DEIXANDO DE LADO A SOBERBA
A soberba é uma ilusão que destrói o discernimento
Carlos Cardoso Aveline
A
vida faz com que o soberbo seja humilhado, para que descubra a
humildade e o bom senso. Infelizmente, pode ocorrer que o indivíduo
fique longo tempo preso na oscilação violenta entre os extremos da
glória pessoal e da completa derrota, ambas imaginárias.
A
soberba é geralmente definida como sinônimo de orgulho, arrogância e um
sentimento de superioridade em relação aos outros. Dela decorre a
vontade de obter privilégios, de inferiorizar, prejudicar e desprezar os
nossos semelhantes. Isso com frequência é feito de modo sorrateiro e
disfarçado. Muitos sofrem de soberba e nem sabem disso. O fenômeno é com
frequência subconsciente.
A
soberba pode começar como uma defesa contra a humilhação. O pobre eu
maltratado quer indenizar a si mesmo pelo que sofreu, e trata de fazer
isso através da fantasia da autoimportância pessoal. Cai então numa
gangorra de altos e baixos, de glória e derrota, e tudo nesta oscilação é
igualmente falso e exagerado.
Em
um inspirador sermão intitulado “O Espírito da Soberba”, Santo Antônio
de Lisboa e Pádua afirma que o soberbo pisa sobre os pobres e os
menores, mas também gosta de desprezar os que lhe são iguais, e insulta e
zomba dos maiores. Antônio cita uma epístola de Pedro, em que se afirma
que Deus – isto é, a lei universal – resiste aos soberbos, e dá a sua
graça (a graça do bom carma) aos humildes. [1]
O
destino do soberbo é ser humilhado, para descobrir a humildade: mas
muitos soberbos, querendo compensar o trauma da humilhação sofrida ou
evitar a profunda humilhação que temem, desenvolvem como mecanismo de
proteção uma camada ainda mais forte de orgulho disfarçado e vão
novamente à luta contra o mundo, sem aceitar a lição do realismo e do
equilíbrio.
A
soberba é um problema geral da humanidade, afirma Antônio. Nenhum de
nós está completamente livre do autoengano que é o orgulho. Na família,
assim como na sociedade e no convívio entre as nações, as lutas por
poder são quase sempre duelos mais ou menos disfarçados entre formas
diferentes de soberba.
As guerras, a prática do ódio na política e certos campeonatos de futebol são exemplos claros disso.
Mas
a doença da busca de superioridade sobre os outros vai muito além da
competição e da inveja nas relações humanas. A soberba é o princípio de
toda ilusão. A luxúria e outras formas de prazer exagerado são variantes
desta fantasia adoentada de superioridade.
Por
isso o Cristianismo, assim como as religiões orientais, descreve o
sábio como alguém exteriormente pobre, manso e humilde de coração. Os
meios esotéricos e teosóficos não estão de modo algum livres da soberba.
O desejo de parecer santo é uma marca do tolo infantil, que prefere
fingir para si mesmo e para os outros, ao invés de viver com
autenticidade.
Um
dos princípios básicos da filosofia ocidental clássica é o axioma
estoico do imperador Marco Aurélio, segundo o qual é aconselhável viver
cada dia da nossa vida como se fosse o último. Lembrar da fragilidade da
existência humana é uma lição de realismo e permite perceber quão
preciosa ela é, e como são fúteis e inúteis as manias de grandeza, assim
como as manias de perseguição.
O
Jesus do Novo Testamento deu um exemplo de vida simples e humilde.
Francisco de Assis, para compensar a soberba que via no alto clero
cristão da sua época, criou a “ordem dos frades menores”, da qual Santo
Antônio de Lisboa foi membro.
E Antônio prevê:
“…Quando
uma humildade mais forte entrar no coração do homem e vencer o espírito
da soberba e expulsar a cegueira do entendimento, então [os cinco
sentidos] se mudarão dos vícios para as virtudes, da soberba para a
humildade. Então, pois, aparecerão nos olhos a humildade e a
simplicidade; na boca ressoarão a verdade e a bondade; dos ouvidos se
removerá toda maledicência e toda lisonja; nas mãos se encontrará a
pureza e a piedade; nos pés, a ponderação.” [2]
Antônio
termina o sermão pedindo a Jesus – símbolo da alma espiritual de cada
um – que vença com humildade a soberba do sentimento maldoso. E que nos
possibilite quebrar com a simplicidade do coração a dureza da soberba e
do orgulho, e “estender por toda parte nos sentidos do nosso corpo o
sinal da humildade, a fim de que mereçamos chegar à sua glória”.
A
humildade de que se fala na mística cristã e na teosofia autêntica é a
base da verdadeira dignidade interior. Graças a ela, o ser humano é
suficientemente realista para perceber que tem em si mesmo algo
magnífico, a consciência elevada da sua própria alma espiritual. De
outro lado, o eu inferior, que coordena o funcionamento dos seus cinco
sentidos, é como um pobre animal a que pode faltar equilíbrio no modo
como avalia a si mesmo. O eu inferior deve ser bem cuidado, corretamente
treinado, e esclarecido sobre sua função na vida, para que desenvolva o
necessário bom senso.
NOTAS:
[1]
“Obras Completas”, Santo António de Lisboa, Lello & Irmão,
Editores, Porto, Portugal, 1987, edição em dois volumes, ver volume I,
pp. 186-187. Santo António, ou Antônio, nasceu entre 1190 e 1195 e viveu
até 1231.
[2]
“Obras Completas”, vol. I, pp. 191-192. No original deste trecho, temos
“detracção”, ao invés de “maledicência”, palavra que uso para facilitar
a compreensão do leitor do século 21. Alguns tempos de verbos foram
adaptados à gramática atual.
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