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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - VIII


Livre do tempo, o que resta é o presente imediato, a vida no agora. Daí nasce o estado de atenção, que nos leva para além dos limites do pensamento e do sentimento. E a vida está sempre no presente, no agora. Isso, sim, é que é imortalidade, não a vida dentro dos limites da consciência. Quando o tempo deixa de existir, desaparecem os sofrimentos e os conflitos produzidos pelo processo de pensar e de sentir.

O cérebro só funciona no tempo e no espaço; toda filosofia é limitada por esse condicionamento e as teorias e especulações são produzidas por sua astúcia. Ainda que vá à Lua, explore o universo ou as profundezas da terra, projete máquinas maravilhosas, o cérebro não tem como libertar-se da mediocridade. É inútil qualquer tentativa de fuga dessa mediocridade, pois que é fuga de si mesmo. Só lhe resta permanecer completamente imóvel, o que não deve ser confundido com inércia ou indolência. Essa imobilidade é a única maneira de preservar sua sensibilidade. Na renúncia de si mesmo e na rejeição de suas atividades, cessam suas habituais reações defensivas, bem como o vício de julgar, condenar ou justificar. Pela compreensão de seus mecanismos, o cérebro revela o que é: só um instrumento mecânico, calculista, inventivo, funcional, repetitivo e imitador, embora de perfeição assombrosa. É incapaz de qualquer ação ou reação ao tentar penetrar no mistério do desconhecido. O conhecido é o seu elemento. O cérebro jamais conhecerá a beleza da criação, pois a imensidão do indescritível somente se revela quando o cérebro está totalmente imóvel, sem pensamentos e vazio, ‘morto’.

Sabemos sobre a atmosfera de Vênus, como montar computadores, mas nada sabemos sobre nós mesmos. E ninguém pode nos ajudar nisso. A energia necessária para a viagem ao nosso interior, só a teremos se abandonarmos a crença de que a conseguiremos por meio de drogas, relação humana, renúncia, sacrifícios, disciplinas, rituais, santos, deuses, preces, promessas, gurus. É exatamente se abandonarmos tudo isso, se compreendermos o mecanismo da fuga e do desejo, que aquela energia penetra e vai além do consciente (como diz Benoit, estaremos salvos quando abandonarmos todos os caminhos e todas as tentativas de nos salvarmos).

É impossível adquirir essa energia acumulando conhecimentos a nosso respeito, pois toda forma de acúmulo e apego a enfraquece e desvirtua. Com o tempo, os conhecimentos tornam-se um fardo, limitando-nos e nos aprisionando ao condicionamento; e, assim, deixamos de ser livres para investigar. O aprender está no presente imediato; o saber, sempre no passado. O desejo de acumular conhecimento impede o ato de aprender. O conhecimento é estático, podendo só ser reduzido ou ampliado, enquanto o aprender é dinâmico, não necessitando do processo de acumulação. O saber é transitório; o aprender é infinito.

Todos nós somos o resultado final de centenas de séculos de existência da humanidade, de suas esperanças, desejos, culpas e ansiedades, crenças e deuses, preenchimentos e frustrações. Somos o acúmulo de tudo isso até os dias de hoje. Aprender é vivenciar todos esses fatos, numa experiência direta e sentida, no contato vivo, intenso, não teórico ou verbal. No aprender não há aquele que aprende, pois esse só sabe acumular conhecimentos. Da divisão ou separação entre aquele que aprende e o objeto de seu aprendizado nasce o conflito, que dissipa a energia necessária ao aprender de verdade. Escolha é conflito e impede a percepção direta da verdade. O processo de aprender é interminável. Esse é o fator primordial da existência, e não os fracassos, os êxitos ou erros cometidos. Na percepção desse fato, livre de conclusões ou teorias, dá-se o aprender de momento a momento.

O fundamental é o ato de ver e não aquele que vê, ou a coisa que é vista. A consciência é limitada pelas muralhas feitas pela experiência, pela memória, conhecimento, condicionamento e cultura social. Só destruímos essas muralhas se aprendermos sobre esse condicionamento, fato que coloca o pensamento e o sentimento nas suas funções específicas e limitadas. Morto o ‘eu’, com seus desejos e exigências, alegrias e tristezas, tem então início o deslumbrante e eterno movimento da vida.

Somente na humildade floresce a virtude. Mas, não a virtude da moralidade que é mero ajustamento ao variável padrão de conduta social. A moral vigente, aceita pela sociedade e pela igreja, que apregoam o seu modelo, nega a virtude; é só observar com isenção para ver que isso é verdade. Ligada ao desejo de recompensa ou medo de punição, ou ao conformismo, essa moral é ensinada e praticada, modelando a sociedade, pela influência e propaganda, responsáveis por inúmeros padrões de conduta. Mas, a virtude não é produto do tempo ou de circunstâncias; não pode ser cultivada e não admite controle ou disciplina. E´espontânea e gratuita, e é impossível dar-lhe a marca da respeitabilidade, ou dividi-la em amor fraternal, caridade, bondade etc. A virtude não é produto do ambiente ou da cultura, nem da emoção, do sentimento ou do esforço; nem da revolta contra a moral social porque, assim, será reação do pensamento e mera continuidade modificada do que foi.

Se cultivada, a humildade torna-se orgulho disfarçado, na ânsia de vir a ser respeitável. Do mesmo modo que é impossível ao ódio se transformar em amor, é impossível à arrogância se transformar em humildade. Pelo ideal da não-violência não se elimina a violência; esta simplesmente tem de findar. A humildade não é um ideal a ser alcançado, pois todos os ideais são falsos, sendo o fato a única verdade. A humildade não é o oposto do orgulho; simplesmente, ela não tem oposto. Todos os opostos se relacionam, mas nada há em comum entre humildade e orgulho. Este cessa, não pela vontade, ou por disciplina ou desejo de lucro, mas na chama da atenção, livre da contradição e da desordem causadas pela concentração. Cessa o orgulho ao compreendermos sua atividade toda, observando passivamente seus mínimos movimentos. Essa compreensão é do presente e não pode ser exercitada, pois nesse caso seria esperteza do pensamento, que é incapaz de produzir humildade. A atenção surge do silêncio e produz sensibilidade e imobilidade do cérebro. O centro (o ego), que se torna mais vivo e forte com a concentração e sua atividade exclusivista, enfraquece e morre com a atenção. Do estado de atenção nascem a humildade e as virtudes que, por sua vez, produzem amor e bondade.

Como é estranho o desejo de ter poder, mundano ou espiritual, o poder do dinheiro, do prestígio, da competência, do conhecimento, do cargo. Entretanto, quando alcançado, o poder sempre traz conflito, confusão e sofrimento.Todos querem o poder e, para alcançá-lo, muitos não hesitam em matar ou destruir-se uns aos outros. Os que buscam ou detêm o poder da autoridade são por ele corrompidos. Assim, o poder exercido pelo sacerdote, pela dona de casa, pelo santo, pelo político, pelo administrador, pelo líder, é nocivo e prejudicial; apesar disso, ninguém tem coragem de abandoná-lo.

Junto com o poder vêm a ambição, com o desejo de fama e de mais poder, a crueldade, coisas que destroem o amor. O desejo de poder, exaltado pela sociedade e até pela igreja, desvirtua o amor, estimula a inveja e a competição, dando origem ao medo, ao conflito e ao sofrimento, mas ninguém se atreve a questionar esses valores. A recusa a qualquer forma de poder é o princípio da lucidez e da virtude, que eliminam todo conflito e dor. Eliminado o desejo de poder, cessam a confusão, o conflito e o sofrimento, e nos resta aquilo que somos: apenas um amontoado de memórias e uma crescente solidão. O desejo de poder e de fama não passa de fuga dessa solidão. Para superarmos isso, precisamos ver o fato, enfrentá-lo, sem jamais contorná-lo mediante fugas ou julgamento e condenações, ou pelo medo do que é (do que ele seja). Da passiva observação sem escolha do fato, nasce uma nova realidade.

Precisamos de enorme energia para conviver com essa solidão, mas a energia só vem quando já não existe o medo. Ao percebermos o porquê dessa solidão, percebemos que nós somos a solidão, somos uma entidade única; cessa de existir o observador separado da solidão. As diferentes formas de fuga não mais nos atraem; percebemos que somos aquela solidão, mas não sabemos como evitá-la ou preenchê-la. Nem o desespero, a astúcia, a esperança, o cinismo, podem dominá-la. O cérebro não tem como escapar, pois é ele mesmo que cria a solidão através da incessante atividade de auto-isolamento, de defesa e agressão, atividade na qual sempre está presente o medo. Quando tomamos consciência desse fato, adotamos uma atitude de completa negação e passividade, e o cérebro procura cessar suas atividades e permanecer em absoluta imobilidade.

Das cinzas da solidão surge o movimento peculiar de estar só, livre de influências, de pressões, de toda forma de busca ou de realização. É a morte do passado. Inicia-se, então, a deslumbrante viagem sem fim pelo desconhecido. E, daquilo que é imensurável, brota a força pura da sabedoria e da criação.

A compreensão só existe no presente; e pode mudar o curso de nossa vida, nossa maneira de pensar e de agir. Deixada para depois, sofre a interferência do ego e se desvirtua. Agradável ou não, a compreensão põe em risco todas as nossas relações (anteriores), porque nos leva a uma verdadeira mutação.

O cérebro é, basicamente, produto da especialização: engenheiro, padre, cientista, advogado, fazendeiro, dona de casa, militar. Por ser incapaz de ver o todo da vida (pois cada um só vê seu fragmento), é a origem de todo conflito. Incapaz de ir além de seus próprios limites, de suas ações nascem o status social, os privilégios, o poder e o prestígio, que o cérebro cria para se proteger. O orgulho, a arrogância e a inveja, decorrentes da eficiência em determinada função, tornam o homem insensível e indiferente à totalidade da vida (pois ele só vê sua parte), e o arrastam à competição, à desordem, à discórdia e, finalmente, à infelicidade. Assim, a mente especializada é a origem de todo conflito social.

A meditação é o desabrochar do entendimento. Ela nega o lento e gradual processo da acumulação de conhecimentos, e pode modificar totalmente nossa vida. Por isso, é motivo de medo, seja ele consciente ou inconsciente.

O especialista é incapaz de imaginar o todo; vive para sua especialidade, condicionado para ser religioso ou técnico, esportista ou político. O talento, a aptidão e a competência fortalecem o ego e sua ação é sempre fragmentada e conflitante. A vida do homem só tem significado quando a mente compreende a vida como um todo. Acreditar que a vida se resume na fragmentada e estreita luta pelo pão, no bem-estar próprio e dos familiares, nos prazeres do sexo, da riqueza, do poder, é gerar frustração e, com esta, desespero e sofrimento.

É a mente que contém o cérebro, e não o contrário, e só a mente pode compreender o todo. A capacidade de ver o todo decorre do ato de negar. Deve ser espontânea a imobilidade do cérebro, pois qualquer espécie de esforço concorre para destruí-lo através da imitação e do conformismo. Do estado de negação surge a passiva imobilidade do cérebro que, então, se torna capaz de perceber o todo; nesse estado, de pura percepção, não existe aquele que experimenta, o observador; só existe o ver (o perceber). Então, a mente está desperta, livre da contradição e do conflito gerados pela divisão entre pensador e pensamento (observador e coisa observada). Toda forma de busca e de exigência deve findar para que o desconhecido possa surgir.

“Atravessamos a praça e penetramos numa rua estreita e sem movimento, Subitamente, na penumbra da travessa mal iluminada, nosso corpo e cérebro foram imobilizados pela beleza e suavidade daquela coisa singular que apareceu. Sua forte presença manifestava-se intensamente, penetrante e solícita. Lucidez e alegria extraordinárias invadiram nosso ser, durante o tempo necessário para percorrer aquela viela, após o que nos vimos envolvidos pelo tráfego ruidoso e pela multidão irrequieta. Era o êxtase absoluto, livre do pensamento e da imaginação”.

http://obuscadordedeus.blogspot.com  

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