IMITAÇÃO DE CRISTO - II
Não te julgues melhor que os outros para que não sejas tido talvez como pior aos olhos de Deus que sabe o que há no homem. Não te ensoberbeças por tuas boas obras, porque bem diversos dos homens são os juízos de Deus, a quem desagrada muitas vezes o que aos homens agrada. Se em ti reconheceres algum bem, pensa que são melhores os outros e assim te conservarás em humildade. Nenhum mal há em te colocares abaixo de todos; grande mal, porém, se ainda a um só te preferires. No coração humilde, paz contínua; no soberbo, freqüente o ciúme e a irritação.
"Não abras o teu coração a qualquer pessoa" (Eccles. VIII, 22) mas trata das tuas coisas com homem sábio e temente a Deus. Com os moços e pessoas de fora conversa pouco. Não bajules os ricos nem gostes de aparecer na presença dos poderosos. Procura a companhia dos humildes e simples, dos piedosos e de bons costumes e com eles entretém-te de coisas edificantes. Não tenhas familiaridade com mulher alguma, mas, em geral, encomenda a Deus todas as mulheres de virtude. Intimidade deseja só com Deus e os Anjos; e evita ser conhecido dos homens.
Grande coisa é viver em obediência, sob a direção de um superior e não ser senhor de si. Muito mais seguro é obedecer que mandar. Muitos vivem em obediência mais por necessidade que por amor; e por isto andam desgostosos e murmuram com facilidade; nunca chegarão à liberdade de espírito se não se submeterem de todo coração por amor de Deus. Para onde quer que vás não encontrarás descanso senão na humilde sujeição à autoridade superior. Muitos se têm iludido imaginando que a mudança de lugar traz melhora.
É
verdade que cada qual gosta de seguir o próprio parecer e mais se
inclina para os que pensam como ele. Mas se Deus está conosco é mister
que algumas vezes renunciemos ao nosso modo de ver por amor da paz. Quem
é tão sábio que chegue a saber tudo perfeitamente? Não confies, pois,
demais na tua opinião mas de bom grado ouve também a dos outros. Se for
bom o teu parecer e o deixares por amor de Deus para seguir o de outrem,
terás com isto maior proveito.
Muitas vezes ouvi que mais seguro é tomar que dar conselho. Bem pode
também suceder que seja bom o parecer de cada um; mas não querer ceder
aos outros quando a razão ou as circunstâncias o pedem, sinal é de
soberba teimosia.
Evita
quanto puderes o bulício do mundo; tratar de coisas seculares, ainda
com intenção pura, traz sempre grande detrimento. Bem depressa nos
deixamos inquinar e prender pela vaidade. Tomara eu tantas vezes
haver-me calado e não ter estado entre os homens! Por que razão gostamos
tanto de falar e conversar quando raras vezes voltamos ao silêncio sem
trazer a consciência magoada? A razão por que tão de boa vontade falamos
é porque nas nossas conversas procuramos consolar-nos mutuamente e
queremos aliviar o coração fatigado de tantas preocupações. E é sempre
agradável falar e pensar naquilo que muito amamos e desejamos ou que nos
contraria.
Mas,
infelizmente, quase sempre em vão: esta consolação externa não é
pequeno obstáculo às consolações interiores e divinas. Importa vigiar e
orar para que não passe inutilmente o tempo. Quando for permitido ou
conveniente falar, fala de coisas edificantes. O mau costume e o
descuido do nosso aproveitamento muito contribuem para o desmando da
língua. Muito, porém, aproveitam para o progresso da alma as
conferências piedosas sobre assuntos espirituais principalmente quando
se reúnem no Senhor, pessoas animadas das mesmas intenções e do mesmo
espírito.
De muita paz poderíamos gozar se não nos quiséramos meter com as
palavras e ações dos outros que não são de nossa conta. Como poderá
permanecer muito tempo em paz aquele que se intromete em negócios
alheios, que procura dissipar-se nas coisas externas e dentro de si,
pouco ou raras vezes, se recolhe? Bem-aventurados os simples porque
terão muita paz!
Por
que razão foram alguns santos tão perfeitos e contemplativos? Porque
aplicaram-se seriamente a renunciar a todos os desejos terrenos e por
isto puderam de todo o coração fixar-se em Deus e ocupar-se de si
livremente. Nós, porém, deixamos levar-nos demasiadamente pelas próprias
paixões e pela solicitude das coisas que passam; raras vezes vencemos
um vício perfeitamente; não nos alentamos por fazer cada dia algum
progresso: por isto, ficamos sempre frouxos e tíbios.
Se
estivéramos inteiramente mortos a nós mesmos e menos embaraçados no
nosso interior, poderíamos saborear as coisas divinas e ter alguma
experiência da contemplação celestial. O maior, o único obstáculo é que
não nos desvencilhamos das paixões e concupiscências nem nos decidimos a
entrar no caminho perfeito dos santos. Mal surge uma pequena
contrariedade, deixamo-nos logo entrar de desânimo e voltamos às
consolações humanas.
Se
nos esforçáramos, como varões fortes, por perseverar na luta,
sentiríamos por certo que do céu desceria sobre nós o auxílio do Senhor;
Ele está pronto a ajudar os que pelejam e confiam na sua graça e não
nos proporciona as ocasiões de combate senão para que alcancemos a
vitória. Se apenas nas observâncias exteriores ciframos o progresso da
vida religiosa, em breve se extinguirá a nossa piedade. Levemos o
machado à raiz para que, purificados das paixões, tenhamos a alma em
paz.
Se
cada ano extirpássemos um vício bem depressa seríamos perfeitos. Mas o
que de fato experimentamos é muitas vezes o contrário: fomos melhores e
mais puros no princípio da nossa conversão do que após muitos anos de
professo. Todos os dias devera aumentar o fervor e o aproveitamento;
mas, infelizmente, hoje já se tem por muito se alguém conserva parte do
zelo primitivo. Se no começo nos fizéssemos um pouco de violência, tudo
poderíamos fazer em seguida com facilidade e alegria.
Custoso
é deixar o costume antigo; mais custoso ainda, contrariar a vontade
própria; mas se não vences o pouco e o fácil como triunfarás do difícil?
Resiste no princípio à tua inclinação e desfase-te do hábito mau para
que, pouco a pouco, não te arraste talvez a maiores dificuldades. Oh! Se
consideraras quanta paz desfrutarias tu e quanto prazer darias aos
outros levando vida regrada, estou certo que serias mais solícito pelo
teu progresso espiritual.
Bom
é que, de quando em quando, passemos por sofrimentos e contrariedades,
porque muitas vezes fazem o homem entrar em si, lembrando-lhe que vive
no desterro e em coisa nenhuma do mundo deve por a sua esperança. Bom é
que, por vezes, padeçamos contradições e de nós se não tenha boa estima,
ainda quando são boas as nossas ações e intenções. Isto muito nos ajuda
a ser humildes e preserva-nos da vanglória. Quando, fora, os homens nos
desprezam e se não fiam de nós, procuramos com mais cuidado ter a Deus
por testemunha do nosso interior.
Em Deus devera o homem de tal modo firmar-se que não precisasse
mendigar tantas consolações humanas. Quando o homem de boa vontade é
atribulado, tentado ou molestado de maus pensamentos, compreende melhor
que Deus lhe é necessário e sem Ele nada pode de bom. Então se
entristece, geme e ora pelas suas misérias. Pesa-lhe, também, o viver
por tanto tempo e suspira pela morte para que possa, "livre dos laços do
corpo estar com Cristo" (Filip. I,23). Então ainda se persuade que
segurança perfeita e paz completa não pode haver neste mundo.
Enquanto vivemos neste mundo não podemos estar sem trabalhos e
tentações. Por isto está escrito no livro de Jó: "É milícia a vida do
homem na terra" (Jó VII,1). Deve, pois cada qual estar sempre alerta
sobre as tentações que o assaltam e vigiar e orar para que o não
surpreenda o demônio que não dorme "mas ronda sempre à procura de quem
devorar" (S. Petr. V, 8). Não há homem tão perfeito e santo que, de
quando em quando, não tenha tentações; totalmente livres delas não
podemos viver.
As
tentações, porém, ainda que molestas e graves, são muitas vezes de
grande utilidade para o homem; nelas se adquire humildade, pureza e
experiência. Por muitas tentações e tribulações passaram todos os santos
e com isto aproveitaram; os que não puderam resistir-lhes, sucumbiram e
perderam-se. Não há Ordem religiosa tão santa nem lugar tão retirado
onde não haja tentações e adversidades.
Enquanto viver, nenhum homem será de todo ao abrigo das tentações;
porque, nascidos na concupiscência, em nós está a causa pela qual somos
tentados. Quando se vai uma tentação ou tribulação, sobrevém outra; e
assim teremos sempre que sofrer, uma vez que perdemos o bem da nossa
primeira felicidade. Muitos procuram fugir às tentações e nelas caem
mais gravemente. Só com a fuga não as podemos vencer; é a paciência e a
verdadeira humildade que nos tornam mais fortes que todos os inimigos.
Quem evita somente as ocasiões exteriores e não extirpa o mal pela
raiz, pouco aproveitará; antes, mais depressa voltarão as tentações e se
achará pior. Pouco a pouco, com a ajuda de Deus, vencerás melhor, pela
paciência e longanimidade, do que pela violência e azedume. Toma
conselho mais vezes na hora da tentação; e não trates com aspereza a
quem é tentado; mas consola-o como desejavas que fizessem contigo.
A
causa de todas as tentações perigosas é a inconstância e a falta de
confiança em Deus. Como o navio sem leme é joguete das ondas, assim o
homem remisso e pouco firme nos seus propósitos é agitado por toda sorte
de tentações. O fogo prova o ferro; a tentação, o justo. Ignoramos
muitas vezes o que valemos, a tentação faz-nos ver o que somos. Cumpre,
porém, vigiar, principalmente no princípio da tentação, mais fácil então
é vencer o inimigo, se lhe fechamos logo a porta da alma e lhe
resistimos apenas se apresenta fora do limiar. Por isto disse alguém:
"Atalha no princípio; tarde chega o remédio se o mal, por longo tempo,
fundas raízes lançou" (" Principiis obsta; sero medicina paratur Quum
mala per longas invaluere moras " - Ovidio).
Primeiramente
apresenta-se à alma um simples pensamento, a seguir uma imaginação
viva, depois a deleitação, o movimento desordenado e o consentimento.
Assim, aos poucos, força de todo a entrada o inimigo maligno a quem logo
lhe não resistiu; e quanto por mais tempo for a alma entorpecendo na
resistência, tanto mais fraca ela vai ficando e mais poderoso o seu
adversário.
Uns padecem tentações mais violentas no início de sua conversão;
outros, no fim; alguns porém são atormentados quase toda a vida; há
também os que são tentados com mais brandura; assim o dispõe a sabedoria
e justiça da divina Providência que pesa o estado e os merecimentos dos
homens e tudo ordena para a salvação de seus escolhidos.
Por isso, não devemos perder a confiança quando somos tentados, antes
pedir a Deus com mais fervor que se digne ajudar-nos na tribulação. Ele,
que segundo a palavra de S. Paulo, "com a tentação dará o auxílio para
que possamos resistir-lhe" (I Cor. X, 13). Humilhemos, pois, as nossas
almas sob a mão de Deus na tentação e na tribulação, porque os humildes
de espírito, Ele os há de salvar e exaltar.
Nas tentações e tribulações vê-se quanto aproveitou a alma; nelas maior
é o merecimento e melhor se manifesta a virtude. Não é lá grande valor
ser o homem devoto e fervoroso quando nada lhe dá pena; esperança de
muito aproveitamento haverá, porém, se suporta com paciência o tempo da
adversidade. Alguns guardam-se das grandes tentações e são vencidos
muitas vezes nas pequenas de cada dia, para que, humilhados, não
presumam de si nas grandes ocasiões os que nas tão insignificantes
fraquejam.
Tomás de Kempis, trechos do livro "Imitação de Cristo" http://www.monergismo.com
(Segunda Parte)
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