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terça-feira, 30 de novembro de 2021

INSTRUÇÕES PARA A VIDA INTERIOR

Capítulo VII
Do amor de Jesus sobre todas as coisas

1. Feliz aquele que entende o que é amar a Jesus e desprezar-se por amor de Jesus. Por este amor é mister deixar qualquer outro amor, porque Jesus quer ser amado só, sobre todas as coisas. Falaz e instável é o amor das criaturas; fiel e constante, o amor de Jesus. Quem se prende à criatura com ela cairá; quem com Jesus se abraça ficará firme para sempre. Ama-O e conserva-O por amigo a Ele que não te faltará quando todos te desampararem nem permitirá que pereças eternamente. Queiras ou não, de todas as coisas, terás que separar-te um dia.

2. Na vida e na morte abraça-te com Jesus e confia-te à fidelidade d'Aquele que, só, poderá valer-te quando todos te venham a faltar. Teu amado é de tal natureza que não admite competidor; Ele, só, quer possuir o teu coração e nele reinar como soberano em seu trono. Se souberes desprender-te inteiramente das criaturas Jesus se comprazerá em habitar contigo. Verás que foi quase tudo perdido o que, fora de Jesus, dedicaste aos homens. Não confies nem te firmes no caniço que o vento agita; "toda a carne é feno e sua glória, como a flor do campo" (Isaías XL, 6), fenece.

3. Muitas vezes te enganarás se julgares os homens só pela aparência. Se neles procurares vantagens e consolações o mais das vezes só experimentarás detrimento. Se em todas as coisas buscares a Jesus, a Jesus encontrarás; se buscares a ti encontrar-te-ás também mas para tua perdição; o homem que não busca a Jesus causa a si mesmo maior mal que todos os seus adversários e o mundo inteiro.

Capítulo VIII
Da familiaridade com Jesus

1. Quando Jesus está presente tudo é suave e nada parece difícil; quando Jesus se ausenta tudo se torna penoso. Quando Jesus não fala interiormente nenhuma consolação tem valor, mas basta que Ele diga uma só palavra, sentimo-nos plenamente consolados. Não vês Maria Madalena como se levantou logo do lugar em que estava a chorar, quando Marta lhe disse: "O Mestre aí está e chama-te" ? (João XI, 28). Hora feliz aquela em que Jesus chama das lágrimas à alegria espiritual! Como és árido e insensível sem Jesus! Que vaidade e loucura a tua se desejas alguma coisa fora de Jesus! Não é essa maior desgraça que se perderas todo o mundo?

2. Que te pode dar o mundo sem Jesus? Estar sem Jesus, insuportável inferno; viver com Jesus, doce paraíso. Se contigo estiver Jesus nenhum inimigo te poderá fazer mal. Quem encontra Jesus encontra um precioso tesouro, ou melhor, um bem acima de todos os bens; quem perde a Jesus perde muito, muito mais que se perdera todo o mundo. Viver sem Jesus, indigência extrema; estar bem com Jesus, imensa riqueza.

3. Grande arte, saber conversar com Jesus; saber conservar a Jesus, grande prudência. Sê humilde e pacífico e Jesus será contigo. Sê piedoso e comedido e contigo ficará Jesus. Bem depressa podes afugentar a Jesus e perder a sua graça se te derramares nas coisas exteriores; mas se O afugentares e perderes, a quem hás de recorrer e buscar por amigo? Sem amigo não poderás viver feliz e se Jesus não for teu amigo acima de todos os outros, indizível será a tua tristeza e desolação. Insensato serás, pois, se em outra pessoa puseres a tua confiança e a tua alegria. Antes ter todo o mundo contra si que ofender a Jesus. Que Ele, pois, te seja mais caro de todos os que te são caros.

4. Amemos a todos por Jesus; a Jesus, por si mesmo. Só Jesus Cristo deve ser amado com amor singular, porque acima de todos os amigos, só Ele é bom e fiel. Por amor d'Ele e n'Ele ama os teus amigos e os teus inimigos; e ora por todos para que todos o conheçam e amem. Não desejes nunca uma preferência singular na estima e no amor dos homens; porque isso pertence só a Deus que não tem igual; não queiras que alguém se ocupe contigo em seu coração nem te ocupes tu com o amor dos outros, mas Jesus reine em ti e em todo o homem de boa vontade.

5. Sê interiormente puro e livre, sem apego a criatura alguma. É mister desprender-se de tudo e oferecer a Deus um coração puro se queres descansar e ver quão suave é o Senhor. E, na verdade, não o conseguirás se não fores prevenido e atraído pela graça, de modo que, excluídas e desterradas todas as coisas, te possas unir só com Ele só. Porque quando a graça de Deus visita o homem, ele se sente com forças para tudo; quando ela se afasta, torna-se logo pobre e fraco, como que reservado para o castigo. Mas ainda neste estado não deve abater-se nem desesperar, senão submeter-se de bom grado à vontade de Deus e sofrer por amor de Jesus Cristo tudo o que lhe sobrevier; porque ao inverno sucede o verão; à noite, o dia; e à tempestade, grande bonança.

Capítulo IX
Da carência de toda consolação

1. Não é difícil desprezar as consolações humanas quando temos as divinas. Grande coisa, porém, e bem grande é poder passar sem as consolações e sem as consolações de Deus, suportar de boa vontade, para a sua glória, o exílio do coração, não buscar a si mesmo em coisa alguma nem atender ao próprio mérito. Que maravilha estares alegre e fervoroso quando te assiste a graça! Por esta hora suspiram todos. Mui suavemente caminha quem é levado pela graça de Deus. E como sentiria o peso quem é ajudado pelo Onipotente e conduzido pelo supremo Guia?

2. De bom grado procuramos as consolações e só com dificuldade se despe o homem de si mesmo. Venceu ao mundo o mártir S. Lourenço em união com o seu bispo, porque desprezou todos os atrativos do século e sofreu tranquilamente por amor de Cristo, que o separassem do sumo sacerdote de Deus, S. Xisto, a quem muito amava. Assim, com o amor de Deus venceu o afeto às criaturas, e às consolações humanas preferiu o beneplácito divino. Aprende também tu a deixar por amor de Deus um amigo íntimo e querido. Nem te aflijas demasiadamente se te abandona algum amigo, lembrando-te que um dia nos havemos todos de separar uns dos outros.

3. Muito e por muito tempo deverá o homem lutar consigo antes que aprenda a vencer-se completamente e a orientar todos os seus afetos para Deus. O homem que confia em si facilmente desliza para as consolações humanas. Mas o que ama deveras a Jesus Cristo e se dá seriamente à virtude não procura consolações nem doçuras sensíveis, antes, prefere fortes pelejas e duros sofrimentos por Cristo.

4. Quando Deus te der alguma consolação espiritual, recebe-a com gratidão; lembra-te, porém, que é dom de Deus e não merecimento teu. Não te desvaneças, não te regozijes em excesso nem presumas vãmente de ti; pelo contrário, que o dom de Deus te torne mais humilde, mais vigilante e timorato em todas as tuas ações, porque passará aquela hora e voltará a tentação. Quando te for tirada a consolação não desanimes logo; aguarda com humildade e paciência que Deus de novo te visite, porque bem pode Ele dar-te consolação ainda maior. Isto não é coisa nova nem estranha aos que têm experiência nos caminhos do Senhor; por estas alternativas passaram os grandes santos e os antigos profetas.

5. Por isso, na presença da graça, exclama um deles: "Em minha abundância disse: não vacilarei nunca" (Ps. XXIX, 7); em se ausentando, porém, a graça, acrescenta o que em si experimentou: "Apartastes de mim o vosso rosto e fiquei conturbado" (Ibid. 8). Nesta perturbação, porém, não se entrega ao desespero mas com insistência roga ao Senhor e diz: "A vós, Senhor, bradarei; ao meu Deus dirigirei as minhas súplicas" (Ibid. 9). Colhe por fim o fruto de sua oração e atesta que foi atendido dizendo: "Ouviu-me o Senhor e teve compaixão de mim; o Senhor veio em meu auxílio" (Ibid. 11). De que modo? "Trocastes", continua, "o meu pranto em gozo e inundastes-me de alegria" (Ibid. 12). Se assim foram tratados os grandes santos, não devemos desanimar nós, fracos e pobres, se ora nos sentimos fervorosos, ora tíbios; O Espírito de Deus vem e vai como Lhe apraz. Lá disse o Santo Jó: "Visitais o homem pela manhã e logo o provais" (Jó VII,18).

6. Em que posso eu, pois, esperar, e em que devo por a minha confiança senão unicamente na misericórdia de Deus e na esperança da graça celeste? Homens de virtude, religiosos devotos ou amigos fiéis, livros santos ou tratados eloquentes, hinos e cânticos suaves, tudo isto de pouco me serve e pouco me agrada quando me sinto desamparado pela graça e entregue à minha própria miséria. Não há então melhor remédio que a paciência e a renúncia de mim mesmo na vontade de Deus.

7. Nunca encontrei homem tão perfeito e piedoso que, de quando em quando, não experimentasse esta subtração da graça e diminuição do fervor. Nenhum santo houve, tão altamente arrebatado e iluminado, que, cedo ou tarde, não fosse tentado. Não é digno de ser elevado à sublime contemplação de Deus quem por amor de Deus não sofreu alguma tribulação. A tentação é, de ordinário, sinal da consolação que se lhe há de seguir. Aos provados pelas tentações é prometida a consolação celeste: "ao que vencer", diz o Senhor, "darei a comer da árvore da vida" (Apoc. II,7).

8. Deus dá a consolação afim de que o homem tenha mais força para suportar a adversidade. Segue-se-lhe também a tentação para que se não desvaneça do que tem de bom. O demônio não dorme nem a carne está morta. Não cesses, por isso, de preparar-te para a luta; à direita e à esquerda há inimigos que nunca descansam.

Capítulo X
Da gratidão pela graça divina

1. Por que procuras descanso, tu que nasceste para o trabalho? Dispõe-te mais à paciência que à consolação, a levar a cruz mais que a ter alegria. Que homem mundano não aceitaria de bom grado as consolações e alegrias espirituais se delas pudera sempre gozar? Na verdade as consolações espirituais sobrelevam todas as delícias do mundo e os prazeres da carne, porque as delícias mundanas ou são vãs ou torpes, só as espirituais são agradáveis e honestas, geradas pela virtude e infundidas por Deus nas almas puras. Mas destas consolações divinas, ninguém pode fruir à medida dos seus desejos, porque as tentações não nos dão trégua por muito tempo.

2. Grande obstáculo às visitas do céu são a falsa liberdade da alma e a demasiada confiança em si. Deus faz bem dando a graça da consolação mas o homem faz mal não agradecendo e não referindo inteiramente a Deus o dom recebido. Se a nós não descem abundantes os dons da graça é porque somos ingratos ao seu Autor e não atribuímos tudo à sua Fonte de origem. Com efeito, a graça é sempre concedida ao que a recebe com a devida gratidão e Deus costuma dar ao humilde o que tira ao soberbo.

3. Não quero consolação que me tire a compunção, nem desejo uma contemplação que me leve ao orgulho. Nem tudo que é elevado é santo; nem tudo o que é doce é bom; nem todo o desejo é puro; nem tudo o que nos agrada a Deus agrada. De boa vontade aceito a graça que me torna mais humilde e timorato e melhor me dispõe à renúncia de mim mesmo. O homem instruído pelo dom da graça e escarmentado pela sua privação não ousará atribuir-se bem algum, antes se confessará pobre e desprovido de tudo. Dá a Deus o que é de Deus e a ti atribui o que é teu; isto é, agradece a Deus pelas graças recebidas e reconhece que só a ti é devida a culpa e o justo castigo da culpa.

4. Põe-te sempre no último lugar e ser-te-á dado o primeiro porque não haverá primeiro lugar senão para quem se coloca no último. Os maiores santos aos olhos de Deus foram os menores na própria estima; quanto mais gloriosos tanto mais humildes. Cheios da verdade e da glória do céu não cobiçam uma glória vã. Fundados e confirmados em Deus, de nenhum modo se podem ensoberbecer. Referindo a Deus todo o bem recebido não procuram a glória que dão os homens, mas querem só a glória que vem de Deus. Seu único desejo e sua contínua aspiração é que Deus, em si e em seus santos, seja sempre louvado acima de todas as coisas.

5. Sê, pois, agradecido pelo mínimo benefício e tornar-te-ás digno de receber maiores. Tem por grandes os menores dons e por dádiva singular o que os homens julgam desprezível. Para quem considera a dignidade de quem dá nenhum dom parecerá pequeno ou insignificante; não pode ser pouco o que vem de um Deus infinito. Deves agradecer-Lhe ainda quando te envie penas e castigos, porque é para nossa salvação quanto permite que nos aconteça. Quem deseja conservar a graça de Deus seja reconhecido quando Ele lha dá e paciente quando lha retira; ore para que se lhe restitua; ande cauteloso e humilde para não a perder.

Capítulo XI
Do pequeno número dos que amam a cruz de Cristo

1. Tem Jesus muitos que amam seu reino celeste, poucos que carreguem a sua cruz; muitos desejam as suas consolações, poucos, os seus sofrimentos; muitos são os companheiros de sua mesa, poucos, de sua abstinência. Todos almejam gozar com Ele, poucos querem sofrer algo por seu amor. Muitos acompanham Jesus até ao partir do pão, poucos até ao beber do cálice de sua paixão. Muitos admiram os seus milagres, poucos abraçam a ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus enquanto não lhes bate à porta a adversidade; louvam-no e bendizem-no enquanto dele recebem consolações. Se Jesus, porém, se esconde ou deles se afasta por algum tempo entram logo a queixar-se e a cair em excessivo desalento.

2. Os que amam a Jesus por Jesus e não pela própria satisfação bendizem-no tanto nas tribulações e angústias como nas maiores consolações. E ainda quando os não quisesse consolar nunca, eles O louvariam sempre e sempre Lhe dariam graças.

3. Oh! quanto pode o amor de Jesus quando puro e sem mescla de interesse ou de amor próprio! Não merecem porventura o nome de mercenários os que andam sempre à busca de consolações? Não dão provas de amar mais a si que a Cristo os que não pensam senão em seus cômodos e interesses? Onde se encontrará quem queira servir a Deus gratuitamente?

4. É raro encontrar uma alma tão adiantada na vida espiritual que esteja desapegada de tudo. O verdadeiro pobre de espírito, desprendido de todas as criaturas, quem o achará? "Tesouro precioso que debalde se buscaria até às extremidades da terra" (Prov. XXXI, 10). Se o homem abrir mão de toda a sua fortuna, isso é nada. Se fizer grande penitência ainda é pouco. Se adquirir todas as ciências, ainda está longe. Se tiver grandes virtudes e piedade fervorosa, muito ainda lhe falta; falta-lhe a coisa mais necessária. Qual? Que, tendo deixado tudo, deixe a si mesmo e saia totalmente de si, sem nenhuma reserva de amor próprio; e tendo cumprido o que julga se seu dever, sinta que nada fez.

5. Não tenha em muita conta o que por grande poderiam estimar os homens, mas com sinceridade se confesse servo inútil, conforme a palavra da Verdade: "quando fizerdes tudo o que vos foi mandado dizei: servos inúteis somos." (Luc. XVII, 10). Poderá ser então verdadeiramente pobre de espírito e desapegado de tudo, dizer com o Profeta: "sou pobre e só no mundo" (Ps. XXIV, 16). Ninguém, todavia, é mais rico, mais poderoso, mais livre do que aquele que soube deixar a si mesmo e a todas as coisas e colocar-se no último lugar.

Capítulo XII
Da estrada real da Santa Cruz

1. A muitos parece dura esta linguagem: "Nega a ti mesmo, toma a tua cruz e segue a Jesus" (Luc. IX, 23). Muito mais dura, porém, será ouvir aquela última sentença: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno" (Mat. XXV, 41). Os que agora ouvem e seguem de boa vontade a palavra da Cruz, não hão de temer um dia a da condenação eterna. "Este sinal da Cruz aparecerá no Céu quando o Senhor vier a julgar" (Mat. XXIV, 30). Todos os discípulos da Cruz que conformaram a sua vida com a de Jesus crucificado com grande confiança aproximar-se-ão de Cristo juiz.

2. Por que temer, pois, tomar a Cruz pela qual se vai ao reino do céu? Na Cruz está a salvação, na Cruz a vida, na Cruz a proteção contra os inimigos. Na Cruz, a fonte das suavidades celestiais, na Cruz a fortaleza da alma, na Cruz a alegria do espírito, na Cruz a consumação da virtude, na Cruz a perfeição da santidade. Não há salvação para a alma nem esperança de vida eterna senão na Cruz. Toma, pois, a tua Cruz, segue a Jesus e chegarás à vida eterna. Ele te precedeu carregando a sua Cruz e na Cruz morreu por ti, para que tu também carregues a tua Cruz e na Cruz desejes morrer. Porque se com Ele morreres, com Ele viverás e se Lhe fores companheiro no sofrimento, sê-lo-ás também na glória.

3. Tudo, pois, se encerra na Cruz e se resume em morrer nela. E não há outro caminho que leve à vida e à verdadeira paz interior senão o caminho da santa Cruz e da mortificação cotidiana. Anda por onde quiseres, procura quanto quiseres, não encontrarás caminho mais sublime acima do caminho da santa Cruz, nem abaixo dele, caminho mais seguro. Dispõe e ordena todas as coisas conforme o teu gosto e parecer, e verás que sempre, queiras ou não, hás de padecer alguma coisa, e assim sempre encontrarás a Cruz; porque ou hás de sofrer dores no corpo ou tribulações na alma.

4. Ora serás desamparado por Deus, ora atormentado pelo próximo e, o que mais é, muitas vezes serás pesado a ti mesmo. E não encontrarás nem remédio que e cure, nem consolação que te alivie, mas terás que sofrer enquanto Deus quiser. Deus quer, com efeito, que aprendas a sofrer sem consolo, a Ele te submetas totalmente com a tribulação te tornes mais humilde. Ninguém sente tão intimamente a paixão de Cristo como o que passou por tormentos semelhantes aos seus. A Cruz, portanto, está sempre preparada e em todo lugar te espera. Não poderás fugir onde quer que te refugies, porque aonde quer que fores te levarás contigo e te encontrarás a ti. Volta-te para cima ou para baixo, volta-te para fora ou para dentro, sempre acharás a Cruz e sempre é necessário que tenhas paciência se queres possuir paz interior e merecer a coroa eterna.

5. Se de bom grade levares a Cruz ela te levará a ti e te conduzirá ao fim que desejas, onde já não terás que sofrer; mas não será neste mundo. Se de má vontade a levares, aumentar-lhes-ás o peso e agravarás a tua carga, e, ainda assim, é forçoso que a suportes. Se rejeitares uma Cruz, outra encontrarás com certeza e talvez mais pesada.

6. Cuidas escapar àquilo de que se não eximiu nenhum mortal? Que santo houve no mundo que não teve cruzes e tribulações? Nem Jesus Cristo, Senhor Nosso, passou em toda a sua vida, uma só hora, sem as dores de sua Paixão. "Era mister", disse Ele, "que Cristo sofresse e ressuscitasse dos mortos e assim entrasse em sua glória" (Luc. XXIV, 26 e 46). Como, pois, buscas outro caminho fora da estrada real da santa Cruz?

7. Toda a vida de Cristo foi Cruz e martírio e queres descanso e gozo? Andas errado e muito errado, se buscas outra coisa que não sofrimentos; toda esta vida mortal é cheia de misérias e cercada de cruzes. E quanto mais progressos na vida espiritual fizer uma alma, tanto mais pesadas serão, muitas vezes, as suas cruzes; porque com o amor crescem as penas do exílio.

8. Mas, entretanto, a quem se acha no meio de tantas provações, não lhe faltará o alívio e consolo, porque sentirá o grande fruto que lhe advém da paciência em levar a sua cruz. Pois quando alguém se submete de bom grado, o peso da tribulação todo se converte em confiança que o consola. E quanto mais se quebranta a carne pela aflição tanto mais se fortalece interiormente o espírito pela graça. E, algumas vezes o desejo de sofrer penas e adversidades para mais se assemelhar a Cristo crucificado inspira tanta força à alma que ela já não quisera viver sem dores e tribulações, persuadida que será tanto mais agradável a Deus quanto mais e maiores trabalhos sofrer por seu amor. Não é isto virtude humana senão graça de Cristo que tanto pode e tanto faz numa carne frágil, que o homem, pelo fervor do espírito ame e abrace o que, naturalmente, lhe causa aversão e horror.

9. Não é natural ao homem levar a cruz, amar a cruz, castigar o corpo e submetê-lo ao espírito, fugir das honras, sofrer de bom grado as afrontas, desprezar-se e querer ser desprezado, aturar as adversidades e desgraças e não desejar nenhuma prosperidade neste mundo. Se a ti só olhares, de nada disto és capaz por ti mesmo. Mas se confiares no Senhor, do alto ser-te-á dada a força com que dominarás o mundo e a carne; e se estiveres armado com fé e com o sinal da cruz de Cristo nem o mesmo inimigo infernal temerás.

10. Dispõe-te, pois, como bom e fiel servo de Cristo a levar com ânimo a cruz do teu Senhor, por teu amor crucificado. Prepara-te para sofrer muitas adversidades e toda a sorte de trabalhos nesta vida miserável; porque é o que te espera onde quer que estejas e o que encontrarás onde quer que te escondas. É uma necessidade; e não há outro meio de escapar à tribulação dos males e à dor senão ter paciência contigo. Bebe amorosamente o cálice do Senhor se queres ser seu amigo e partilhar a sua herança. Deixa que Deus disponha de suas consolações; que Ele as distribua como for de seu agrado. Quanto a ti, prepara-te para padecer tribulações considerando-as como as consolações mais preciosas, porque "todos os sofrimentos desta vida não tem proporção alguma com a glória futura, que em nós se há de manifestar" (Rom. VIII, 18), e não poderias merecê-la ainda que, só, os pudesses suportar todos.

11. Quando chegares a ponto de saborear e achar doces as tribulações, por amor de Cristo, dá-te por feliz porque encontraste o paraíso na terra. Mas enquanto te pesa ainda o sofrimento e procuras evitá-lo ir-te-á mal e a tribulação que foges seguir-te-á em toda a parte.

12. Se, porém, te dispões ao que deves, isto é, a sofrer e a morrer logo te sentirás melhor e acharás a paz. Ainda que foras como São Paulo, arrebatado ao terceiro céu, não estás por isso seguro de nada sofrer. "Mostrar-lhe-ei", disse Jesus, "quanto há de sofrer por meu nome" (Atos, IX, 16). Não te resta, portanto, senão sofrer se queres amar a Jesus e servi-lo sempre.

13. Prouvera a Deus, fosses digno de padecer alguma coisa pelo nome de Jesus! Que glória para ti! Que alegria para os santos de Deus! Que edificação para o próximo! Na verdade, todos aconselham a paciência, mas poucos querem exercitá-la. Com razão deveras sofrer um pouco por amor de Cristo, quando tantos por amor do mundo padecem males mais graves.

14. Tem por certo que a tua vida deve ser uma morte contínua; quanto mais cada um morre a si mesmo tanto melhor começa a viver para Deus. Só é capaz de compreender as coisas do céu quem se resigna a suportar por amor de Cristo as adversidades. Nada mais agradável a Deus, nem mais proveitoso para ti neste mundo, que padecer de boa vontade por Cristo. E se te dessem a escolher, deveras preferir sofrer, trabalhar por Ele a ser recreado com muitas consolações, porque assim te assemelharias mais a Cristo e melhor e conformarias com o exemplo de todos os santos. O nosso merecimento e o progresso na perfeição consistem menos na abundância das doçuras e consolações do que em passar por grandes trabalhos e provações graves.

15. Se para a salvação do homem, alguma coisa houvera de melhor e mais útil que o sofrimento, Cristo, sem dúvida, no-lo houvera ensinado com suas palavras e exemplos. Ora, aos discípulos que o acompanhavam e a quantos desejam segui-lo ele exorta claramente a levar a Cruz dizendo: "Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mat. XVI, 24). Assim, pois, lidas e bem pesadas todas as coisas, seja esta a última conclusão: "Para entrar no reino de Deus é mister passar por muitas tribulações" (Atos XIV, 21).

 
Tomás de Kempis, do livro Imitação de Cristo
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