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sábado, 23 de fevereiro de 2019

A VIDA, NA REALIDADE, 
É UMA QUESTÃO MUITO SIMPLES


Primeira Parte

"Não tenha tanta certeza de sua pretensão 
a ser iluminado. Do ponto de vista atual
seria terrivelmente monótono".
(Suzuki Roshi)


Todos nós, seres humanos, acreditamos que existe algo a ser realizado, a ser entendido, algum lugar aonde ir. Essa ilusão mesma, nascida do fato de possuirmos uma mente humana, é o problema. A vida, na realidade, é uma questão muito simples.

A qualquer momento determinado do tempo estamos ouvindo, vendo, cheirando, tocando, pensando. Em outros termos, há um input sensorial; interpretamo-lo e tudo mais aparece.

Ao estarmos mergulhados na vida há simplesmente o ver, o ouvir, o cheirar, o tocar, o pensar (e não estou me referindo a pensamentos centrados na própria pessoa). Quando vivemos dessa maneira, não existem problemas. Nem poderiam existir. Somos apenas isso. Há vida e estamos mergulhados nela. Não estamos separados dela. Somos apenas o que a vida é, porque estamos sendo o que ela é.

Ouvimos, pensamos, vemos, cheiramos, e assim por diante. Estamos mergulhados na vida e não existem problemas. A vida flui adiante. Não há o que perceber porque, quando somos a própria vida, não temos indagações a respeito. No entanto, não é assim que nossas vidas são e, por isso, temos tantas perguntas.

Quando não estamos vivendo nossos equívocos pessoais, a vida é uma totalidade sem fronteiras, na qual estamos tão imersos que não existem problemas. Mas nem sempre nos sentimos imersos porque, embora a vida seja apenas vida, quando parece ameaçar nossas colocações pessoais, ficamos aborrecidos e recuamos. Por exemplo, quando acontece algo de que não gostamos, ou quando alguém nos faz alguma coisa de que não gostamos, ou nosso parceiro não age como gostaríamos, enfim, existem milhões de detalhes que podem aborrecer um ser humano. Baseiam-se no fato de que, repentinamente, a vida não é mais só a vida (ver, ouvir, tocar, cheirar, pensar).

Separamo-nos e rompemos a totalidade sem fronteiras porque nos sentimos ameaçados. Agora a vida está do lado de lá e eu estou aqui, pensando sobre ela. Não estou imersa em nada mais. O acontecimento doloroso ocorreu do lado de lá e quero pensar a respeito dele do lado de cá, para conseguir criar uma forma de escapar ao sofrimento que estou sentindo. Por isso, agora, dividimos a vida em dois setores: o lado de cá e o lado de lá. Na Bíblia é chamado “ser expulso do Jardim do Éden”. O Jardim do Éden é uma vida de simplicidade intacta. Todos nós deparamos com ela de vez em quando. Às vezes, depois de um sesshin, essa simplicidade é muito óbvia e, por um certo tempo, sabemos que a vida não é problema.

Mas, na maior parte do tempo, temos a ilusão de que a vida do lado de lá está nos oferecendo um problema do lado de cá. A unidade sem fronteiras é rompida (ou assim parece). Temos então uma vida atribulada com questões: “Quem sou eu? O que é a vida? Como arranjar isto para que eu consiga me sentir melhor?”. Parece que estamos rodeados por pessoas e acontecimentos que precisamos controlar e acertar, por nos sentirmos à parte. Quando começamos a analisar a vida, a pensar nela, a nos preocupar e nos atormentar com ela, tentando uma união, arranjamos todas as modalidades de soluções artificiais,quando o cerne da questão é que, desde o mais remoto princípio, não há nada que necessite ser resolvido. Porém, não podemos enxergar essa unidade perfeita porque nossa distância a oculta de nós. Nossa vida é perfeita? Ninguém acredita nisso!

Assim, existe a vida na qual estamos verdadeiramente imersos (uma vez que tudo que somos é pensar, ver, ouvir, cheirar, tocar) e à qual acrescentamos pensamentos referentes a nós, do tipo “mas isso não me convém”. Aí não podemos mais ter a consciência de nossa unidade com a vida. Acrescentamos algo (nossa reação pessoal) e, ao fazê-lo, começam a ansiedade e a tensão. Fazemos esses acréscimos na média de um a cada cinco minutos. Esse quadro não é lá muito animador …

Contudo, o que pretendo dizer com o fio da lâmina? O que fazer para unir essas divisões aparentemente distintas da vida é o que eu chamo de caminhar pelo fio da lâmina. Aí elas se reúnem. Mas o que é o fio da lâmina?

A prática refere-se a entender o fio da lâmina e a saber como trabalhar com ele. Temos sempre a ilusão de estarmos separados, ilusão que nós mesmos criamos. Quando estamos ameaçados ou quando a vida não nos convém, começamos a nos preocupar, a pensar sobre uma possível solução. Sem exceção, não há quem não faça o mesmo. Não gostamos de estar com a vida como ela é, porque pode incluir sofrimento, o que para nós é inaceitável. Seja uma enfermidade grave, ou uma crítica sem importância, seja sentir-se só ou desapontado, isso é inaceitável para nós. Não temos qualquer intenção de aceitar esse estado de coisas ou de apenas sê-lo, se houver algo que possamos fazer a respeito. Queremos consertar o problema, resolvê-lo, livrarmo-nos dele. É nesse instante que precisamos entender a prática de caminhar sobre o fio da lâmina. Precisamos compreendê-lo no ponto em que, toda vez, começamos a nos sentir transtornados (ou com raiva, irritados, magoados, enciumados).

Primeiro precisamos perceber que estamos aborrecidos. Muitas pessoas sequer percebem que é isso que está acontecendo. Assim, o primeiro passo é tomar consciência de que existe a sensação de aborrecimento. Quando fazemos o zazen e começamos a conhecer nossa mente e reações, começamos também a ficar cientes de que, na verdade, estamos muito aborrecidos.

Esse é o primeiro passo, contudo não é o fio da lâmina, ainda, pois estamos separados, mas agora sabemos disso. Como integrar esses aspectos separados de nossas vidas? Fazê-lo é andar sobre o fio da lâmina. Mais uma vez, precisamos ser o que basicamente nós somos, ou seja, ver, tocar, ouvir, cheirar; temos de experimentar tudo que nossa vida é, justo neste segundo. Se estamos aborrecidos, temos de vivenciar nosso aborrecimento. Se estamos com medo, temos de vivenciar o estar com medo. Se estamos com ciúme, temos de vivenciá-lo. Esse vivenciar é físico; não tem nada que ver com os pensamentos que giram na cabeça a respeito de estarmos aborrecidos.

Quando estamos numa experiência não-verbal, estamos andando no fio da lâmina: somos o momento presente. Ao andarmos pelo fio da lâmina, os estados agonizantes da separação são integrados e vivenciamos, talvez, não a felicidade, porém com certeza a alegria. Compreender o fio da lâmina (e não só compreendê-lo, fazê-lo, também) é o que constitui a prática zen. A razão, pela qual é difícil, é que não queremos fazê-lo. Sabemos que não o queremos. Desejamos fugir disso. Se eu sentir que você me magoou, quero ficar mergulhado em meus pensamentos a respeito dessa mágoa. Quero aumentar minha separação, sinto-me, ao permitir-me consumir por esses pensamentos de fogo, todos cheios de razões. Quando estou pensando, estou tentando evitar a dor. Quanto mais sofisticada se torna a minha prática, mais rápido eu vejo essa armadilha e retorno à experiência da dor, ao fio da lâmina. Se antes eu ficasse aborrecida por dois anos talvez, agora o aborrecimento diminui para dois meses, duas semanas, dois minutos. Por fim, consigo vivenciar o aborrecimento quando ele acontece, e permanecer o tempo que ele durar em equilíbrio sobre o fio da lâmina.

Na realidade, a vida iluminada é apenas ser capaz de andar sobre o fio da lâmina todo o tempo. Embora eu não conheça ninguém que sempre o consiga fazer, com certeza, após anos de prática, poderemos fazê-lo por boa parte do tempo. É uma alegria andar pelo fio da lâmina.

Quero repetir mais uma vez: é necessário reconhecer que a maior parte do tempo não queremos ter nada que ver com esse fio.

Queremos nos manter separados. Queremos a estéril satisfação de nos lamuriar, afirmando “Eu tenho razão”. Claro que essa é uma satisfação medíocre, mas, apesar disso, ficaremos nos contentando com uma vida diminuta, em vez de a experimentarmos tal como ela nos acontece quando parece dolorosa e desagradável.

Todos os relacionamentos problemáticos em casa e no trabalho nascem do desejo de permanecermos separados. Utilizando essa estratégia, esperamos ser pessoas separadas que realmente existem e são importantes. Quando andamos no fio da lâmina, não somos importantes; somos o não-eu, mergulhados na vida. É isto que tememos, mesmo que a vida como não-eu seja pura alegria. Nosso medo impele-nos a permanecer do lado de cá, em nossas justificadíssimas razões, em nosso isolamento. Eis o paradoxo: apenas caminhando pelo fio da lâmina, vivenciando diretamente o medo, é que poderemos saber o que é não ter medo.

Percebo, no entanto, que não podemos ver isto de imediato, ou fazê-lo de uma só vez. Às vezes saltamos para o fio da lâmina e depois caímos de lá outra vez, como água que pinga numa frigideira com óleo quente: pode ser isso o máximo que consigamos a princípio, e está certo. Quanto mais praticarmos, porém, mais confortáveis ficaremos ali. Descobrimos que ele é o único lugar em que ficamos em paz. Por isso muitas pessoas chegam num Centro e dizem: “Quero ficar em paz”.

Pode, no entanto, estar havendo pouca compreensão de como a paz será encontrada.Andar pelo fio da lâmina é isso. Ninguém quer saber dessa realidade, porém. Queremos alguém que nos tire o medo de nossas vidas e nos prometa a felicidade.Ninguém quer ouvir a verdade e não a ouviremos, enquanto não estivermos prontos para ela.

Sobre o fio da lâmina, mergulhados na vida, não há “eu” e não há “você”. Essa espécie de prática beneficia a todos os seres conscientes e, claro, é disso que trata a prática zen…minha vida, sua vida, crescendo em sabedoria e compaixão.

Por essa razão, quero estimulá-los a entender isso, apesar da dificuldade que eventualmente represente. Primeiro precisamos compreender com o intelecto: devemos saber do ponto de vista intelectual o que é a prática. Depois, através dela, precisamos desenvolver a aguda percepção consciente de quando estamos nos separando de nossa vida. Esse conhecimento cresce a partir de um zazen praticado todos os dias a partir de muitos sesshins, e do esforço para permanecer desperto em todos os encontros, desde a manhã até a noite. Diante do fato de nossa quase nula disposição para saber do fio da lâmina, a sabedoria não nos será apresentada de bandeja. Temos de alcançá-la. Mas, se formos pacientes, nossa visão irá se tornando cada vez mais nítida, e terminaremos enxergando a jóia dessa vida que começa a brilhar. É claro que a jóia sempre está brilhando, porém é invisível àqueles que não sabem ver. Para ver, devemos andar pelo fio da lâmina. Protestamos: “Não! De jeito nenhum! Esqueça! Esse é um belo título para algum livro, mas não quero saber disso em minha vida”. Verdade? Acho que não. No fundo, queremos paz e alegria.


Joko Beck em Sempre Zen
https://tudopositivo.wordpress.com
 

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