dor, com a fome, com o sexo. Entretanto, se não compreender essa solidão, que é a causa do medo, nunca compreenderá o medo e dele não se libertará.


Eu não sei se você alguma vez esteve isolado, quando de repente percebe que não tem nenhuma relação com qualquer pessoa – não um percebimento intelectual, mas uma percepção real... que você está completamente afastado. Toda forma de pensamento e emoção está bloqueada, você não pode se virar para lugar algum, não existe ninguém para lhe apoiar, os deuses, os anjos, esconderam-se além das nuvens e, como desaparecem as nuvens, eles também se foram, você está completamente abandonado – não usarei a palavra só. Solidão tem um significado muito diferente, a solidão tem beleza. Estar só significa algo diferente. E você deve estar só. Quando o homem se livra da estrutura social da ganância, inveja, ambição, arrogância, acumulação, prestígio social – quando ele mesmo se livra disso, ele se encontra completamente só. Isto é totalmente diferente! Existe então grande beleza, a percepção de grande energia.
 

A maioria de nós nunca está só. Você pode se retirar nas montanhas e viver como um monge, mas enquanto fisicamente independente, você terá consigo todas as suas ideias, suas experiências, suas tradições, seu conhecimento do que foi. O monge cristão em uma cela do mosteiro não está só, ele está com o seu conceito de Jesus, com a sua teologia, com as crenças e os dogmas do seu condicionamento pessoal. Do mesmo modo, o sannyasi na Índia, que se retira do mundo e vive em isolamento, não está só, porque também ele vive com as suas memórias. 


Eu estou falando de uma solidão na qual a mente é totalmente livre do passado, e só tal mente é virtuosa, pois apenas na solidão existe inocência. Talvez você diga, "Isso é pedir muito, uma pessoa não pode viver assim neste mundo caótico, onde tem de ir ao escritório todo dia, ganhar o sustento, suportar as crianças, aguentar as impertinências da esposa ou do marido, e tudo o mais". Mas eu penso que o que está sendo dito está diretamente relacionado à vida diária e ação, caso contrário, não tem nenhum valor. Você vê, desta solidão surge uma virtude que é vigorosa e que traz um senso extraordinário de pureza e bondade. Não importa se a pessoa comete erros, isso é de muito pouca importância. O que importa é ter esta percepção de estar completamente só, incontaminado, pois é tão somente uma mente assim pode conhecer ou pode estar atenta ao que está além da palavra, além do nome, além de todas as projeções da imaginação.

 

Estar só, sem se retirar da sociedade, sem se tornar eremita, é um estado extraordinário. A pessoa está só porque compreendeu a influência, a autoridade. Compreendeu inteiramente a questão da memória, do condicionamento e, torna-se existente uma solidão inatingível pela influência. E você não tem ideia de quanta beleza há nessa solidão, e que extraordinário sentimento de virtude, que é vitalidade, virilidade, força.  


Requer isso estejamos livres de toda autoridade; que não estejamos a seguir, a imitar, a ajustar-nos interiormente. Nós cedemos, ajustamo-nos, aceitamos, porque na profundeza de nosso ser temos medo de ser diferentes, de estar sozinhos, de investigar. Interiormente, queremos nos sentir em segurança, ser bem sucedidos, estar do lado certo. Por conseguinte, criamos várias formas de autoridade, padrões de pensamento, tornando-nos assim seres imitativos, ajustando-nos exteriormente.
 

Esse “estar só”, nesse “desprendimento”, não significa de modo algum estar em oposição quanto as nossas relações com a coletividade. Se somos capazes de “estar sós”, é bem provável, então, que possamos ajudar a coletividade. Mas se somos apenas uma parte do corpo coletivo, é bem óbvio que só seremos capazes de fazer reformas, alterações no padrão da coletividade. Ser verdadeiramente individual é estar completamente fora da coletividade. Um indivíduo assim é capaz de realizar uma transformação no coletivo.



Coletânea de textos de Krishnamurti

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