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sábado, 23 de fevereiro de 2019

A VIDA, NA REALIDADE, 
É UMA QUESTÃO MUITO SIMPLES
 
 
Última Parte
 
ALUNO: Por favor comente um pouco mais sobre estarmos separados da vida.
 
JOKO: Bem, no momento em que há um desacordo entre nós e alguém -e em que pensamos que nós é quem estamos com a razão -já nos separamos. Estamos do lado de cá e a praga daquela pessoa está do lado de lá, “errada”. Ao pensarmos dessa forma, não temos interesse algum pelo bem-estar daquele indivíduo. Estamos interessados apenas em nosso bem-estar. Assim, a unidade sem fronteiras foi rompida. Para a maioria, são necessários muitos anos de uma prática constante, até que possa abandonar essa forma de pensamento.
 
ALUNO: Vejo que os aborrecimentos estão ligados a eu não querer enxergar o que está acontecendo. Mas creio que eu ainda não tenho clareza de porque o aborrecimento é separar-se da vida.
 
JOKO: Não é separação se for vivenciado de modo não verbal. Mas, na maior parte do tempo recusamo-nos afazer isso. O que preferimos fazer? Preferimos pensar a respeito de nossa infelicidade. “Por que ele não vê as coisas do meu jeito? Por que é tão estúpido?” Esses pensamentos são o fator de separação.
 
ALUNO: Pensamentos? Não a evitação?
 
JOKO: Os pensamentos são a evitação. Não estaríamos pensando se não estivéssemos tentando evitar a experiência do medo.
 
ALUNO: Você quer dizer que os pensamentos causam a separação?
 
JOKO: Não se estivermos plenamente conscientes dos pensamentos e soubermos que são apenas pensamentos. É quando acreditamos neles que ocorre a separação. “Um décimo de polegada de diferença e já céu e terra se distanciaram.” Não há nada de errado com os pensamentos em si, exceto quando deixamos de enxergar sua irrealidade.
 
ALUNO: É possível reagirmos sem que haja quaisquer pensamentos?
 
JOKO: Quando reagimos, os pensamentos estão acontecendo. Pode ser que não se tornem óbvios para nós, mas estão lá. Por exemplo, se você me insulta, eu não reajo, a menos que tenha pensamentos sobre o insulto. Porém, quando começamos a julgar as pessoas certas ou erradas, separamo-nos. Certo e errado são apenas pensamentos, não são a verdade.
 
ALUNO: O que você está descrevendo parece uma coisa muito passiva, um capacho. Você poderia esclarecer isso?
 
JOKO: Não se trata absolutamente de ser passivo. Não podemos abordar de uma maneira inteligente as questões da vida se estivermos paralisados em nossos pensamentos sobre tais questões. Precisamos ter uma visão que seja mais ampla. A prática zen é sobre ação, mas não nos é possível uma ação adequada se acreditarmos em nossos pensamentos sobre uma situação. Precisamos enxergar de modo direto o que ela é; que é diferente de nossos pensamentos a respeito dela. Podemos ter uma ação inteligente sem de fato ver, não aquilo que desejamos ver, ou aquilo que nos seria conveniente e confortável, mas apenas o que existe? Não, definitivamente não estou falando de passividade ou de não reagir .
 
ALUNO: Quando vejo pessoas centradas no que está acontecendo constato que agem muito mais depressa e melhor que eu. No filme sobre Madre Teresa observei que ela se dirigia diretamente para a área do desastre e começava a trabalhar .
 
JOKO: Apenas fazer. Só fazer. Ela não parava para ponderar: “Devo fazer isso?”. Ela enxergava o que precisava ser feito e fazia.
 
ALUNO: Parece uma enormidade esperarmos ter condições de apenas ficar sobre o fio da lâmina, porque nossas recordações do que aconteceu em nossas vidas antes entram em cena a todo instante.
 
JOKO: As recordações são pensamentos, quase sempre seletivos e enviesados. Podemos esquecer por completo as belas coisas que nossos amigos já nos fizeram, se apenas acontecer um incidente que consideremos ameaçador. A prática espera muito de nós. Mas estamos vivendo apenas este momento. Não temos de viver cento e cinquenta mil momentos de uma só vez. Estamos vivendo apenas um. É por isso que eu digo: “O que mais você tem a fazer? Você pode tanto praticar cada momento como não”.
 
ALUNO: Bem, parece-me que o fio da lâmina é um lugar meio chato de se ficar. Geralmente prestamos atenção, quando uma incrível explosão emocional nos atinge, mas quando lavamos a louça, não há muito a dizer. É só…
 
JOKO: Certo. Se pudéssemos apenas fazer o que há para ser feito a cada instante, não haveria problemas. Estaríamos em cima do fio lâmina. Mas quando ficamos aborrecidos, a lâmina e seu fio nos parecem estranhos porque vivenciar o aborrecimento é vivenciar sensações corporais desagradáveis. Uma vez que são desagradáveis, não podemos ver que o aborrecimento é basicamente a mesma coisa que lavar a louça. Ambos são a simplicidade máxima.
 
ALUNO: Se desistirmos de nossa crença em nossos pensamentos, o que parece assustador, como saberíamos o que fazer então?
 
JOKO: Sempre sabemos o que fazer quando estamos sintonizados com a vida tal como ela está.
 
ALUNO: Para mim, o fio da lâmina é a experiência do que é o momento. Conforme vou praticando, descubro cada vez mais como as coisas mais simples da vida não me são tão chatas quanto antes. Às vezes existe uma grande profundidade e beleza no que antes eu não tinha percebido.
 
JOKO: É isso mesmo. De vez em quando vem um aluno conversar comigo; a pessoa se senta bem, mas se queixa: “É tão chato! Estou só ficando sentada e não acontece mais nada. Só fico ouvindo os carros que passam…”. Mas ficar só ouvindo o tráfego é a perfeição! A aluna está perguntando: “Então é só isso?”. Sim, é só isso. Ninguém deseja que a vida seja “só isso”, porque então ela não estará centrada em nós. É só isso mesmo: não há drama e nós gostamos de dramas, preferimos perder a ficar sem um dramazinho do qual somos o protagonista. Suzuki Roshi afirmou certa vez: “Não tenha tanta certeza de sua pretensão a ser iluminado. Do ponto de vista atual, seria terrivelmente monótono”. Fazer só o que se está fazendo. Sem dramas.
 
ALUNO: Acompanhar a respiração é estar no fio da lâmina?
 
JOKO: De fato é. Talvez eu preferisse dizer “vivenciar o corpo e a respiração”. Quero acrescentar que, ao acompanharmos a respiração, é melhor não tentar controlá-la (o controle é uma coisa dualista: eu controlo alguma coisa separada de mim), e sim apenas vivenciar a respiração que estiver acontecendo: presa, rápida, alta; esteja como estiver, experimente-a tal como está. Quando a experiência se mantém firme, a respiração aos poucos fica mais lenta, longa e profunda. Se a ligação com os pensamentos estiver bastante enfraquecida, o corpo e a respiração terminarão por se descontrair, e a respiração ficará mais suave.
 
ALUNO: Por que o aborrecimento fica maior quando diz respeito a alguém que me é querido.
 
JOKO: Porque é mais ameaçador. Se alguém que está me vendendo um par de sapatos, diz: “Vou deixá-la”, não dou importância, por mim está bem. Outra pessoa virá para me vender o sapato. Mas se meu marido diz: “Vou deixá-la”. A coisa muda inteiramente de figura.
 
ALUNO: Essa é uma ameaça imediata ou vem de um depósito de material psicológico não-resolvido?
 
JOKO: É certo que existe um reservatório, mas ele está contido em nós na forma de contrações corporais que existem a cada instante. Quando vivenciamos a contração, a tensão, acessamos o passado inteiro. Onde está nosso passado? Bem aqui. Não há passado, exceto neste exato instante. O passado é quem somos neste momento presente. Por isso, ao vivenciarmos essa situação cuidamos do passado. Não temos de saber tudo a respeito dele. Todavia, de que maneira o fio da lâmina se relaciona com a iluminação? Alguém quer comentar?
 
ALUNO: É a iluminação.
 
JOKO: Sim. É isso mesmo. E ninguém consegue ficar ali o tempo todo; nossas habilidades para tanto, porém, aumentam de forma considerável com o passar do tempo e da prática. Contudo, se isso não acontece, não praticamos de verdade.
 
Vamos encerrar. Mas, por favor, mantenham sua conscientização o máximo que puderem, a cada momento da vida. E guardem consigo esta indagação: neste preciso momento, estou andando no fio da lâmina?
 
 
Joko Beck em Sempre Zen
https://tudopositivo.wordpress.com
  

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