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terça-feira, 31 de maio de 2016

PARA AGIR COM SABEDORIA


 Parte I

Visão Altruísta do Mundo Abre as
Portas Para o Bom Senso e a Felicidade


Sempre desejamos agir corretamente. Não há quem não queira fazer as coisas da maneira certa. Mas a vida humana é uma constante lição de humildade: basta observar calma e objetivamente os resultados das nossas ações para perceber a quantidade de erros que cometemos.

Às vezes somos impacientes, em outras ocasiões somos preguiçosos. Frequentemente tiramos conclusões apressadas, fazemos injustiças, pensamos bem de gente que não merece para em seguida criticar inocentes. Erramos na vida profissional e na vida familiar. Cometemos equívocos com nós mesmos, e jogamos fora boa parte da nossa energia vital com coisas que não valem a pena.

Por causa disso pode haver uma bênção enorme no simples fato de sentar-se por alguns minutos, abandonar a agitação física e mental, e meditar sobre a antiga arte secreta de agir corretamente. Será possível para nós, portugueses e brasileiros do século 21, errar cada dia um pouco menos? Haverá um modo de viver em que não causemos sofrimento a nós e aos outros? Poderemos abandonar o hábito de criticar a tudo e a todos, optando por uma vida mais construtiva, na qual promovamos ativamente o bem?

É claro que o pior erro que se pode cometer é não fazer nada. Quando tentamos realizar algo, é possível corrigir os erros. Mas quando nada fazemos estamos apenas jogando tempo fora. Eliphas Levi escreveu em um dos seus livros: “Nada fazer é tão funesto como fazer o mal, porém é mais covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.” [1]

Sem dúvida. De outro ponto de vista, porém, também é verdade que não há e não pode haver vida humana sem ação. Ler, respirar, permanecer imóvel e conversar são ações tão práticas quanto andar de bicicleta ou plantar verduras em uma horta. Cada ser do universo, pequeno ou grande, tem seu dever, seu potencial, suas várias formas de ação. O desafio não é agir, portanto. É ter consciência e assumir a responsabilidade pelo que se faz.

Segundo o escritor Eliphas Levi, “a vida humana com suas inúmeras dificuldades tem por fim, na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem”. E o grande cabalista francês do século 19 acrescenta:

“A dignidade do homem consiste em fazer o que quer, e em querer o bem, de conformidade com a ciência da verdade. O bem, conforme a verdade, é o justo. A justiça é a prática da razão. A razão é a expressão da realidade.”

Para Eliphas, a ação correta depende de uma vontade firme que busca o que é bom e justo. “Nada resiste à vontade do homem, quando sabe a verdade e quer o bem”, ensina ele. Ao mesmo tempo, a moderação é indispensável e a impaciência pode impossibilitar a vitória: “Querer o bem com violência é querer o mal; porque a violência produz a desordem e a desordem produz o mal.” Ao invés da pressa, a arma do sábio é a paciência. “Para se ter direito de possuir sempre, é preciso querer pacientemente e por muito tempo.” [2]

Assim, entre as grandes fontes dos erros que cometemos ao longo da vida estão duas características opostas: a preguiça, que provoca o imobilismo, e a pressa, que produz impaciência. Huitang, um mestre da tradição zen budista, faz cinco constatações úteis para aqueles que preferem viver em paz:

“1) Aquilo que tem sido negligenciado desde há muito não pode ser recuperado de imediato.

2) Males que têm se acumulado por longo tempo não podem ser extirpados de imediato.

3) Não se pode estar satisfeito o tempo todo.

4) As emoções humanas não podem ser sempre as corretas.

5) As adversidades não podem ser evitadas pela tentativa de fugir delas.

Qualquer um que trabalhe como instrutor e que tenha percebido esses cinco fatos poderá estar no mundo sem estar aflito.” [3]

O primeiro passo, pois, para quem pretende agir corretamente, é reconciliar-se com o ritmo natural do universo e com a realidade tal como ela é. O segundo passo é agir com calma e inteligência para fazer o melhor possível a partir daquilo que o mundo lhe oferece.

Ter uma boa intenção é fundamental. Mas a verdadeira intenção se conhece pelos fatos e não pelas palavras. O critério da verdade é a prática. A árvore se conhece pelos frutos. Por isso, examinar serenamente as nossas próprias ações é a melhor maneira de perceber quanto de sabedoria e de ignorância existe em nós.

A caminhada espiritual pode começar com leituras, práticas meditativas e reflexões. Mas o buscador deve estar alerta para os perigos do isolamento e do orgulho. Será melhor que as ações práticas altruístas estejam presentes desde o primeiro momento na caminhada espiritual, ao lado da leitura e da meditação. O conhecimento das coisas espirituais, quando não é aplicado ao bem dos outros, fica preso pelos muros altos do egoísmo. A verdadeira sabedoria não se fecha em si mesma e é inseparável da boa vontade para com os outros. O pensador C. Jinarajadasa escreveu:

“As verdades da vida espiritual têm que se transformar. As verdades em que acreditamos devem ser transformadas por nós em verdades que conhecemos em nossas próprias consciências internas. Só há um meio pelo qual as verdades adormecidas em nossa natureza humana chegam a ser realidades para a consciência desperta: esse meio consiste em aplicá-las para servir os outros. Meditar sobre as verdades é apenas um processo preliminar, muito parecido com a aprendizagem das letras do alfabeto. Do mesmo modo que a etapa seguinte é unir as letras para formar palavras, também a etapa imediata, depois da meditação, consiste em tornar mais real para a consciência desperta o poder que existe na verdade e que a meditação revelou. Isso ocorre apenas quando nos dedicamos a servir nossos semelhantes. O serviço altruísta, então, não é apenas um modo de ajudar o outro, mas também é essencialmente uma maneira de guiar a nós próprios.” [4]

Essa é a essência do que os orientais chamam de Carma Ioga. Agir corretamente, para a ioga da ação desinteressada, é fazer a coisa certa sem esperar recompensa. É plantar e não pensar na colheita. É contentar-se com a alegria de quem sabe que cumpriu seu dever e está feliz com sua consciência. Nem sempre é fácil colocar essa ideia em prática. Os desafios são variados.

Existe, por exemplo, uma diferença sutil, mas enorme e decisiva entre buscar a felicidade dos outros por uma decisão autônoma, autêntica e soberana, e tratar de agradá-los e obedecê-los violentando e falsificando nossos próprios sentimentos.

Desde a infância, somos ensinados a fazer o que os outros mandam e a não escutar nossa consciência. Deixamos a autenticidade de lado para não contrariar a quem nos dá ordens. Somos vítimas de chantagens emocionais diversas e os mais velhos ou mais poderosos impõem o modo como devemos pensar, sentir e agir. A obediência cega nos é apresentada como altruísmo e bondade, quando é apenas submissão servil, movida quase sempre por alguma forma de medo. É dessa maneira que muitos de nós aprendem a reprimir ou esconder seus pensamentos e sentimentos como o único meio possível de obter a aprovação da família e da sociedade, ou simplesmente de fugir ao castigo que aguarda aquele que pensa por si mesmo. Esse é o amplo caminho falso que leva aos desastres do conflito, da depressão e da hipocrisia. É assim que se provoca a decadência de toda uma sociedade. O filósofo clássico Epicteto ensinou:

“Ao tentar agradar outras pessoas, corremos o risco de nos desviarmos para o que está fora da nossa esfera de influência. Agindo assim, perdemos o domínio sobre o propósito da nossa vida. Contente-se em ser alguém que ama a sabedoria, que busca a verdade. Volte quantas vezes for necessário para o que é essencial e valioso. Não tente parecer sábio aos olhos dos outros. Se quer viver uma vida de sabedoria, viva de acordo com suas próprias condições e procure ser sábio a seus próprios olhos.” [5]

A ação altruísta mencionada por C. Jinarajadasa não significa, portanto, que devemos abandonar nossa autonomia, suprimir nossa vontade, deixar de lado nossos sentimentos ou optar pela obediência automática. A ação correta significa fazer o melhor possível de acordo com o nosso próprio critério, e obedecer apenas à voz da nossa consciência e do nosso coração. Fazer o bem deve ser uma decisão independente, livre de todas as formas de coação. A ação eficaz também necessita do desenvolvimento da atenção. Para Epicteto, “o mal não é um elemento natural no mundo, nos acontecimentos ou nas pessoas. O mal é um subproduto da negligência, da preguiça, da distração: surge quando perdemos de vista nossa verdadeira meta na vida. Quando lembramos que nossa meta é o progresso espiritual, voltamos a nos empenhar por nosso aprimoramento pessoal e mantemos o mal à distância. E é assim que se conquista a  felicidade.”[6]


Carlos Cardoso Aveline



NOTAS:
[1] “A Chave dos Grandes Mistérios”, Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP, p. 213.
[2] “A Chave dos Grandes Mistérios”, Eliphas Levi, obra citada, pp. 209-212.
[3] “A Arte da Liderança, Ensinamentos Zen”, Thomas Cleary, Editora Siciliano, SP, p. 49.
[4] C. Jinarajadasa, em mensagem publicada na revista El Teósofo, Córdoba, Argentina, na edição de fevereiro-março de 1950.
[5] “A Arte de Viver”, Epicteto, versão de Sharon Lebell, Ed. Sextante, RJ, p. 57.
[6] “A Arte de Viver”, Epicteto, obra citada, p. 63.

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