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segunda-feira, 31 de maio de 2021

IMITAÇÃO DE CRISTO - IV

 

Se queres fazer algum progresso conserva-te no temor de Deus; não vivas com demasiada liberdade mas submete os teus sentidos a uma severa disciplina e não te entregues à vã alegria. Dá-te à compunção do coração e acharás a piedade; a compunção traz consigo muitos bens que a dissipação logo nos faz perder. É para maravilhar que nesta vida possa ter alegria perfeita o homem que medita e considera o seu exílio e os muitos perigos a que está exposta a sua alma.

Por causa da leviandade do nosso coração e do esquecimento dos nossos defeitos não sentimos os males de nossa alma e rimos muitas vezes sem motivo quando com razão devêramos chorar. Verdadeira liberdade e alegria pura não há sem temor de Deus e boa consciência. Ditoso aquele que pode desembaraçar-se do impedimento das distrações para unir-se a Deus no recolhimento da santa compunção! Ditoso aquele que de si aparta tudo o que lhe pode manchar ou agravar a consciência! Peleja varonilmente; hábito com hábito se vence. Se souberes deixar os homens também eles te deixarão fazer o que quiseres.

Não te metas na vida alheia e não te enredes nos negócios dos grandes. Põe sempre os olhos em ti primeiro; e repreende-te a ti mesmo de preferência a todos os teus amigos. Não te aflijas por não ter o favor dos homens; só deve entristecer-te o não viver com a virtude e circunspecção que convém a um servo de Deus e a um bom religioso. É muitas vezes mais útil e seguro não ter nesta vida muitas consolações, sobretudo consolações sensíveis. Contudo, se não temos as consolações divinas ou só raras vezes as experimentamos, a culpa é nossa porque não nos damos à compunção do coração nem de todo rejeitamos as vãs consolações exteriores.

Reconhece-te por indigno das consolações de Deus e merecedor de muitas tribulações. Ao homem que se deixa penetrar da compunção perfeita o mundo todo entra logo a parecer-lhe fastidioso e amargo. O justo sempre acha motivo bastante para afligir-se e chorar; porque ou se considere a si ou pense no próximo sabe que ninguém passa pela vida sem tribulações; e quanto mais atentamente se considera tanto maior é a sua dor. Matéria de justa aflição e de compunção interior são os nossos pecados e vícios em que estamos de tal maneira enterrados que raras vezes podemos contemplar as coisas do céu.

Se mais amiúde pensaras na morte do que na duração da vida, sem dúvida te emendarias com mais fervor. Se meditaras também seriamente nas penas futuras do Inferno ou do Purgatório estou certo que suportaras de boa vontade o trabalho e o sofrimento e não temeras nenhuma austeridade. Mas porque estas verdades nos não penetram o coração e amamos ainda tudo o que nos afaga os sentidos, ficamos frios e preguiçosos.

É muitas vezes por fraqueza da alma que tão facilmente se lastima nosso miserável corpo. Ora pois com humildade ao Senhor para que te conceda o espírito de compunção e dize com o Profeta: "Dai-me Senhor a comer o pão das lágrimas e a beber a água abundante de meu pranto. (Salmos LXXIX,6).

Miserável és onde quer que estejas e para onde quer que te voltes se te não convertes a Deus. Por que razão te inquietas por não te irem as coisas como queres e desejas? Quem é que tem tudo à medida de seu gosto? Nem eu, nem tu, nem homem algum na terra. Ninguém há neste mundo, ainda que rei ou papa, sem alguma tribulação ou angústia. Quem está melhor? Certamente o que pode padecer alguma coisa por Deus.

Na sua fraqueza e imbecilidade dizem muitos: "Que vida feliz leva aquele homem! Como é rico! nobre! poderoso e elevado!" Considera, porém, os bens do céu e verás que os bens temporais nada valem: muito incertos, são mais um fardo porque nunca se possuem sem temores e cuidados. Não consiste a felicidade do homem em ter abundância de bens terrenos: basta-lhe a mediania. Em verdade, grande miséria é viver na terra. Quanto mais espiritual quer ser o homem tanto mais amarga se lhe torna a vida presente, porque sente melhor e vê com mais clareza as deficiências da natureza humana corrompida. Comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar, estar sujeito às demais necessidades da natureza é, de fato, grande miséria e aflição para o homem piedoso que deseja viver desatado dos laços do corpo e livre de todo pecado.

Muito oprimido, com efeito, se sente neste mundo, o homem interior com as necessidades do corpo. Por isto pede devotamente o Profeta de ver-se livre delas, dizendo: "De minhas necessidades, livrai-me Senhor" (Salmos XXIV,17). Infelizes os que não conhecem a sua miséria! e mais infelizes ainda os que amam esta vida miserável e transitória! Porque alguns há que a ela se apegam tão fortemente, ainda que trabalhando ou mendigando mal consigam o necessário, que se pudessem viver sempre aqui, nada se lhes daria do reino de Deus.

Oh! corações insensatos e sem fé! tão profundamente míseros nas coisas da terra que já não sabem apreciar senão o que é carnal! Infelizes, sentirão um dia dolorosamente a vileza e o nada de quanto amaram. Mas os santos de Deus e os fiéis amigos de Cristo não atendiam ao que agradava à carne ou ao que brilhava no mundo; com toda a sua esperança e intenção aspiravam aos bens eternos. Todo o seu desejo elevava-se para os bens invisíveis e perenes, afim de que não os arrastasse para a terra o amor das coisas visíveis.

Não percas, irmão, a esperança de progredir na vida espiritual: tens ainda tempo e oportunidade. Por que razão queres adiar o teu propósito? Levanta-te, começa neste mesmo instante e dize: "É tempo de agir, é tempo de pelejar, é tempo de corrigir-me." Quando te sentes aflito e atribulado, então tempo é de merecer. É preciso "passares por fogo e por água antes de chegares ao refrigério" (Salmos LXV,11). Se te não fizeres violência não vencerás o vício. Enquanto estamos neste frágil corpo não nos podemos conservar sem pecado nem viver sem tédio e sem dor. Bem quiséramos fruir de um descanso livre de toda miséria; mas, porque pelo pecado perdemos a inocência perdemos também a verdadeira felicidade. Importa-nos, por isso, perseverar na paciência e aguardar a misericórdia de Deus, "até que passe esta iniquidade" (Salmos LXVI,2) e "o que é mortal seja absorvido pela vida" (II Cor. V,4).

Oh! como é grande a fragilidade humana sempre inclinada aos vícios! Hoje confessas os teus pecados e amanhã tornas a cair neles; agora propões estar sobre ti e daqui a uma hora procedes como se nada houveras proposto. Bem razão temos de nos humilharmos e não nos termos em grande conta: somos tão frágeis e inconstantes! Em pouco tempo também se pode perder por negligência o que só à custa de muito trabalho se adquiriu, com o auxílio da graça.

Que será de nós no fim se já no princípio somos tão tíbios? Ai de nós se queremos entregar-nos ao descanso como se já estivéramos em paz e segurança, quando em nossa vida não se vislumbra ainda nenhum sinal de verdadeira santidade! Bem precisaríamos ser de novo instruídos na virtude como bons noviços para ver se haveria ainda alguma esperança de emenda para o futuro e de maior proveito espiritual.

Bem depressa chegará o teu fim; vê lá como te portas. Hoje o homem está vivo e amanhã já não existe; e quando desapareces dos olhos bem depressa passa também da lembrança. Oh! cegueira e dureza do coração humano que só pensa no presente e não prevê o futuro. Deves pensar e agir sempre como se hoje houveras de morrer. Se tiveras boa consciência não temerás muito a morte. Melhor fora evitar o pecado que fugir à morte. Se hoje não estás preparado, como o estarás amanhã? O dia de amanhã é incerto; quem sabe se lá chegarás?

Que importa viver muito se tão pouco nos corrigimos? A vida longa nem sempre traz emenda e muitas vezes aumenta os pecados. Oxalá um só dia sequer tivéssemos vivido bem neste mundo! Muitos contam os anos de sua conversão; mas, de ordinário, bem pouco é o fruto da emenda. Se terrível é morrer, mais perigoso, talvez, seja viver muito. Feliz daquele que traz sempre diante dos olhos a hora da morte e cada dia se prepara para morrer. Se já viste morrer alguém, pensa que pelo mesmo transe hás de passar.

Pela manhã pensa que não chegarás à noite; e à noite não contes chegar ao dia seguinte. Por isso está sempre aparelhado e vive de tal forma que nunca a morte te surpreenda desapercebido. Muitos morrem súbita e improvisamente; porque "na hora que não se pensa virá o Filho do Homem" (Luc. XII,40) Quando chegar aquela hora extrema, do modo muito diferente começarás a julgar toda a tua vida passada e muito te arrependerás de ter sido tão negligente e relaxado.

Quão ditoso e prudente é o que se esforça por ser tal em vida qual deseja que o encontre a morte! Grande confiança de bem morrer lhe dará o completo desprezo do mundo, o desejo ardente de aproveitar na virtude, o amor da observância, o trabalho da penitência, a prontidão da obediência, a abnegação de si mesmo, a constância em sofrer todas as adversidades por amor de Cristo. Muito bem podes fazer enquanto tens boa saúde; mas, não sei de que serás capaz quando estiveres enfermo. Poucos melhoram com a enfermidade; como raros são os que se santificaram com muitas romarias.

Não confies em parentes e amigos, nem deixes para mais tarde o negócio de tua salvação; mais depressa do que imaginas, de ti se hão de esquecer os homens. Melhor é prover a tempo e mandar boas obras diante de ti do que esperar no auxílio dos outros. Se não cuidas de ti agora, quem cuidará de ti mais tarde? Agora é o tempo precioso; "eis o tempo propício, eis os dias de salvação" (II Cor. VI,2). Mas, que tristeza, não aproveitares melhor agora esse tempo em que podes merecer a vida eterna. Virá o momento em que suspirarás por um dia ou uma hora para te corrigires e não sei se alcançarás.

Coragem, irmão, não imaginas de quantos perigos e de quanto temor te poderás livrar, se agora pensares sempre na morte com receio e desconfiança. Procura viver agora de tal maneira que na hora da morte tenhas mais motivo de alegria que de temor. Aprende agora a morrer para o mundo afim de então começares a viver com Cristo. Aprende agora a desprezar todas as coisas afim de voares então livremente para Cristo. Castiga agora o teu corpo com a penitência para teres então uma confiança certa.

Oh! insensato! por que pensas que hás de viver muito quando não tens um dia seguro? Quantos se iludiram e foram arrancados do corpo quando menos esperavam! Quantas vezes ouviste dizer: este homem morreu assassinado, aquele afogou-se, o outro caiu e quebrou a cabeça; um expirou comendo, outro jogando; este pereceu pelo ferro, aquele pelo fogo; este pela peste, aquele às mãos dos ladrões. E assim o fim de todos é a morte e a vida passa como uma sombra.

Quem se lembrará de ti depois da morte? Quem rezará por ti? Faze, faze agora, irmão meu, tudo o que puderes; não sabes quando hás de morrer nem o que te há de suceder depois da morte. Enquanto tens tempo, entesoura riquezas imperecíveis. Preocupa-te unicamente com a tua salvação e cuida só das coisas de Deus. "Faze, agora, amigos", venerando os santos de Deus e imitando-lhes as ações, para que, "ao saíres desta vida, eles te recebam nas moradas eternas" (Luc. XVI,9).

Vive na terra como hóspede e peregrino a quem nada se lhe dá dos negócios do mundo. Conserva o coração livre e elevado para Deus, porque "não tens aqui morada permanente" (Hebr. XIII,14). Para o céu dirige todos os dias as tuas preces, os teus gemidos e lágrimas para que, depois da morte, mereça a tua alma passar ditosamente ao Senhor. Assim seja.

Em todas as coisas considera o fim e como um dia comparecerás ante o Juiz severo, a quem nada é oculto, que não se deixa aplacar com dádivas nem admite desculpas, mas julga com justiça. Oh! miserável e insensato pecador! que responderás a Deus que conhece todas as tuas maldades, tu que às vezes treme à vista de um homem irado! Por que não te preparas para o dia do juízo em que ninguém poderá ser escusado ou defendido por outrem mas cada qual terá bastante que ver consigo? Agora produz fruto o teu trabalho; as tuas lágrimas são acolhidas e aceitos os teus gemidos; a tua dor é satisfatória e purificativa.

Grande e salutar purgatório tem o homem paciente que, injuriado, mais se aflige com a maldade alheia do que com a ofensa própria; que roga sinceramente pelos que o contrariam e de coração lhes perdoa; se a alguém magoa, não tarda em pedir-lhe perdão; que mais facilmente se inclina à compaixão do que à cólera; que, muitas vezes, faz violência a si mesmo e se esforça por sujeitar de todo a carne ao espírito. Mais vale purificar agora os pecados e extirpar os vícios do que deixar para expiá-los na outra vida. Em verdade nos enganamos a nós mesmos pelo amor desordenado que temos à carne.

Que há de devorar aquele fogo senão os teus pecados? Quanto mais agora te poupares e seguires os apetites da carne tanto mais rigoroso será depois o castigo e mais matéria ajuntas para o fogo eterno. No que o homem mais pecou será mais severamente punido. Ali os preguiçosos serão exasperados com aguilhões ardentes e gulosos, atormentados com grande fome e sede. Ali os luxuriosos e amantes da volúpia serão imersos em pez abrasador e fétido enxofre; e, como cães danados, uivarão de dor os invejosos.

Nenhum vício há que não tenha o seu suplício próprio. Ali, os soberbos estão cheios de confusão e os avarentos, reduzidos à mais miserável indigência. Ali será mais terrível uma hora de tormento do que aqui cem anos da mais rigorosa penitência. Aqui, de quando em quando, cessam os trabalhos e consolamo-nos com os amigos; lá, para os condenados, nenhum descanso, nenhuma consolação. Tem agora cuidado e dor de teus pecados para que no dia do juízo possas partilhar a segurança dos bem-aventurados: porque "então os justos estarão com grande confiança contra os que os angustiaram" (Sap. V,1) e oprimiram. Então se erguerá para julgar o que agora humildemente se curva ao juízo dos homens. Então grande confiança terá o pobre e humilde; e de pavor será envolvido o soberbo.

Ver-se-á então como foi sábio neste mundo o que aprendeu a ser louco e desprezado por Cristo. Então dará prazer toda tribulação suportada com paciência "e a iniquidade não ousará abrir a boca" (Salmos CVI,42). Então exultará de alegria o homem devoto e de tristeza se consternará o ímpio. Mais se alegrará então a carne mortificada que se fora nutrida com delícias. Então resplandecerá o hábito grosseiro e perderão o seu brilho as vestes suntuosas. Mais louvores terá então o casebre do pobre que o palácio resplandecente de ouro. Então mais aproveitará a paciência constante que todo o poder do mundo. Mais exaltada será a obediência simples que toda a astúcia do século.

Então mais alegria causará a pureza de uma boa consciência que a douta filosofia. Mais peso terá o desprezo das riquezas que todos os tesouros da terra. Mais consolação te dará a oração fervorosa, que as iguarias delicadas. Mais alegria terás pelo silêncio guardado do que pelas longas conversas. De maior valor serão as obras santas que as belas frases. Mais te há de agradar então a vida estreita e a penitência rigorosa que todos os prazeres do mundo. Aprende agora a sofrer pouco para te livrares então de sofrimentos mais graves. Experimenta primeiro nesta vida o de que serás capaz na outra. Se não puderes agora suportar tão pouco como poderás sofrer tormentos eternos? Se o menor incômodo te causa agora tanta impaciência, que fará então o inferno? Em verdade duas venturas não poderás reunir: deliciar-te neste mundo e reinar depois com Cristo.

Se até hoje houveras vivido sempre em honras e prazeres, de que te aproveitaria tudo isso se viesses a morrer nesse instante? Assim, pois, "tudo é vaidade" (Ecles. I,2) exceto amar a Deus e só a Ele servir. Quem ama a Deus de todo coração não teme nem a morte nem o castigo, nem o Juízo, nem o Inferno: porque o perfeito amor nos dá acesso seguro junto a Deus. Não admira, porém, que tema a morte e o juízo, aquele que ama ainda o pecado. Se contudo o amor de Deus não te aparta ainda do mal, bom é que, ao menos, te retenha o temor do inferno. Aquele, porém, que despreza o temor de Deus não terá forças para perseverar no bem por muito tempo e bem depressa cairá nas ciladas do demônio.

Tomás de Kempis, trechos do livro "Imitação de Cristo" 
 http://www.monergismo.com
 
(Quarta Parte) 

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