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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

INSTRUÇÕES PARA A VIDA INTERIOR


Capítulo II
Da humilde submissão

1. Não dês grande importância em saber quem está por ti ou contra ti, mas cuida que Deus seja sempre contigo em tudo o que fizeres. Tem boa consciência e Deus será teu defensor; a quem Deus ajuda nenhum mal fará a malícia dos homens. Se souberes calar e sofrer, o Senhor virá sem dúvida em teu auxílio. Ele sabe o tempo e a maneira de livrar-te; entrega-te, pois, nas suas mãos. De Deus é que vem o socorro, Ele é que livra de toda confusão. Para melhor conservar a humildade muito convém algumas vezes que os outros conheçam os nossos defeitos e no-los lancem em rosto.

2. Quando um homem se humilha pelas suas faltas, aplaca facilmente os outros e sem custo se reconcilia com os que se irritaram contra ele. Deus protege e livra o humilde; ama-o e consola-o; para ele se inclina; prodigaliza-lhe suas graças e, depois do abatimento, o eleva à glória; revela-lhe os seus segredos e docemente o convida e atrai a si. O humilde ainda quando recebeu afronta conserva-se em paz, porque se firma em Deus e não no mundo. Não julgues ter feito algum progresso enquanto te não tiveres por inferior a todos.

Capítulo III
Do homem bom e pacífico

1. Começa por te conservares em paz; depois, poderás pacificar os outros. Mais vale o homem pacífico que o sábio. O homem apaixonado, até o bem converte em mal e facilmente crê o mal. O homem bom e de paz tudo converte em bem. Quem está em paz não suspeita de ninguém; mas quem anda descontente e inquieto vive combatido de suspeitas diversas; não sossega nem deixa os outros sossegarem. Diz muitas vezes o que não deveria dizer e deixa de fazer o que mais lhe conviria. Atende aos deveres alheios e descura os próprios. Sê, pois, antes de tudo zeloso contigo, depois, poderás com justiça zelar pelo teu próximo.

2. Bem sabes colorir e desculpar as tuas faltas, mas não queres ouvir as desculpas alheias; mais justo fora que te acusasses a ti e desculpasses ao teu irmão. Se queres que te suportem, suporta os outros. Vê quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humildade que não sabe indignar-se e irritar-se senão contra si. Conviver com os que são bons e mansos não é difícil, porque isto a todos naturalmente agrada; cada qual ama a paz e gosta mais dos que com ele concordam. Mas poder viver em harmonia com pessoas ríspidas e perversas, que não têm educação ou nos contrariam, é grande graça, ação varonil e digna de muito louvor.

3. Alguns há que vivem em paz consigo e com o próximo; outros que nem a têm, nem a deixam ter aos demais, pesados a todos e mais a si mesmos; outros ainda que se conservam em paz e trabalham por dá-la aos que não a têm. Toda a nossa paz nesta vida de misérias mais consiste em sofrer com humildade do que em não sentir contrariedades. Quem melhor souber sofrer, maior paz terá, e será vencedor de si e senhor do mundo, amigo de Cristo e herdeiro do céu.

Capítulo IV
Da pureza e simplicidade de intenção

1. A simplicidade e a pureza são as duas asas com que se eleva o homem acima da terra. A simplicidade está na intenção, a pureza, no afeto; a simplicidade procura a Deus, a pureza O encontra e frui. Nenhuma ação boa te será difícil, se interiormente estiveres livre de toda afeição desordenada. Se não quiseres senão a vontade de Deus e a utilidade do próximo, gozarás de liberdade interior. Se reto for o teu coração, toda criatura ser-te-á espelho de vida e livro de santa doutrina. Não há criatura, por pequena e vil, que não manifeste a bondade de Deus.

2. Se fosses interiormente bom e puro, tudo verias bem e compreenderias sem dificuldade. O coração puro penetra o céu e o inferno. Cada qual julga das coisas exteriores conforme as suas disposições internas. Se há alegria no mundo, o coração puro a possui; e se, em algum lugar há tribulações e angústias, é a má consciência quem melhor as conhece. Assim como o ferro posto no fogo perde a ferrugem e se torna todo candente, assim quem se converte inteiramente para Deus sacode o torpor e transmuda-se em novo homem.

3. Quando o homem começa a entibiar, receia o menor trabalho e procura avidamente as consolações externas. Mas quando começa a vencer-se perfeitamente e a caminhar com coragem nos caminhos de Deus, logo tem por insignificante o que antes lhe parecia pesado.

Capítulo V
Da consideração de si mesmo

1. Não podemos ter muita confiança em nós mesmos porque muitas vezes nos faltam a graça e o discernimento. Pouca luz há em nós e essa bem depressa por negligência nossa a perdemos. De frequente não advertimos como é grande a nossa cegueira interior. Muitas vezes são más as nossas ações e piores as nossas desculpas. Move-nos não raro a paixão e cuidamos que é zelo. Censuramos nos outros pequenas faltas e exculpamos as nossas, mais graves. Bem depressa sentimos e ponderamos o que dos outros sofremos, mas não advertimos no que de nós sofrem os outros. Quem examinasse sinceramente as próprias ações não julgaria com severidade as alheias.

2. O homem interior antepõe o cuidado de sua alma a todos os mais cuidados; e quem olha para si com diligência abstém-se facilmente de falar dos outros. Nunca serás homem interior e devoto se não guardares silêncio das coisas alheias e não te ocupares especialmente de ti. Se voltares toda a tua atenção para ti e para Deus pouco te impressionará o que perceberes em roda de ti. Onde estás quando não estás presente a ti mesmo? De que te aproveita haver percorrido tudo se te descuidaste de ti? Se queres ter paz e verdadeira união com Deus despreza tudo o mais afim de só olhares para a tua alma.

3. Muito progresso farás se te desembaraçares dos negócios temporais; muito afrouxarás, pelo contrário, se lhes deres importância. Aos teus olhos nada avulte como grande ou elevado, agradável ou aceito, senão Deus só ou o que de Deus vem. Tem por vã toda consolação que te vier das criaturas. A alma que ama a Deus despreza tudo o que está abaixo de Deus. Só Deus, eterno e imenso, que tudo enche, é consolação da alma e verdadeira alegria do coração.

Capítulo VI
Da alegria da boa consciência

1. A glória de um homem de bem é o testemunho de uma boa consciência. Tenha boa consciência e sempre terás alegria. Muitas coisas pode suportar uma boa consciência e, ainda nas adversidades, conservar-se alegre. A má consciência anda sempre receosa e inquieta. Descansarás tranquilamente se de nada te repreender o coração. Não te alegres senão quando houveres praticado o bem. Os maus nunca têm verdadeira alegria nem experimentam paz interior; porque, "para os ímpios não haverá paz", diz o Senhor (Is. LVII, 21). E se disserem: "vivemos em paz, nenhum mal nos há de acontecer, quem se atreverá a ofender-nos?" não lhes dês crédito, porque quando menos cuidarem, levantar-se-á contra eles a cólera de Deus, a nada serão reduzidas as suas obras e se "desvanecerão os seus pensamentos" (Ps. CXLV, 4).

2. A quem ama não é difícil gloriar-se nas tribulações; gloriar-se assim é gloriar-se na cruz do Senhor. Breve é a glória que o homem dá e recebe. A tristeza acompanha sempre a glória do mundo. A glória dos bons está na própria consciência e não nos lábios dos homens. A alegria dos justos é de Deus e em Deus; e da verdade vem o seu regozijo. Quem deseja a glória verdadeira e eterna, não cuida da temporal; e quem procura a temporal ou não a despreza de coração bem mostra que ama pouco a eterna. Grande tranquilidade de coração goza aquele que se não preocupa com louvores ou vitupérios.

3. Facilmente viverá em paz e contente quem tiver a consciência pura. Não és mais santo porque te louvam nem mais desprezível porque te censuram. És o que és; e o que poderão dizer de ti não te fará maior do que vales aos olhos de Deus. Se considerares o que és em teu interior, não se te dará do que de ti disserem os homens. O homem vê o rosto, Deus, o coração; o homem considera as ações, Deus pesa as intenções. Agir sempre bem e ter-se em pouco, indício é de alma humilde. Não querer consolações das criaturas sinal é de grande pureza e confiança interior.

4. Quem não procura ao redor de si nenhum testemunho em seu favor, bem manifesta que se entregou completamente a Deus. "Não aquele que se louva é aprovado", diz São Paulo, "senão aquele a quem Deus louva" (Cor. X, 18). Andar internamente unido a Deus sem prender-se a nenhuma afeição externa é o estado do homem espiritual.

 
Tomás de Kempis, do livro Imitação de Cristo
http://www.monergismo.com

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