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quinta-feira, 20 de maio de 2021

IMITAÇÃO DE CRISTO - III

Põe os olhos em ti e guarda-te de julgar as ações alheias. Julgando os outros o homem trabalha em vão, erra o mais das vezes e facilmente peca; julgando e examinando a si mesmo trabalha sempre com proveito. Julgamos frequentemente das coisas conforme nos falam ao coração; porque o amor próprio turva facilmente a verdade dos nossos juízos. Se Deus fora sempre o único objeto de nossos desejos não nos perturbaríamos tão depressa quando contrariam a nossa vontade.

Há porém muitas vezes alguma razão oculta ou algum motivo externo que também em nós influi. Muitos, no que fazem, buscam secretamente a si mesmos, sem o saber. Parecem também estar em perfeita paz quando as coisas lhes correm à medida dos desejos; mal, porém, lhes não sucedem à vontade logo se perturbam e entristecem. Por causa da diversidade de sentimentos e opiniões, nascem frequentes discórdias entre amigos e vizinhos, entre religiosos e pessoas piedosas.

É coisa difícil deixar um costume antigo e ninguém de boa mente renuncia ao seu modo de ver. Se confias mais em tua razão e habilidade do que na virtude que nos submete a Jesus Cristo, tarde e raras vezes terá a alma iluminada; Deus quer que a Ele nos sujeitemos perfeitamente, e, inflamados no seu amor, nos elevemos acima de toda a razão humana.

Por coisa nenhuma deste mundo, nem por amor de quem quer que seja, se deve praticar o mal. É livre, porém, interromper uma ação boa ou substituí-la por outra melhor para prestar serviço a quem precisa; assim não se destrói a boa ação mas transforma-se em outra de maior valor. Sem a caridade de nada vale nenhuma obra exterior. Tudo, porém, o que dela se inspira, por pequeno e desprezível que seja, produz abundantes frutos: mais que a ação, Deus pesa a intenção.

Muito faz quem muito ama. Muito faz quem faz bem. Bem faz quem serve ao interesse comum mais que à vontade própria. O que muitas vezes parece caridade é concupiscência: porque raras vezes, a inclinação natural, a vontade própria, a esperança de recompensa, o amor às comodidades deixam de influir em nossas ações.

Quem possui a verdadeira e perfeita caridade não busca a si em coisa alguma mas seu único desejo é que em tudo se realize a glória de Deus. A ninguém inveja, porque não aprecia nenhum prazer particular nem em si mesmo quer alegrar-se, mas, em Deus, acima de todos os bens, coloca a sua felicidade. A nenhuma criatura atribui bem algum, mas tudo refere a Deus, fonte perene, donde promanam todos os bens, fim beatífico, em que descansam todos os santos. Oh! quem tivera uma centelha de verdadeira caridade! como lhe pareceriam vãs todas as coisas da terra!

O que não pode o homem emendar em si ou nos outros deve suportar com paciência até que Deus disponha de outra maneira. Considera que assim é talvez melhor para provar a tua paciência, sem a qual não são de grande peso os nossos merecimentos. Nestas contrariedades, porém, deves pedir a Deus que se digne ajudar-te para suportá-las serenamente.

Se alguém, advertido uma ou duas vezes, se não emendar, não porfies com ele, mas encomenda tudo a Deus que sabe tirar o bem do mal, afim de que se faça a sua vontade e Ele seja glorificado em todos os seus servos. Esforça-te por suportar com paciência os defeitos e fraquezas alheias; também os outros terão muito que suportar de ti. Se não te podes fazer qual quiseras, como poderás alcançar se conformem os demais aos teus desejos? Bem folgamos, não tenham defeitos os outros; mas os nossos, não os emendamos.

Queremos se corrijam os outros com rigor, mas nós não queremos ser repreendidos; parece-nos mal a demasiada liberdade alheia mas nós não queremos se nos negue o que pedimos; gostamos sejam os mais apertados com estatutos, mas nós não sofremos a menor proibição. Por onde se vê, como é raro usarmos da mesma balança para nós e para os outros. Se foram todos perfeitos que houvéramos de sofrer por amor de Deus?

Assim, porém, o dispôs Deus para que aprendêssemos "a levar a carga, uns dos outros" (Gal. VI,2); porque todos têm a sua carga; ninguém há sem defeitos, ninguém basta a si mesmo; nem é suficientemente sábio para guiar-se; mas, reciprocamente, devemos suportar-nos e consolar-nos; uns aos outros devemos prestar auxílio, instrução e conselho. Na adversidade melhor se manifesta a virtude de cada um; a ocasião não faz o homem fraco, revela-o tal qual é.

Importa que aprendas a dobrar-te em muitas coisas, se queres ter paz e concórdia com os outros. Não é pouco morar em mosteiros ou comunidade, aí viver sem queixas e perseverar fielmente até à morte. Feliz aquele que aí vive bem e acaba santamente. Se queres conservar-te firme e crescer na virtude, considera-te como desterrado e peregrino sobre a terra. É mister que te faças "louco por amor de Cristo" se queres seguir a vida religiosa.

De pouco valem o hábito e a tonsura; é a mudança dos costumes e a perfeita mortificação das paixões que fazem o verdadeiro religioso. Quem procura outra coisa fora de Deus e da salvação de sua alma só achará tribulação e dor. Não pode também viver muito tempo em paz quem não se esforça por ser o menor e o mais submisso de todos.

Vieste para servir, não para mandar; persuade-te que foste chamado a trabalhar e sofrer e não a descansar e palestrar. Aqui se provam os homens como o ouro no crisol; aqui ninguém pode perseverar se de todo coração não quiser humilhar-se por amor de Deus.

Contempla os exemplos vivos dos Santos Padres nos quais resplandeceu a verdadeira perfeição da vida religiosa e verás quão pouco é e quase nada o que fazemos. Ai! que é nossa vida comparada com a deles? Os Santos e amigos de Cristo serviram ao Senhor "em fome e sede, em frio e nudez, em trabalhos forçados e fadigas, em vigílias e jejuns" (II Cor. XI, 27), em orações e santas meditações, em mil perseguições e opróbrios.

Oh! quantas e quão graves tribulações padeceram os apóstolos, os mártires, os confessores, as virgens e todos os mais que quiseram seguir as pegadas de Cristo. "Odiaram as suas almas neste mundo para possuí-las na vida eterna" (João XII,25). Que vida abnegada e austera levaram os Santos Padres no ermo! que fortes e porfiadas tentações sofreram! quantas vezes foram atormentados pelo inimigo! que orações contínuas e fervorosas ofereceram a Deus! que rigorosas abstinências praticaram! que zelo, que ardor em seu aproveitamento espiritual! que combates ríspidos para domar as próprias paixões! que intenção pura e reta sempre dirigida para Deus! De dia trabalhavam, e as noites passavam em oração; ainda durante o trabalho não interrompiam a oração mental.

Todo o tempo empregavam utilmente; pareciam-lhes curtas as horas para tratar com Deus; com a grande doçura da contemplação esqueciam até a necessária refeição do corpo. A todas as riquezas, dignidades, honras, amigos e parentes, renunciaram; do mundo nada queriam; apenas tomavam o necessário à vida; afligiam-se de servir ao corpo ainda nas coisas necessárias. Pobres eram em bens da terra; mas muito ricos de graças e de virtude. No exterior faltava-lhes tudo, mas internamente eram confortados pela graça e pelas consolações divinas.

Alheios ao mundo, eram íntimos e familiares amigos de Deus. Por nada se tinham e o mundo os desprezava, mas eram queridos de Deus e preciosos aos seus olhos. Viviam em humildade sincera, em obediência simples, em caridade e paciência; por isso, cresciam cada dia no espírito e alcançavam muita graça diante de Deus. São exemplo a todos os religiosos, e mais nos devem eles estimular ao progresso no bem que a multidão dos tíbios ao relaxamento.

Oh! como foi grande o fervor de todos os religiosos nos primeiros tempos de seus santos institutos! que piedade na oração! que emulação na virtude! que vigor na disciplina! como florescia em todos a submissão e obediência à regra do santo fundador! O que deles ainda nos fica bem atesta que foram na verdade santos e perfeitos aqueles varões que, pelejando com tanto denodo, calcaram aos pés o mundo. Hoje já se tem em muito o religioso que não transgride a sua regra e suporta com paciência o jugo que sobre si tomou.

Oh! por causa da tibieza e negligência em nosso estado, tão depressa arrefecemos do primeiro fervor; lânguidos, cansados, até o viver já nos enfada! Praza a Deus que, tendo contemplado tantos exemplos de varões piedosos, não deixes de todo adormecer em ti o zelo de adiantar na virtude.

A vida do bom religioso deve ser adornada de todas as virtudes afim de que tal seja no interior qual aparece exteriormente aos homens. E na verdade, muito mais perfeito deve ser por dentro do que se mostra por fora, porque Deus nos vê e onde quer que estejamos devemos prestar-lhe profunda reverência e andar na sua presença puros como anjos. Cumpre renovar o nosso propósito e excitar-nos ao fervor cada dia como se fora o primeiro da nossa conversão e dizer: "Ajudai-me, meu Deus e Senhor, nas minhas boas resoluções e no vosso santo serviço, dai-me que comece hoje deveras porque nada é o que até agora tenho feito."

A decisão do nosso propósito é a medida do nosso aproveitamento; e de muita diligência há mister quem deseja progredir no bem. Se o que propõe com firmeza muitas vezes fraqueja, que será do que propõe poucas, ou com menos energia? Contudo somos infiéis às nossas resoluções e a mais leve omissão nos nossos exercícios dificilmente deixa de causar-nos algum dano. Os justos nos seus propósitos contam mais com a graça de Deus que com a própria sabedoria; e em tudo quanto empreendem n'Ele põem sempre a sua confiança. Porque "o homem propõe e Deus dispõe; e não estão nas mãos do homem os seus caminhos" (Jerem. X,23).

O exercício habitual que se omite por motivo de piedade ou para o bem de nossos irmãos poderá depois facilmente ser reparado; mas o que se deixa levianamente por tédio ou negligência é culpa séria e de consequências funestas. Por mais que nos esforcemos, faltas leves havemos de cometer muitas. Ainda assim deve propor-se sempre alguma coisa determinada principalmente contra o que mais impede o nosso progresso espiritual. Importa examinar e ordenar tanto o nosso exterior quanto o interior porque um e outro contribuem para o nosso aproveitamento.

Se te não podes recolher continuamente, recolhe-te de quando em quando; ao menos uma vez ao dia, pela manhã ou à noite. Pela manhã toma as tuas resoluções; à noite, examina as tuas ações, como te houveste hoje em palavras, obras e pensamentos; porque pode ser que nisso muitas vezes tenhas ofendido a Deus e ao próximo. Arma-te com animo varonil contra as ciladas do demônio; refreia a gula e mais facilmente refrearás todas as inclinações da carne. Nunca estejas ocioso; 1ê ou escreve, reza, medita ou trabalha em alguma coisa útil aos outros. Os exercícios corporais, porém, convém fazer-se com discrição; nem a todos convêm na mesma medida.

O que sai das práticas comuns não deve ostentar-se publicamente; os exercícios particulares é mais seguro fazê-los em segredo. Guarda-te, porém, de ser negligente para os exercícios comuns e pronto para os singulares. Mas satisfeitos inteira e fielmente os deveres prescritos, se ainda sobrar tempo, recolhe-te em ti conforme te pede a tua devoção. Nem todos podem aplicar-se aos mesmos exercícios, uns convêm mais a este, outros, àquele. É bom também variá-los segundo os tempos; uns mais se apreciam nos dias de festa, outros, nos dias úteis. Destes necessitamos na hora da tentação, daqueles, no tempo de paz e de sossego. Certos pensamentos agradam-nos quando estamos tristes, outros, quando alegres no Senhor.

Nas festas principais cumpre renovar nossos exercícios de piedade e implorar com mais fervor a intercessão dos Santos. De uma solenidade para outra, façamos o propósito de viver, como se tivéramos então que deixar este mundo e entrar na festa da eternidade. Por isso devemos preparar-nos solicitamente nos tempos festivos, com uma vida mais fervorosa e uma observância mais severa das regras como se em breve houvéramos de receber de Deus o prêmio do nosso trabalho.

E se este momento for diferido, tenhamos por certo que ainda não estamos preparados nem somos dignos desta glória imensa que a seu tempo "se há de revelar em nós" (Rom. VIII, 18) e esforcemos por nos dispor melhor para a partida. "Bem-aventurado o servo", diz o evangelista São Lucas, "a quem o Senhor, quando vier, encontrar vigilante; em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus bens" (Lucas XII, 43-44).

Procura tempo oportuno para estar contigo e pensa amiúde nos benefícios de Deus. Deixa-te de curiosidades e entrega-te a leituras que antes excitem a compunção do que distraiam o espírito. Aparta-te das conversas supérfluas e dos passeios ociosos, fecha os ouvidos às novidades e às atoardas e acharás tempo suficiente e propício para te entregar às santas meditações. Os maiores santos evitavam, quanto podiam, a companhia dos homens e preferiam viver a sós com Deus.

Já disse um antigo (Sêneca, epíst. VII): "Quantas vezes estive entre homens, volvi menos homem." É o que experimentamos tantas vezes quando nos entretemos em largas conversas. Mais fácil é calar de todo do que se não exceder falando. Mais fácil é encerrar-se em casa que guardar-se como convém fora. Quem aspira à vida interior e espiritual deve, com Jesus, apartar-se das turbas. Só aparece em público com segurança quem gosta de viver oculto. Só fala com acerto quem cala de boa vontade. Só ocupa sem risco os primeiros lugares quem de bom brado se coloca nos últimos. Só não corre perigo em mandar quem se exercitou em obedecer.

Não há alegria segura sem o testemunho de uma boa consciência. A segurança dos santos, porém, é sempre cheia de temor de Deus; por mais que sobressaíssem em grandes virtudes e graças não deixaram por isso de ser menos vigilantes e humildes. A confiança dos maus, porém, nasce da soberba e presunção e por fim resolve-se em engano. Nunca te dês por seguro nesta vida, por mais que pareças bom religioso ou devoto ermitão.

Muitas vezes os melhores na estima dos homens incorreram nos mais graves perigos por confiarem demasiado em si mesmos. Por isso, para muitos é mais útil que lhes não faltem de todo tentações e que sejam combatidos, para que não presumam de si, nem se exaltem em soberba ou se entreguem com excesso às consolações exteriores. Oh! que pureza de consciência conservaria quem nunca buscasse alegrias passageiras, e nunca se ocupasse do mundo! Oh! quanta paz e sossego lograria quem cortasse pelos vãos cuidados para não se ocupar senão das coisas do céu e da sua salvação, colocando em Deus toda a sua esperança!

Só é digno das consolações celestes quem se exercitou com diligência na santa compunção. Se queres arrepender-te de coração recolhe-te em teu aposento e afasta-te do bulício do mundo, segundo está escrito: "compungi-vos em vosso cubículo" (Salmos IV,5). Nele encontrarás o que muitas vezes hás de perder fora. Continuamente habitada, a cela torna-se agradável; mal guardada, gera fastio. Se no princípio de tua conversão te acostumares a ela e a guardares bem, ser-te-á, depois amiga querida e gratíssima consolação.

No silêncio e no sossego aproveita a alma piedosa e penetra os segredos da Escritura. Aí é que encontra as fontes de lágrimas com que todas as noites se lava e purifica para unir-se tanto mais familiarmente a seu Criador quanto mais longe vive do tumulto do mundo. De quem se aparta de conhecidos e amigos, aproxima-se Deus com os seus santos anjos. Mais vale viver escondido e cuidar de sua alma, do que, descuidando-a, fazer milagres. É louvável no religioso sair pouco e não gostar de ver os homens ou ser deles visto.

Para que queres ver o que não te é permitido possuir? "Passa o mundo com a sua concupiscência!" (João II, 17). Os desejos dos sentidos arrastam-te aos divertimentos; mas, passada aquela hora, que te fica senão o remorso da consciência e a dissipação do coração? A uma saída alegre sucede muitas vezes uma volta triste; e a uma noite passada em prazeres, uma manhã de tristezas. Assim todo prazer dos sentidos insinua-se brandamente mas no fim resolve-se em sofrimentos e morte. Que podes ver em outro lugar que aqui não vejas? Aqui tens o céu, a terra e todos os elementos; deles foram feitas todas as coisas.

Onde poderás ver o que seja estável debaixo do sol? Pensas talvez satisfazer-te plenamente mas não o conseguirás. Se viras diante de ti todas as coisas que seria senão uma vã miragem? Levanta teus olhos a Deus nas alturas e ora pelos teus pecados e negligências. Deixa as vaidades aos vãos; e tu, aplica-te ao que Deus ordena. Encerra-te em teu aposento e chama por Jesus, o Amigo dileto. Permanece com Ele em tua cela; em nenhum outro lugar encontrarás tanta paz. Se não saíras nem ouviras novidades, melhor te conservaras em paz. Mas porque de quando em quando gostas de ouvir novas terás depois que sofrer tribulações do coração.

Tomás de Kempis, trechos do livro "Imitação de Cristo" http://www.monergismo.com
(Terceira Parte)

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