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quinta-feira, 7 de abril de 2016

A MISTERIOSA ENERGIA DO AMOR III


 Vinde todos a mim afinal,
Não existe amor como o meu;
Pois qualquer outro amor recebe a um e não a outro;
E outro amor significa dor, mas este é eterna alegria.
 

 (Edward Carpenter, “Over the Great City”)



O poder curativo do amor também está sendo cada vez mais enfatizado pelas pesquisas psiquiátricas recentes. Elas mostram que o principal agente de cura no tratamento dos distúrbios mentais não é tanto a técnica específica das diversas escolas de psiquiatria quanto o estabelecimento de harmonia, de solidariedade e confiança mútuas entre o terapeuta e o paciente, e a colocação deste em uma atmosfera social, livre de inimizades e conflitos. É possível que isso explique o “milagre” da cura de um grande número de pessoas doentes pelos santos apóstolos do amor altruísta.

Capaz de curar as enfermidades físicas, mentais e morais, a energia do amor também contribui para o prolongamento da vida humana. Este fato é tipicamente ilustrado pela longevidade de cerca de 4500 santos cristãos analisados. Estes santos viveram do século 1 ao século 18, quando a expectativa média de vida era muito menor do que a nos Estados Unidos hoje. A maior parte dos santos vivia em condições que, segundo os padrões atuais de saúde pública, estavam longe de higiênicas. Muitos deles eram ascetas e privavam seus corpos da satisfação das necessidades vitais. Apesar dessas condições adversas, sua longevidade média era tão elevada quanto, no mínimo, a dos americanos contemporâneos. Um amor puro e abundante dos santos por Deus e pelo próximo parece ser largamente responsável por sua resistente longevidade.

Esta conclusão é confirmada pelos efeitos opostos do ódio e da inimizade, que encurtam a vida, também averiguados por muitos estudos recentes. O volume total das evidências existentes, ilustrado pelas amostras anteriores, não deixa quase dúvida acerca das funções biológicas altamente benéficas desempenhadas pela energia do amor na vida humana. Até mesmo na evolução das espécies e no comportamento das formas vivas, incluindo o homem e sua vida social, o papel do auxílio mútuo, da cooperação e de outras manifestações desta energia é hoje reconhecido pela ciência como sendo tão importante, no mínimo, quanto o papel da luta pela existência, que, até décadas recentes era visto como o principal fator de evolução da vida e do rumo da história humana.


Além destas funções biológicas, a energia do amor serve à humanidade de muitas outras maneiras. Assim, ela tem funcionado - e pode fazê-lo cada vez mais - como o melhor “eliminador” da inimizade e dos conflitos entre os seres humanos. Para nosso ensaio experimental desta antiga verdade, tomamos cinco partes de estudantes com uma acentuada antipatia uns pelos outros. Propusemos a tarefa de transformar em três meses, pela técnica das “boas ações”, suas relações de inimizade em relações de amizade. Persuadimos um parceiro de cada par a começar a prestar ao outro pequenos favores de amizade, como um convite para almoçar, para ir ao cinema, para dançar, ou um oferecimento para ajudar nas lições de casa e assim por diante. No início estes favores foram prestados sem entusiasmo por parte de quem os propunha e algumas poucas vezes foram rejeitados. Todavia, pela repetição, começaram a dissipar a inimizade e, mais adiante, substituíram-na por uma calorosa amizade em quatro dos pares e por uma “indiferença” no quinto par. Experiências semelhantes, realizadas no Hospital Psicopático de Boston entre enfermeiras e pacientes mutuamente hostis, apresentaram resultados similares.

Um outro ensaio experimental do velho adágio “amor atrai amor e ódio atrai ódio” mostrou que, em dois grupos experimentais (de estudantes e pacientes de sanatório), as aproximações amigáveis dos membros de cada grupo produziram respostas amigáveis em 65 a 80% dos casos, enquanto as aproximações agressivas receberam respostas agressivas quase no mesmo percentual.

Nossa investigação detalhada de como e porquê cada um de aproximadamente 500 estudantes analisados considerava um certo indivíduo como o seu “melhor amigo” e outro indivíduo como o seu “pior inimigo”  revelando o o fato de que, em quase todos os casos de melhor amigo tanto quanto de pior inimigo, a amizade havia iniciado com alguma atitude amigável, enquanto a inimizade fora engendrada por um ato agressivo, de uma ou de ambas as partes.

A demonstração histórica do poder do amor para eliminar as guerras e os conflitos é tipicamente ilustrada pela política do Imperador Ashoka (264-226 a.C.). Horrorizado com “a abominação do estrago” causado por suas guerras vitoriosas, Ashoka, sob a influência do Budismo, na segunda metade de sua vida, substituiu radicalmente sua política beligerante por outra de paz, amizade, e melhoria das condições econômicas, mentais e morais vitais do seu próprio povo, bem como aquelas das nações vizinhas. Por meio de sua política do “amor atrai amor”, ele conseguiu assegurar a paz por cerca de setenta e dois anos. Considerando que um período de paz tão longo assim só ocorreu três vezes em toda a história da Grécia, de Roma e de treze países europeus; a conquista de Ashoka bem sugere que a política da verdadeira amizade pode assegurar paz prolongada com mais sucesso do que a política do ódio e da agressão, infelizmente ainda adotada pelos governantes de nosso tempo.

De modo geral, o poder pacificador do amor parece ser o agente principal que acaba com as catástrofes longas e mortalmente perigosas da vida das nações. Um estudo sistemático de tais catástrofes da história como no antigo Egito, Babilônia, China, Índia, Pérsia, Israel, Grécia, Roma, e nos países ocidentais, mostra de modo uniforme que todas essas catástrofes foram afinal superadas por um enobrecimento notadamente altruísta do povo, da cultura e das instituições sociais destas nações. Este enobrecimento surge com frequência e se espalha sob a forma de uma nova religião do amor e da compaixão (como o Budismo, o Jainismo ou o Cristianismo), ou como um enriquecimento moral e espiritual da antiga religião e seus preceitos morais.

Não devemos esquecer que praticamente todas as grandes religiões surgiram em circunstâncias catastróficas e que, em seu período inicial, foram antes de tudo e mais que tudo movimentos sociais de cunho moral, inspirados pela solidariedade, pela compaixão e pelo Evangelho do Amor. Elas se puseram a caminho para obter a regeneração moral de uma sociedade desmoralizada. Só mais tarde tais movimentos tornaram-se superdimensionados por dogmas teológicos complexos e rituais de efeito. Isso é igualmente válido para o surgimento e período inicial do Confucionismo, Taoísmo, Zoroastrismo, Hinduísmo, Jainismo, Budismo, o Judaísmo de Moisés e dos Profetas, Cristianismo e outros movimentos ético-religiosos.

A energia do amor não só aumenta a longevidade dos indivíduos, como também a expectativa de vida das sociedades e das organizações. As organizações sociais formadas principalmente pelo ódio, pela conquista e pela coerção como os impérios de Alexandre, o Grande, de César, Gêngis Khan, Tamerlane, Napoleão ou Hitler, tiveram, via de regra, uma vida muito curta - poucos anos, décadas, raramente alguns séculos.

Assim tem sido com diversas organizações nas quais o amor altruísta desempenha papel pouco importante. Desse modo, a duração média de pequenos estabelecimentos comerciais como drogarias, lojas de equipamentos ou armazéns deste país é de apenas cerca de quatro anos. Grandes empresas (listadas nas bolsas de valores americanas e europeias) sobrevivem em média só uns vinte e nove anos. Mesmo a duração da maioria dos estados raramente ultrapassa um ou dois séculos.

As organizações mais duradouras que existem são os grandes grupos ético-religiosos como o Taoísmo, o Confucionismo, o Hinduísmo, o Budismo, o Jainismo, o Cristianismo e o Islamismo. Todas essas organizações existem há mais de mil anos, algumas há mais de dois, e não existem sinais aparentes de dissolução no futuro previsível. O segredo de sua longevidade provavelmente repousa em sua dedicação ao ensinamento altruísta da humanidade e, de modo geral, ao cultivo do amor no Universo humano.

Por fim, o enorme poder do amor manifesta-se na infinita influência dos grandes apóstolos do amor sobre os incontáveis milhões de seres humanos e sobre os rumos da história humana. Se nos perguntarmos que espécie de indivíduos tiveram maior influência sobre a história humana, a resposta será pessoas como Lao Tsé, Confúcio, Buda, Zoroastro, Mahavira, Moisés, Jesus, São Paulo, São Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e outros criadores e líderes das religiões e da moralidade altruísta. Talvez apenas a influência dos maiores cientistas, inventores, filósofos e artistas - isto é, dos gênios criadores no campo da Verdade e da Beleza - possa rivalizar de algum modo com a influência benéfica dos grandes apóstolos do amor.

Em contraste com a breve, e não rara destrutiva influência dos monarcas absolutos, dos conquistadores militares, dos ditadores revolucionários, e dos potentados da riqueza, os grandes apóstolos do amor afetaram de modo tangível as vidas, as mentes e os corpos de incalculáveis bilhões de pessoas durante os milênios da história e ainda hoje nos afetam. Eles não possuíam forças armadas, nem riquezas, nem qualquer dos meios mundanos de influenciar o curso da história e o destino das nações. Embora seus corpos não fossem os mais vigorosos, nem os seus Q.I. (Quocientes de Inteligência) os mais elevados conforme os padrões dos modernos testes mentais, pela força de seu amor puro e abundante eles obtiveram a transformação de milhões de homens e mulheres, remodelaram culturas e instituições sociais, e condicionaram o rumo da história.

O esboço precedente sobre o funcionamento do amor inegoísta mostra que ele é de fato uma das formas mais elevadas do poder criador necessário à sobrevivência das formas vivas, dos indivíduos humanos e das organizações sociais. Um mínimo de sua bênção misteriosa é indispensável para o crescimento físico, moral e mental dos seres humanos e das sociedades. Ele é o melhor e mais nobre antídoto contra todos os tipos de tendências criminosas, mórbidas e suicidas. É a mais sublime força educacional e inspiradora da criatividade em todos os campos do trabalho humano. Por fim, ele é o coração e a alma da liberdade e de todos os valores religiosos e morais.


Quanto à origem desta energia do amor e os meios para a sua produção, acumulação e aplicação, sabemos que ela é dada ao homem de maneira potencial, como parte de seu dote biológico enquanto “animal social”. A dimensão deste potencial parece variar de homem para homem. O volume deste amor potencial, transformado em energia real ou “cinética”, é grandemente condicionado pela espécie de cultura humana onde o indivíduo se encontra, e pelo tipo de interação social que ele tem com os demais. Quanto maior for o dom biológico do amor dos membros de uma dada sociedade, mais os indivíduos interagem segundo a regra “amor atrai amor”, mais as suas instituições sociais e a sua cultura são permeadas pela “atmosfera de amor”, e maior é a produção de energia do amor pela sociedade como um todo.

Esta produção pode ser notavelmente aumentada recorrendo-se a diversas técnicas eficazes para a produção e acumulação desta energia. Apesar do nosso parco entendimento a seu respeito, sabe-se que existem umas trinta técnicas. Com a crescente pesquisa nossa compreensão sobre elas pode ser aprofundada e outras mais podem ser inventadas. As técnicas conhecidas variam muito em complexidade, da mais grosseira à mais sutil. Como exemplos das mais simples podem ser citados o uso de vários agentes químicos, físicos e bióticos; o treinamento postural e o controle do sistema nervoso autônomo; as técnicas dos reflexos condicionados, da formação dos hábitos, dos exercícios mecânicos, e da punição e recompensa. Métodos mais refinados envolvem a persuasão e recompensa e a demonstração científica, reforçadas pela mobilização das forças emocionais, afetivas e volitivas do homem; o uso dos exemplos de heroísmo; a experiência de vida direta; e a inspiração das belas artes. As técnicas sutis para aumentar o altruísmo do homem incluem a estimulação de sua criatividade; a concentração, a meditação e a auto-análise; e especialmente os métodos complexos das Yogas, do Zen-Budismo, dos fundadores das religiões do amor, e das grandes ordens monásticas.

Estas linhas dão uma ideia sobre as fontes da energia do amor e o escasso conhecimento das técnicas para a sua produção e acumulação. Não há espaço neste artigo para uma discussão detalhada destes problemas. É suficiente dizer que, se uma pequena parte do dinheiro e do esforço agora despendidos para fazer a guerra, ou mesmo para o uso mais efetivo das fontes de energia física, fosse empregada na pesquisa e no cultivo do amor altruísta, os resultados benéficos de tal empenho seriam os mais recompensadores.

Se, além disso, cada um de nós subtraísse de sua vida particular uma parcela das emoções de ódio e dos gestos de inimizade, e aumentasse a das emoções e gestos de amor altruísta para com todos os seres humanos, com esta mudança da nossa mente e do nosso comportamento poderíamos melhorar a atmosfera moral da humanidade e contribuir para a obtenção de uma paz duradoura bem mais do que todas as operações da política do poder e da corrida armamentista. É chegada a hora em que o cultivo intensivo do papel criador tornou-se um assunto do interesse de todos. 


Pitirim A. Sorokin

 

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