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sábado, 9 de janeiro de 2016

O VAZIO QUE SOMOS
 
Na minha opinião, uma das coisas mais difíceis de fazer — mais difícil do que dominar qualquer disciplina intelectual, por complexa que seja — é despojar nossa vida de toda superficialidade, e examinar, para viver com ela, a integral conscientização daquilo que restar. Poucos são os que se permitiram enfrentar essa realidade, porque despojar-se de todo, psicologicamente, acarreta penoso reconhecimento da natureza e motivações básicas das pessoas. Enfrentar isso, que é como ser virado pelo avesso, ou leva o homem ao desespero e, possivelmente, ao suicídio, ou o conduz diretamente para o esclarecimento, o que consideramos como nada mais nada menos do que viver simplesmente como um ser humano, sem qualquer simulação, sem qualquer importância auto-reconhecida, sem quaisquer impulsos psicológicos que se dirijam para além do aqui e do agora. 

Quem quer que um dia se tenha empenhado em tal autoconfrontação, saberá, imediatamente, de que estamos falando. Por outro lado, a pessoa que ainda não chegou a tal exercício pode considerar útil explorar, não a confrontação em si — que para ela seria, inevitavelmente, por ouvir dizer, uma experiência de segunda mão — mas o que a leva a hesitar diante dela. Esta última indagação, a esta altura, pode fazer-se a única possível, e chegaria, mesmo, a levar diretamente a uma experiência de encarar o caráter básico da pessoa, o reconhecimento da substância primitiva do seu próprio ser. 

É o fato de tudo isso ser extremamente penoso que leva o homem a desistir de fazer o reconhecimento honesto de sua situação total e prosseguir com o confronto. A angústia não está apenas em ver como somos falsos, banais, feios, depois que todas as máscaras de embelezamento que usamos são retiradas. Ela alcança muito mais profundamente, vai ao próprio âmago do nosso ser, quando compreendemos o "artificialismo" da vida que levamos — e, com essa palavra, não estamos apenas nos referindo a um amor excessivo pelas coisas fabricadas, perda de contato com as coisas da terra, ou com a nossa acomodação a uma forma de vida cada vez mais mecanizada e automatizada. Essas coisas, por si mesmas, estariam longe de ser tão más quanto as fazemos, se apresentadas dentro da estrutura de uma perspectiva psicológica fundamentalmente sadia. O que queremos dizer, porém, é quando alguém possui uma visão compreensiva do "mim" e, assim, apreende sua essência, algo se impõe com muita força. É que nosso ser, nosso próprio pensamento, é orientado como causa-efeito numa escala extraordinária. Isso cria um estado de expectativa que nega e sobrepõe-se, inevitavelmente, ao aqui-e-agora. 

Psicologicamente, estamos nisso o tempo todo. Realizamos coisas para que certos efeitos sejam criados, ou trabalhamos por segurança maior, por maior aprovação social, ou para diminuir nosso senso de solidão, ou seja lá para o que possa ser. Estamos muito presos ao conceito do "a fim de que", por isso sempre "vivemos para", e jamais "vivemos", apenas. Há alguma coisa que fazemos, que pensamos, que não seja orientada para uma finalidade? (Talvez somente nas raras ocasiões em que o fazemos por amor e não estejam em jogo aquisições ou recompensas.) Penso que esta é uma descrição justa da nossa ocupação essencial na vida. 

Chega, então, a dura descoberta de que, na realidade, não há, absolutamente, o "a fim de que", não há o "viver para", tais coisas não existindo na natureza — é apenas o  intelecto a extrair dos fenômenos que observa algum tipo de explanação teológico, que, entretanto, permanece como intervenção humana. Com isso vem a compreensão da completa inanidade das nossas ocupações. Não seria tão mal se apenas alguns, ou uns poucos dos nossos esforços se revelassem vãos. Seria uma situação com a qual conseguiríamos tratar, porque a percepção representaria apenas um outro desafio: deslocar nossas atividades para novas áreas de interesse que oferecessem, ao menos, uma porção módica de incentivo. Ser, porém, confrontados com o vazio de tudo que estamos fazendo, pensando, almejando, é mais do que aquilo que podemos suportar. Não deixa, absolutamente, possibilidade de fugir ao nada, porque mesmo as fugas perderam agora o seu atrativo e são vistas como tão inúteis quanto as coisas das quais queremos nos afastar. Subitamente, parece inteiramente claro que estivemos perdendo nosso tempo, empenhados como estávamos em atividades sem significação; ainda assim, o que temos pela frente é menos claro. Se não vamos continuar com as mesmas coisas — e depois do que foi tão claramente visto, não poderemos, de fato, fazer isso — que diferença faz viver ou morrer? Qual é, afinal, o sentido de nossa existência? Ainda há nela algum escopo? Afinal, para nós, que sempre consideramos ser o "esforço", o "trabalhar para" alguma coisa, sinônimo de "viver", a autoconfrontação fornece rápida visão de completa derrota. Mergulhados como ficamos nessa coisa chamada, provisoriamente, o "nada", ficamos, no momento, dado o choque, paralisados quanto ao nosso funcionamento, de hábito orientado para um objetivo.
 
Antes usávamos, prudentemente, o termo "artificialidade" quando nos empenhávamos em descrever nossa forma de viver, e agora vamos ver porque o fizemos: a Realidade nada sabe de fins, objetivos, conceitos e esforços dos seres humanos. O conceito integral de sociedade, com sua luta pelo poder entre as nações, as classes, os indivíduos e hierarquia social levando às perenes tentativas para "subir", tanto social como materialmente, são apenas invenções humanas. Ou talvez fosse mais exato dizer que são o produto de um tipo caracteristicamente diabólico da mente humana. Quando considerada como uma espécie de jogo, no qual o jogador mais ágil ganha um troféu, tal manobra, dentro de regras societárias, pode não afetar a mente de forma duradoura. Quando tomada seriamente, entretanto, torna-se uma armadilha — desperdício de tempo e de energia. Podemos dizer, por exemplo, que o prazer obtido pelos homens em assegurar seu poder sobre seus semelhantes, em "ganhar a competição", e assim por diante, é totalmente irreal. Na verdade, não passa de um escalão que a mente recebe através de sua própria perversão natural, baseada na suposição de que o homem é alguma coisa que não é. (E, é preciso notar, essa perversão se revela, ao mesmo tempo, uma faceta da estrutura social existente.) Assim, a experiência é, realmente, uma espécie de masturbação psicológica, infinitamente mais nociva, porém, do que a fisiológica.
 
Ou, para usar outra forma de exemplo: eu sou, psicologicamente, e de forma completa, dependente de outra pessoa, e, subitamente, essa pessoa morre ou se afasta de mim, e eu fico sem nada. Sinto-me abandonado, obliterado, compreendo, com um choque, que toda a minha existência fora completamente irreal, que me vinha embalando da maneira mais insidiosa, e que a realidade não dá provimento às minhas necessidades e dependência psicológicas particulares. Por que fiz isso — arrimar-me em outra pessoa ou identificar-me com ela? Porque, desde o princípio, havia algo em minha situação pessoal que era, ao mesmo tempo, doloroso e assustador de contemplar. Não sendo capaz de enfrentar essa situação, considerei que, incorporado a uma outra pessoa, menos responsável me fazia, menos vulnerável, menos introspectivo, mais seguro. Mas, como era previsível, "aquilo" me atingiu.
 
Deixe-me dar apenas mais um exemplo da nossa vida no irreal. A morte é real e nós a aceitamos sem demasiada noção enquanto acontece com os que estão fora do círculo próximo da nossa família e amigos. O pensamento da nossa própria morte, entretanto, é a perplexidade, e a maioria das pessoas sente-se incapaz de encarar esse fato inevitável com serenidade. parece-me que essa atitude, como fuga da realidade, pode ser comparada à do homem que descobre que sua noiva, ou sua namorada, já não é virgem. Ele não é o primeiro, e sofre por isso. Entretanto, diante do fato de que, inevitavelmente, há que haver um primeiro, isso importa? Mulheres que perdem sua virgindade de maneira considerada prematura, e tantos homens como mulheres morrendo — de maneira quase sempre considerada prematura — são os átomos da realidade, que aceitamos no universal, e diante dos quais recuamos, no particular.
 
Tratamos dessa questão com certo pormenor, para tornar claro que nossas vidas são de fato artificiais, baseadas em muitas suposições não escritas e não discutidas, de natureza social e cultural arbitrária, e que qualquer tipo de artificialismo, implicando separação da realidade, significa conflito, portanto sofrimento. Isso se dá porque cedo ou tarde a bolha de pensamento confortador, que nos isola da realidade, estoura. A absorção, em nível subliminar, de todos os padrões de pensamento do mundo, é "condicionante". E ver através dos padrões de condicionamento é, na verdade, "aprender". tal como estão as coisas, todos vivemos condicionados mas há, literalmente, um mundo de diferença entre alguém que está inconsciente desse fato e a pessoa que sabe estar condicionada e convive com ele à luz da sua conscientização.
 
Em resumo: pode ser dito que através das nossas atividades, através de hábitos de pensamento indelevelmente impressos — todos, afinal, resultantes do princípio prazer-dor como mola-mestra — estamos completamente desligados do que é real, e assim, da única coisa que pode ser considerada como valendo verdadeiramente a pena. E é esse fato, acima de tudo, o responsável pela nossa angústia.
 
 
Dr. Robert Powell

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