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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A VERGONHA COMO BASE 
DE NOSSOS CONDICIONAMENTOS



Se não damos valor a alguém, é difícil imaginar que possamos ficar envergonhados por algo que essa pessoa diga ou faça. A possibilidade da existência da vergonha tóxica começa com nossos relacionamentos fundamentais. Se as pessoas que nos criaram tiveram uma base de vergonha, agirão desavergonhadamente e passarão para nós sua vergonha tóxica. Uma pessoa que não valoriza a si mesma não poderá ensinar a auto-estima a ninguém.

A vergonha tóxica é basicamente fomentada pelos relacionamentos; passa de uma geração à outra. As pessoas que têm uma base de vergonha encontram outras pessoas na mesma situação e se casam com elas. Cada membro do casal traz consigo a vergonha do seu sistema familiar. Seu casamento se fundamentará em seu núcleo de vergonha. O principal resultado disso será a falta de intimidade. É difícil permitir que alguém se aproxime de nós se nos sentimos imperfeitos e defeituosos como seres humanos. Os casais que têm uma base de vergonha mantêm a ausência da intimidade através da comunicação deficiente, das brigas cíclicas e improdutivas, dos jogos, da manipulação, da disputa pelo controle, do retraimento, da culpa e da confluência. A confluência é o acordo de não discordar e cria a pseudo-intimidade.

Quando esses pais com uma base de vergonha têm um filho, as cartas já estão marcadas desde o início. A função dos pais é servir de modelo. Servir de modelo inclui mostrar como ser um homem ou uma mulher; como se relacionar intimamente com outra pessoa; como reconhecer e expressar as emoções; como discutir honestamente; como ter limites físicos, emocionais e intelectuais; como se comunicar; como enfrentar e sobreviver aos problemas intermináveis da vida; como ter autodisciplina; como amar a si mesmo e aos outros. Os pais que têm uma base de vergonha não podem fazer nada disso. Eles simplesmente não sabem como.

As crianças precisam do tempo e da atenção dos pais. Conceder o próprio tempo faz parte do trabalho do amor. Significa estar presente para a criança, satisfazendo as necessidades dela e não as dos pais.

Por exemplo, eu costumava passar muito tempo com meu filho. Com frequência, isto significava assistir um jogo de futebol enquanto ele brincava na sala. Se ele fazia barulho demais, eu ralhava com ele. Passamos bastante tempo juntos, mas era um tempo quantitativo e não qualitativo.

Parte do trabalho do amor envolve ouvir. As crianças sabem muito bem o que querem e nos dizem isso de uma maneira bastante clara. Temos de ouvi-las. Isso requer uma quantidade razoável de maturidade emocional. Para que possamos ouvir bem, é preciso que nossas necessidades sejam satisfeitas. É difícil escutar, quando estamos carentes. Nossa necessidade é como uma dor de dente. Quando temos nossa base na vergonha, só conseguimos nos concentrar na nossa dor.

Pais carentes e que têm uma base de vergonha não podem de modo nenhum cuidar das necessidades de seus filhos. A criança é envergonhada sempre que está carente, porque suas necessidades colidem com as dos pais. Ela cresce e se torna uma adulta. Mas sob a máscara do comportamento adulto existe uma criança que foi negligenciada. Esta criança carente é insaciável. isto quer dizer que quando a criança se torna adulta, existe um "buraco em sua alma". Como adulta, ela nunca pode obter o suficiente. Os adultos fazem com que o que obtêm seja suficiente e se esforçam para conseguir mais da vez seguinte. A criança adulta não consegue obter o suficiente porque o que está em jogo, na verdade, são as necessidades da criança.

Nos meus primeiros relacionamentos, por exemplo, eu sempre ia longe demais e queria muito. Se eu conhecia uma garota e nos dávamos bem, eu imediatamente começava a falar com ela sobre casamento, mesmo depois de um único encontro! Quando ela se apaixonava, eu esperava que ela tomasse conta de mim como uma mãe. Crianças carentes precisam dos pais. Assim, as crianças adultas transformam os namorados e namoradas em pais, alguém que irá cuidar de suas necessidades.

O resultado final é que os casamentos carentes que têm uma base na vergonha geram famílias com uma base na vergonha. As crianças crescem no solo da vergonha em vez de nos carinhosos braços do amor.
As famílias com base na vergonha atuam de acordo com as leis dos sistemas sociais. Quando um sistema social é disfuncional, ele é rígido e fechado. Todos os indivíduos dessa família estão emaranhados numa espécie de transe. Elas cuidam da necessidade de equilíbrio do sistema.

As crianças vão então para a escola, para a igreja ou sinagoga, crescem e vão viver na sociedade. Cada um desses sistemas sociais acrescentam sua contribuição única ao processo de indução da vergonha tóxica.


As Famílias Disfuncionais

A vergonha tem uma origem interpessoal, basicamente nos relacionamentos significativos. Nossos relacionamentos mais importantes são nossa fonte de relacionamentos. Eles Têm lugar na nossa família de origem.

Como declara Judith Bardwick com tanta propriedade:

"É no casamento e, por conseguinte, na família, que vivemos nossas experiências humanas mais íntimas e poderosas. A família é a unidade à qual pertencemos, da qual podemos esperar proteção contra um destino incontrolável, na qual nos eternizamos através de nossos filhos e na qual encontramos um refúgio. A família é formada por um material mais sangrento e mais ardente do que o da amizade, e os custos também são mais elevados".

É na família que primeiro aprendemos sobre nós mesmos. Nossa identidade fundamental nasce dos olhos refletores daqueles que cuidam de nós. Nosso destino depende em grande parte da saúde deles.

(...) As famílias são sistemas sociais que seguem leis orgânicas. A primeira lei dos organismos sociais é que o todo é maior do que a soma das partes. Uma família é definida pela interação e pelos inter-relacionamentos das suas partes, em vez de pela soma das suas partes.

Uma maneira de ilustrar esse princípio holístico é pensar no corpo humano. Nosso corpo é um sistema orgânico completo composto de muitos subsistemas. Existe o sistema nervoso, o sistema circulatório, o sistema endócrino, etc. O corpo humano como organismo não é a soma das suas partes e sim o inter-relacionamento de suas partes. Por exemplo, se você separar minhas pernas do meu corpo, dificilmente olhará para elas e pensará em mim. Num sistema, cada parte está relacionada com todas as outras partes. cada parte é totalmente uma parte e parcialmente um todo...

Em uma família, toda família como um organismo é maior do que qualquer indivíduo da família. Ela é definida pelo relacionamento entre as partes, em vez de pela soma das partes. Como sistemas sociais, as famílias têm componentes, regras, papéis e necessidades que definem o sistema.

O principal componente da família como sistema é o casamento. Se o casamento for saudável e funcional, a família será saudável e funcional. Se o casamento for disfuncional, ela será disfuncional... Quando o principal componente de um sistema é disfuncional, todo o sistema sofre um desequilíbrio. Quando o sistema está desequilibrado, outra lei entra em ação, a lei da homeóstase dinâmica. Essa é a lei do equilíbrio.

Homeóstase dinâmica significa que sempre que uma parte do sistema está fora de equilíbrio, o resto dos membros do sistema tentarão equilibrá-lo novamente.

(...) As crianças de uma família disfuncional assumem papéis rígidos impostos pela necessidade de equilíbrio da família. Por exemplo, se uma criança não é desejada, ela tentará equilibrar a família não causando problemas, sendo útil, perfeita, super-responsável ou invisível. Este é o papel da Criança Perdida.

(...) Quando o medo, a mágoa e a solidão da vergonha de uma família funcional atinge níveis elevados de intensidade, uma pessoa, geralmente a mais sensível, se torna o Bode expiatório da família. A função desse papel é diminuir a dor que todos os membros da família sentem... Nas famílias funcionais, os papéis são escolhidos e flexíveis. Os membros podem desistir dos papéis. Nas famílias disfuncionais, os papéis são RÍGIDOS... Todos os papéis encobrem a essência interior baseada na vergonha. Enquanto cada membro do sistema desempenha seu papel rígido, o sistema permanece congelado e imutável. As famílias disfuncionais ficam congeladas num estado de transe. O núcleo de vergonha mantém o sistema imobilizado. Todo mundo está se escondendo. Os papéis encobrem o eu verdadeiro e autêntico de cada pessoa.

(...) Um dos aspectos devastadores da vergonha tóxica é que ela abrange múltiplas gerações. Os aspectos secretos e ocultos da vergonha tóxica são os mananciais da sua vida de múltiplas gerações. Por ser mantida oculta, ela não pode ser trabalhada. As famílias são tão doentes quanto seus segredos. Elas têm vergonha dos segredos. Os segredos de família podem recuar várias gerações. Podem envolver suicídios, homicídios, incestos, abortos, vícios, humilhações públicas, um desastre financeiro, etc. Todos os segredos acabam se manifestando. Este é o poder da vergonha tóxica.

A dor e o sofrimento da vergonha geram defesas automáticas e inconscientes. Freud chamava essas defesas de vários nomes — negação, idealização dos pais, repressão das emoções e dissociação das emoções. É importante observar que não podemos saber o que não sabemos. A negação, a idealização, a repressão e a dissociação, uma vez formadas, são mecanismos inconscientes de sobrevivência. Como eles são inconscientes, perdemos o contato com a vergonha, a mágoa e a dor que encobrem. Não podemos curar o que não podemos sentir. Portanto, sem recuperação, nossa vergonha tóxica é passada de geração em geração.

(...) O sistema educacional é uma das principais forças responsáveis pela solidificação do processo de internalização de uma base de vergonha nas pessoas.

O perfeccionismo é uma regra do sistema familiar e é um dos principais responsáveis pelo surgimento da vergonha tóxica. Nós o encontramos tanto no sistema religioso quanto no cultural... O perfeccionismo está envolvido sempre que tomamos uma norma ou padrão negativo e o fazemos absoluto. Uma vez absoluta, a norma se transforma na base de avaliação de tudo o mais. Obtermos nossas comparações e julgamentos de acordo com esse padrão.

Na escola, nossa base e comparação era a nota 10 perfeita. Quando não conseguíamos obter essa nota, éramos avaliados segundo uma escala descendente em que a nota mais baixa era D, e representava reprovação. Nas imagens mentais, ela está associada à palavra "Deficiente". Quando uma criança se torna deficiente na escola, não demora muito para que ocorra a associação de ser deficiente também como pessoa — uma derrotada! As crianças fazem muito rápido essa associação na escola. Elas também associação as "más" notas às pessoas serem más ou defeituosas. E, com muita frequência, as crianças que estão com notas deficientes já têm uma base de vergonha , quando ingressam na escola. Com efeito, sua base de vergonha amiúde faz com que elas fracassem na escola. Quando isso acontece, sua vergonha internalizada se aprofunda. A vergonha tóxica gera a vergonha tóxica.

(...) O sistema escolar oferece uma base de avaliação, baseada na vergonha, para classificar a inteligência das pessoas. Não seria tão mal se esse sistema realmente medisse a inteligência. Comungo da opinião de John Holt de que o verdadeiro teste de inteligência não é aquilo que sabemos fazer, e sim "o que fazemos, quando não sabemos o que fazer".

O perfeccionismo também provoca a competição destrutiva. Sem dúvida existe uma forma gratificante de competitividade. Essa competição nos leva a ter um melhor desempenho, bem como a nos expandir e a crescer. Mas um sistemas perfeccionista, como o atual sistema escolar, estimula a desonestidade e gera elevados níveis de angústia. As notas são com frequência exibidas publicamente para que todos possam ver. E ocorre uma exposição vergonhosa quando alguém tem "más" notas. Até mesmo o adjetivo "mau" se presta à vergonha caracterológica. As pessoas são lançadas umas contra as outras em uma guerra de desempenho. A noção comunitária de empreendimento e cooperação foi perdida.

Nossas escolas exibem a enorme tendência de educar a mente em vez de a pessoa como um todo. Colocamos uma forte ênfase no racionalismo, na lógica e na matemática, sem praticamente nos preocuparmos com as emoções, a intuição e a criatividade. Nossos alunos se tornam imitadores, memorizadores* (que retém na memória) e insípidos conformistas, em vez de criadores estimulantes e sensíveis.

Muitos trabalhos emergiram nas últimas décadas sobre o hemisfério direito do cérebro. este lado do cérebro é a fonte do "pensamento sentimento". O pensamento com sentimento é a essência da música e da poesia. O hemisfério direito é holístico e intuitivo. Ele usa a imaginação ao invés da memória. Os alunos que têm uma propensão natural para esse lado do cérebro são punidos.

Já ouvi falar em alunos brilhantes que foram dolorosamente envergonhados em virtude de sua maneira intuitiva e sensível de conhecer as coisas. Nossa tendência racionalista causa a rejeição envergonhadora* (que causa vergonha) da imaginação e da emoção... De um modo geral, nossas escolas envergonham alguns dos aspectos mais vibrantes e criativos da psique humana.

(...) O segundo grau é a época da puberdade. Esta é uma época na qual nos sentimos extremamente expostos e vulneráveis. Seja qual for a vergonha tóxica que a pessoa traga da infância, ela será posta à prova no segundo grau. Com frequência, os grupos de adolescentes procuram um bode expiatório. Alguém em quem todo mundo possa descarregar e projetar a própria vergonha... O grupo de colegas passa a se parecer com nossos pais. Só que esses pais são muito mais rígidos e têm um número muito maior de pares de olhos para nos examinar. A aparência física é fundamental. A acne e o desenvolvimento sexual insatisfatório podem ser dolorosos. Vestir-se de acordo com os padrões do grupo é uma necessidade se quisermos evitar sermos envergonhados. De um modo geral, a situação pode ser desastrosa, se não formos física ou financeiramente dotados.

(...) As crianças podem ser terrivelmente cruéis... As crianças envergonharão as outras da maneira como foram envergonhadas. E se uma delas estiver sendo envergonhada em casa, irá querer passar adiante a batata quente envergonhando as outras. As crianças gostam de provocar. E a provocação é uma causa importante de vergonha. Os pais frequentemente praticam a provocação e transferem interpessoalmente sua vergonha, provocando os filhos. Os irmãos mais velhos podem fazer provocações extremamente cruéis.

(...) Lamentavelmente, as realizações não reduzem a vergonha internalizada. Na verdade, quanto mais a pessoa consegue, mais quer alcançar. A vergonha tóxica diz respeito a ser; por mais que façamos coisas não conseguiremos modificá-la.


 
John Bradshaw - Curando a Vergonha que impede de viver
 http://pensarcompulsivo.blogspot.com

*palavras não encontradas no dicionário


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