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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - VII

O pensamento é a fonte do medo; e o tempo é a essência do medo pois, pensar no futuro no qual, porventura, consigamos viver em segurança, ou onde não tenhamos esperança de encontrar segurança, gera o prazer ou o sofrimento, ansiedade e conflito. Se queremos algo que nos dê prazer, o pensamento busca os meios de alcançá-lo, mas sempre com medo de não consegui-lo; sendo os prognósticos desagradáveis, procuramos evitá-los a todo custo e, no próprio desejo de evitá-los, está o medo. A imaginação de não conseguir aquilo que nos dê prazer, ou de encontrar aquilo que nos dê sofrimento, são a raiz do medo; o medo caminha sempre junto à imaginação. No entanto, se compreendermos o mecanismo da memória, do pensamento e suas associações, da imaginação e da experiência, cessa todo o medo. O processo da consciência é o movimento do pensamento; ele não é apenas a coisa pensada, mas também as associações que lhe dão origem. É a crença, o dogma, a superstição, a ideia, o raciocínio, e é também o centro (o ego) do qual essas coisas emanam. Esse centro é onde nasce o medo. Sentimos, realmente, medo, ou estamos apenas inconscientes das causas que produzem o mecanismo de defesa que o cérebro usa para fugir ao fato? A auto-proteção física demonstra saúde e equilíbrio mental, mas todas as demais formas de defesa conhecidas, as defesas psicológicas, implicam resistência e medo. Essa reação impede a segurança física, transformando-a em uma questão de classe, prestígio e poder, originando daí competição brutal, na qual sempre vence o mais forte.

Libertamo-nos do medo, seja superficial ou profundo, ao compreendermos totalmente a estrutura do pensamento e do tempo, seus efetivos criadores. O auto-conhecimento faz desabrochar e findar o medo. Cessado este, cessa o poder de criar ilusões, mitos, visões, carregados de esperança ou de desespero. Tem início, então, o movimento que vai além da consciência, do pensamento e da emoção, além daquilo que o cérebro pode compreender. É a libertação total dos desejos que preenchem a consciência. Então, nesse vazio, livre da influência de conceitos, barreiras ou palavras, do tempo e do espaço, surge o inefável.

A meditação deve ser livre de fórmula ou método, pois estes a impedem. E é indispensável a cessação do meditador (do ego); quando este cessa é que pode surgir a verdadeira meditação (ou “eu”, ou Deus; ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

A experiência nasce da desatenção, nunca do estado de atenção. O acúmulo de experiência, construindo a memória e os muros da resistência, decorre da desatenção e faz crescer o egocentrismo. A desatenção equivale à concentração, que é escolha, exclusão ou isolamento, ocasionando distração e a eterna luta de tentar controlar a meditação. A desatenção produz aquilo que denominamos experiência, que é responsável pela estagnação do pensamento. Robustece, também, a memória (o ego), o hábito, a rotina e o condicionamento, que servem para dar mais vida à ilusão que é o “eu”. A experiência e a desatenção são obstáculos à liberdade e produzem o lento processo da deterioração do cérebro.

Na atenção total não existe o ato de experimentar, porque não existe o “eu”, o centro que experimenta; tampouco existe a periferia onde se desenrola a ação. Atenção superficial significa desatenção, enquanto que o estado de total atenção envolve as atividades superficiais e profundas da mente, o passado e suas influências no presente, que se projetam no futuro. A mente é transformada pela ação libertadora da atenção. Condicionado, por natureza, e incapaz de promover sua própria transformação, o pensamento é produto da experiência; portanto é resultado da desatenção. Na plena e total atenção o pensamento finda e a mente torna-se vazia (vazia do eu, podendo vir a se tornar cheia de Deus). Como se obtém completa atenção? Nenhum método ou sistema pode obtê-la. O estado de atenção escapa a qualquer ação da vontade. Na atenção total, tudo que vem da desatenção é rejeitado espontaneamente. A atividade do “eu” cessa e só resta o silêncio, o vazio.

Quando livre do medo, toda busca é sem motivo. Essa busca não nasce da simples insatisfação, mas da revolta, mesmo inconsciente, contra o limitado padrão do pensamento. A busca nascida da insatisfação resulta sempre numa nova ilusão, numa nova crença, nova religião, numa nova prisão cheia de atrativos. Buscamos sempre através de métodos e sistemas já conhecidos e, assim, só encontramos o que já é conhecido; nada mais. Essa, então, não é a verdadeira busca, pois não encontramos nada novo. É o simples desejo de satisfazer-nos, de escapar através de uma fantasia ou outra ilusão qualquer. Essa eterna busca, a troca constante de um interesse por outro, uma crença por outra, dissipam aquela energia necessária para a compreensão “daquilo que é”. O fortalecimento e a liberação correta daquela energia só é possível quando já não existir nenhuma busca.

“O êxtase, o percebimento, revela a futilidade e a infantilidade de tudo”.

Pouco mudamos no decorrer de nossa vida. Costumamos mudar sob pressão interna (psicológica, de crenças e opiniões) ou externa (da sociedade, ambiente, costumes, leis, opiniões de outrem) o que, na realidade, é simples ajustamento ao ambiente. Algum tipo de influência, uma palavra, um gesto, podem provocar mudança de nossos hábitos, mas mudança sempre superficial. A propaganda, o jornal, um incidente qualquer, podem alterar, até certo ponto, o rumo dos acontecimentos. O medo e o desejo de recompensa podem levar à substituição de um dado padrão de pensamento por outro. Mas, essa mudança, baseada em motivos, é destituída de qualquer significado. É simples ajustamento, simples enquadramento às regras da sociedade, ação mecânica, gerada pelo desejo de conforto, respeito, segurança, sobrevivência física e pelo medo de ser rejeitado ou considerado diferente dos demais.

Afinal, que é que produz a verdadeira mutação? Nunca o tempo e o espaço, pois eles não passam de limites da consciência, do pensamento, da experiência. O inconsciente aflora em sonhos, revelando suas obsessões, exigências e desejos íntimos. Daí surge a necessidade de se interpretarem os sonhos, mas o intérprete é, sempre, alguém condicionado, preso ao tempo. Mesmo sendo responsáveis por superficiais mudanças e ajustamentos da consciência, a auto-análise e a psicanálise são incapazes de total e radical transformação. Só a compreensão do movimento do pensamento e do sentimento (da emoção, da imaginação e do medo), vinda da observação sem escolha e sem dualismo (meditação), pode produzir mutação radical.

Os limites da consciência são destruídos pela meditação, que elimina o processo de pensar e de sentir. O uso de métodos, o desejo de recompensa, enfraquecem aquela força misteriosa, sendo obstáculos à meditação. Esta libera abundante energia, energia que é deformada e destruída se houver controle, disciplina ou repressão. Meditar é como viver em perigo, pois nada escapa a sua destruição, nem mesmo o mais leve desejo. Da amplidão insondável do vazio produzido pela meditação, surgem a liberdade, a criação e a compaixão.

Para a mutação da consciência não há método, nem análise, nem pode haver desejo de recompensa. É impossível a mutação através do esforço, pois este gera conflito e isso fortalece o núcleo da consciência, o “eu”. Por mais lógico e equilibrado que seja, o raciocínio não leva à libertação da consciência, pois é formado por ideias, influências, experiências e conhecimento, todos produtos da própria consciência condicionada. Perceber a falsidade dessas ideias e conceitos, e, em consequência, rejeitar aquilo que é falso, torna a mente (localizada) vazia. Libertar-se da tradição, imposta pela sociedade e cultura, é negar o falso conceito dos opostos, a falsa autoridade do ajustamento, do conformismo, da imitação, da repetição, da experiência e do conhecimento. Negar o passado e o condicionamento, que são o conteúdo da mente, é estar só, livre da influência da tradição, das necessidades psicológicas, do apego, da dependência. Observar sem discriminar, sem escolha, e rejeitar o condicionamento conduzem à solidão, que não é isolamento ou atividade egocêntrica, nem fuga da existência. Pelo contrário, é libertação plena do sofrimento e do conflito, do medo e da morte. Essa solidão é a própria mutação da consciência. É o vazio e a ausência do ser e do não-ser. Nem observador, nem coisa observada; nem sujeito, nem objeto. Nesse vazio, a mente se renova a cada instante e pode perceber a imensidade do todo.

O futuro realmente existe? Conhecemos o hábito de planejar o futuro; das obrigações, compromissos e tarefas a serem executadas amanhã. Esses planos podem vir a ser alterados, modificados, esquecidos, mas o futuro permanece como algo incontestável. Há o tempo necessário para se percorrer uma distância, ir daqui para ali, realizar um trabalho. É o tempo cronológico, tempo para se atingir um objetivo físico. Mas, existirá um tempo futuro completamente diferente desse tempo mecânico e cronológico? Terá significado o tempo no plano psicológico? Haverá, aí, um ponto de chegada, um resultado a ser alcançado? O pensamento cria um objetivo no plano psicológico: segurança, Deus, bênção, sucesso, bom êxito, virtude, ideal, prazer. Mas, o pensamento é apenas a reação condicionada da memória, que cria um tempo necessário para transpor a distância entre “o que é” e “o que deveria ser”. E “o que deveria ser” é o ideal imaginado, apenas algo teórico, existente só na área psicológica, sem nenhuma realidade, portanto. A verdade, ‘o que é’, não depende do tempo, não tem nenhum objetivo a atingir, nenhuma distância a percorrer; ela está ali, aqui, em toda parte. O fato existe; é “o que é”; o mais é invenção, imaginação, ficção. A verdade aparece quando se morre para o ideal, para as realizações (futuras) e para o objetivo, que são meras fugas do fato. O fato elimina o tempo e o espaço. 

 E a morte, existirá? O que existe é o lento findar, a deterioração física, o inexorável desgaste orgânico que conduz à morte física, tão inevitável quanto o desgaste da ponta do lápis. E será essa a causa do medo? Ou o que tememos é o findar desse padrão de vida do constante vir-a-ser, da realização incerta, ou aquilo que pode vir após a morte? Este mundo nada vale; é o mundo da fuga e da aparência. O fato, “aquilo que é”, é totalmente diferente “daquilo que deveria ser”. O ideal implica tempo e distância, contém o medo (de não ser alcançado), e (consequentemente), a dor. A percepção pura do fato, de “o que é”, resulta da morte “do que deveria ser”. O pensamento, criador do tempo, impotente perante o fato e incapaz de modificá-lo, luta para escapar dele. Mas o fato sofre tremenda mutação ao cessar esse movimento de fuga, o que determina a morte do pensamento, que é tempo. Na ausência do tempo e do pensamento, continuará existindo o desejo de fugir do fato, daquilo que é? Quando já não existir movimento do pensamento, nem tempo ou distância para se atingir o ideal sonhado, deparamos com a imobilidade do vazio. E, nisto está a total destruição do tempo, do passado, do ontem, do hoje e do amanhã, da memória, da continuidade e do vir-a-ser. Só então, pode brotar o incomensurável.

http://obuscadordedeus.blogspot.com  

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