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quarta-feira, 19 de maio de 2021

IMITAÇÃO DE CRISTO - II

Insensato quem coloca a sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir aos outros por amor de Jesus Cristo nem de parecer pobre neste mundo. Não te apoies em ti mas em Deus firma a tua esperança. Fazei o que está em tuas mãos e Deus ajudará tua boa vontade. Não confies na tua ciência nem na indústria de nenhuma alma viva, mas na graça de Deus que ajuda os humildes e humilha os presunçosos.   
 
Não te glories nas riquezas se as tiveres, nem nos amigos por serem poderosos, mas em Deus que tudo nos dá e acima de tudo deseja dar-se a si mesmo. Não te envaideças da robustez ou da formosura do corpo que a menor enfermidade quebranta e desfigura. Não te comprazes nas tuas habilidades e talentos, para não desagradares a Deus a quem pertencem todos os teus dons naturais.

Não te julgues melhor que os outros para que não sejas tido talvez como pior aos olhos de Deus que sabe o que há no homem. Não te ensoberbeças por tuas boas obras, porque bem diversos dos homens são os juízos de Deus, a quem desagrada muitas vezes o que aos homens agrada. Se em ti reconheceres algum bem, pensa que são melhores os outros e assim te conservarás em humildade. Nenhum mal há em te colocares abaixo de todos; grande mal, porém, se ainda a um só te preferires. No coração humilde, paz contínua; no soberbo, freqüente o ciúme e a irritação.

"Não abras o teu coração a qualquer pessoa" (Eccles. VIII, 22) mas trata das tuas coisas com homem sábio e temente a Deus. Com os moços e pessoas de fora conversa pouco. Não bajules os ricos nem gostes de aparecer na presença dos poderosos. Procura a companhia dos humildes e simples, dos piedosos e de bons costumes e com eles entretém-te de coisas edificantes. Não tenhas familiaridade com mulher alguma, mas, em geral, encomenda a Deus todas as mulheres de virtude. Intimidade deseja só com Deus e os Anjos; e evita ser conhecido dos homens.

Caridade, com todos; mas familiaridade, não convém. Sucede, não raro, que uma pessoa, de longe, brilha com o esplendor da fama, mas, de perto desmerece aos olhos dos que a veem. Cuidamos às vezes agradar aos outros com a nossa assiduidade, mas, com isto, lhes desagradamos pelos defeitos que em nós vão descobrindo. 

Grande coisa é viver em obediência, sob a direção de um superior e não ser senhor de si. Muito mais seguro é obedecer que mandar. Muitos vivem em obediência mais por necessidade que por amor; e por isto andam desgostosos e murmuram com facilidade; nunca chegarão à liberdade de espírito se não se submeterem de todo coração por amor de Deus. Para onde quer que vás não encontrarás descanso senão na humilde sujeição à autoridade superior. Muitos se têm iludido imaginando que a mudança de lugar traz melhora.  

É verdade que cada qual gosta de seguir o próprio parecer e mais se inclina para os que pensam como ele. Mas se Deus está conosco é mister que algumas vezes renunciemos ao nosso modo de ver por amor da paz. Quem é tão sábio que chegue a saber tudo perfeitamente? Não confies, pois, demais na tua opinião mas de bom grado ouve também a dos outros. Se for bom o teu parecer e o deixares por amor de Deus para seguir o de outrem, terás com isto maior proveito.

Muitas vezes ouvi que mais seguro é tomar que dar conselho. Bem pode também suceder que seja bom o parecer de cada um; mas não querer ceder aos outros quando a razão ou as circunstâncias o pedem, sinal é de soberba teimosia.

Evita quanto puderes o bulício do mundo; tratar de coisas seculares, ainda com intenção pura, traz sempre grande detrimento. Bem depressa nos deixamos inquinar e prender pela vaidade. Tomara eu tantas vezes haver-me calado e não ter estado entre os homens! Por que razão gostamos tanto de falar e conversar quando raras vezes voltamos ao silêncio sem trazer a consciência magoada? A razão por que tão de boa vontade falamos é porque nas nossas conversas procuramos consolar-nos mutuamente e queremos aliviar o coração fatigado de tantas preocupações. E é sempre agradável falar e pensar naquilo que muito amamos e desejamos ou que nos contraria.

Mas, infelizmente, quase sempre em vão: esta consolação externa não é pequeno obstáculo às consolações interiores e divinas. Importa vigiar e orar para que não passe inutilmente o tempo. Quando for permitido ou conveniente falar, fala de coisas edificantes. O mau costume e o descuido do nosso aproveitamento muito contribuem para o desmando da língua. Muito, porém, aproveitam para o progresso da alma as conferências piedosas sobre assuntos espirituais principalmente quando se reúnem no Senhor, pessoas animadas das mesmas intenções e do mesmo espírito.

De muita paz poderíamos gozar se não nos quiséramos meter com as palavras e ações dos outros que não são de nossa conta. Como poderá permanecer muito tempo em paz aquele que se intromete em negócios alheios, que procura dissipar-se nas coisas externas e dentro de si, pouco ou raras vezes, se recolhe? Bem-aventurados os simples porque terão muita paz!

Por que razão foram alguns santos tão perfeitos e contemplativos? Porque aplicaram-se seriamente a renunciar a todos os desejos terrenos e por isto puderam de todo o coração fixar-se em Deus e ocupar-se de si livremente. Nós, porém, deixamos levar-nos demasiadamente pelas próprias paixões e pela solicitude das coisas que passam; raras vezes vencemos um vício perfeitamente; não nos alentamos por fazer cada dia algum progresso: por isto, ficamos sempre frouxos e tíbios.

Se estivéramos inteiramente mortos a nós mesmos e menos embaraçados no nosso interior, poderíamos saborear as coisas divinas e ter alguma experiência da contemplação celestial. O maior, o único obstáculo é que não nos desvencilhamos das paixões e concupiscências nem nos decidimos a entrar no caminho perfeito dos santos. Mal surge uma pequena contrariedade, deixamo-nos logo entrar de desânimo e voltamos às consolações humanas.  

Se nos esforçáramos, como varões fortes, por perseverar na luta, sentiríamos por certo que do céu desceria sobre nós o auxílio do Senhor; Ele está pronto a ajudar os que pelejam e confiam na sua graça e não nos proporciona as ocasiões de combate senão para que alcancemos a vitória. Se apenas nas observâncias exteriores ciframos o progresso da vida religiosa, em breve se extinguirá a nossa piedade. Levemos o machado à raiz para que, purificados das paixões, tenhamos a alma em paz.

Se cada ano extirpássemos um vício bem depressa seríamos perfeitos. Mas o que de fato experimentamos é muitas vezes o contrário: fomos melhores e mais puros no princípio da nossa conversão do que após muitos anos de professo. Todos os dias devera aumentar o fervor e o aproveitamento; mas, infelizmente, hoje já se tem por muito se alguém conserva parte do zelo primitivo. Se no começo nos fizéssemos um pouco de violência, tudo poderíamos fazer em seguida com facilidade e alegria.  

Custoso é deixar o costume antigo; mais custoso ainda, contrariar a vontade própria; mas se não vences o pouco e o fácil como triunfarás do difícil? Resiste no princípio à tua inclinação e desfase-te do hábito mau para que, pouco a pouco, não te arraste talvez a maiores dificuldades. Oh! Se consideraras quanta paz desfrutarias tu e quanto prazer darias aos outros levando vida regrada, estou certo que serias mais solícito pelo teu progresso espiritual.

Bom é que, de quando em quando, passemos por sofrimentos e contrariedades, porque muitas vezes fazem o homem entrar em si, lembrando-lhe que vive no desterro e em coisa nenhuma do mundo deve por a sua esperança. Bom é que, por vezes, padeçamos contradições e de nós se não tenha boa estima, ainda quando são boas as nossas ações e intenções. Isto muito nos ajuda a ser humildes e preserva-nos da vanglória. Quando, fora, os homens nos desprezam e se não fiam de nós, procuramos com mais cuidado ter a Deus por testemunha do nosso interior.

Em Deus devera o homem de tal modo firmar-se que não precisasse mendigar tantas consolações humanas. Quando o homem de boa vontade é atribulado, tentado ou molestado de maus pensamentos, compreende melhor que Deus lhe é necessário e sem Ele nada pode de bom. Então se entristece, geme e ora pelas suas misérias. Pesa-lhe, também, o viver por tanto tempo e suspira pela morte para que possa, "livre dos laços do corpo estar com Cristo" (Filip. I,23). Então ainda se persuade que segurança perfeita e paz completa não pode haver neste mundo.

Enquanto vivemos neste mundo não podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isto está escrito no livro de Jó: "É milícia a vida do homem na terra" (Jó VII,1). Deve, pois cada qual estar sempre alerta sobre as tentações que o assaltam e vigiar e orar para que o não surpreenda o demônio que não dorme "mas ronda sempre à procura de quem devorar" (S. Petr. V, 8). Não há homem tão perfeito e santo que, de quando em quando, não tenha tentações; totalmente livres delas não podemos viver.

As tentações, porém, ainda que molestas e graves, são muitas vezes de grande utilidade para o homem; nelas se adquire humildade, pureza e experiência. Por muitas tentações e tribulações passaram todos os santos e com isto aproveitaram; os que não puderam resistir-lhes, sucumbiram e perderam-se. Não há Ordem religiosa tão santa nem lugar tão retirado onde não haja tentações e adversidades.

Enquanto viver, nenhum homem será de todo ao abrigo das tentações; porque, nascidos na concupiscência, em nós está a causa pela qual somos tentados. Quando se vai uma tentação ou tribulação, sobrevém outra; e assim teremos sempre que sofrer, uma vez que perdemos o bem da nossa primeira felicidade. Muitos procuram fugir às tentações e nelas caem mais gravemente. Só com a fuga não as podemos vencer; é a paciência e a verdadeira humildade que nos tornam mais fortes que todos os inimigos.  

Quem evita somente as ocasiões exteriores e não extirpa o mal pela raiz, pouco aproveitará; antes, mais depressa voltarão as tentações e se achará pior. Pouco a pouco, com a ajuda de Deus, vencerás melhor, pela paciência e longanimidade, do que pela violência e azedume. Toma conselho mais vezes na hora da tentação; e não trates com aspereza a quem é tentado; mas consola-o como desejavas que fizessem contigo.

A causa de todas as tentações perigosas é a inconstância e a falta de confiança em Deus. Como o navio sem leme é joguete das ondas, assim o homem remisso e pouco firme nos seus propósitos é agitado por toda sorte de tentações. O fogo prova o ferro; a tentação, o justo. Ignoramos muitas vezes o que valemos, a tentação faz-nos ver o que somos. Cumpre, porém, vigiar, principalmente no princípio da tentação, mais fácil então é vencer o inimigo, se lhe fechamos logo a porta da alma e lhe resistimos apenas se apresenta fora do limiar. Por isto disse alguém: "Atalha no princípio; tarde chega o remédio se o mal, por longo tempo, fundas raízes lançou" (" Principiis obsta; sero medicina paratur Quum mala per longas invaluere moras " - Ovidio).

Primeiramente apresenta-se à alma um simples pensamento, a seguir uma imaginação viva, depois a deleitação, o movimento desordenado e o consentimento. Assim, aos poucos, força de todo a entrada o inimigo maligno a quem logo lhe não resistiu; e quanto por mais tempo for a alma entorpecendo na resistência, tanto mais fraca ela vai ficando e mais poderoso o seu adversário.

Uns padecem tentações mais violentas no início de sua conversão; outros, no fim; alguns porém são atormentados quase toda a vida; há também os que são tentados com mais brandura; assim o dispõe a sabedoria e justiça da divina Providência que pesa o estado e os merecimentos dos homens e tudo ordena para a salvação de seus escolhidos.

Por isso, não devemos perder a confiança quando somos tentados, antes pedir a Deus com mais fervor que se digne ajudar-nos na tribulação. Ele, que segundo a palavra de S. Paulo, "com a tentação dará o auxílio para que possamos resistir-lhe" (I Cor. X, 13). Humilhemos, pois, as nossas almas sob a mão de Deus na tentação e na tribulação, porque os humildes de espírito, Ele os há de salvar e exaltar.  

Nas tentações e tribulações vê-se quanto aproveitou a alma; nelas maior é o merecimento e melhor se manifesta a virtude. Não é lá grande valor ser o homem devoto e fervoroso quando nada lhe dá pena; esperança de muito aproveitamento haverá, porém, se suporta com paciência o tempo da adversidade. Alguns guardam-se das grandes tentações e são vencidos muitas vezes nas pequenas de cada dia, para que, humilhados, não presumam de si nas grandes ocasiões os que nas tão insignificantes fraquejam.

 

Tomás de Kempis, trechos do livro "Imitação de Cristo" http://www.monergismo.com
(Segunda Parte)

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