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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

 O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - VI


Até na morte desejamos ser importantes; não há limite para nossa vaidade e presunção. Almejamos a fama e o poder ou a amizade daqueles que os possuem. Queremos que nosso poder e nossa fama sejam percebidos; isto é o que lhes dá significado. Desejamos a aprovação de todos ou daqueles que dominamos. O poder é o eterno mal exercido pelo político, pelo santo ou pela mulher sobre o marido, e vice-versa. Apesar de destruidor, todos desejam ardentemente possui-lo, e aqueles que o possuem querem sempre mais.

É preciso desenvolver uma sensibilidade capaz de responder prontamente aos desafios da vida, mas que não interfira no nível psicológico (coisa que só se adquire pelo auto-conhecimento que a meditação proporciona).

Para nós, é insondável a ação do desconhecido, pois o infinito é inacessível ao pensamento. Na absoluta quietude do cérebro, quando por demais sensível, o pensamento cessa sem que isso represente a morte; daí nascem a renovação e uma diferente qualidade de pensar que destroem todo o sofrimento.

Desejamos só o conhecido, aquilo que não é o verdadeiro. Inacessível aos crentes e filósofos, esses teóricos da vida, a paz não é uma reação contrária à violência. Para que exista a paz, os opostos e o conflito da dualidade devem cessar. É natural a dualidade no campo da matéria, como a que existe entre claro e escuro, homem e mulher, mas o conflito dos opostos, no campo psicológico, é totalmente desnecessário e nocivo. Esse conflito surge do vazio interior e da ânsia de preenchimento, do desejo sexual, da busca de segurança psicológica, que dão origem ao atrito dos opostos. A fuga ao conflito dos opostos, do apego para o desapego, a busca das virtudes, são métodos prescritos pela religião e pela própria lei, como forma de aquietar a aflição do homem. Mas, essa ordem estabelecida pela lei é superficial, e é apenas ilusão a tranquilidade que a religião oferece à mente confusa. Nada disso se compara à paz que vem da ausência de conflito, na qual toda forma de necessidade psicológica deixa de existir, e dá lugar ao vazio criador. O mecanismo psicológico da resistência interna e da busca de segurança deve cessar para que, de seu vazio, surja a verdadeira paz.

A quietude surge quando existe paixão, que dá intensidade à meditação. Meditar não é analisar uma ideia ou conceito; é ir além do pensamento; é penetrar no desconhecido, pertencer ao infinito.

Inteligência não é capacidade de inventar, nem memória ou mero exercício mental ou verbal. Por mais informados e hábeis que sejamos em certos aspectos, somos ignorantes em outros. O acúmulo de conhecimento, a competência, a aptidão e o talento, não refletem, necessariamente, uma mente inteligente. Mas, a sensível percepção da vida, de seus problemas, contradições, suas aflições e alegrias, isso revela sabedoria e inteligência. Estar consciente disso tudo, sem escolha, sem ser perturbado pela complexidade das questões vitais, sem resistir ao fluir avassalador da vida, é ser inteligente. Implica não ser dependente das circunstâncias e, portanto, ser capaz de compreender e de libertar-se da influência e das condições do ambiente. A inteligência nasce da destruição do passado psicológico; essa destruição é a essência da inteligência, e a falta de inteligência produz sofrimento na ação pois, quando agimos sem ela, criamos conflito e sofrimento, que são negação da inteligência e indicam imaturidade.

A ignorância vem da falta de auto-conhecimento, esse aprender sem fim. Não nos referimos ao acúmulo de saber, que cria e reforça, inevitavelmente, o centro do conhecimento, da experiência, o ego; nesse processo acumulativo não há lucidez. Com a compreensão do processo do pensar e do sentir, ao cessarem a resistência e o desejo de mais e mais, vêm o auto-conhecimento e a inteligência. O auto-conhecimento, como ação no presente, difere totalmente da autocrítica exercida pelo centro nascido da experiência e do saber, no qual o passado, vindo à tona (por associações), impede a compreensão dos fatos do presente.

“Nada se compara ao ar puro e à beleza dos campos, das matas e florestas, longe do ruído do tráfego e da poluição das cidades. O período de adaptação ao ritmo da cidade dificulta o aparecimento daquela força”.

Tempo e pensamento (ego) são inseparáveis. É impossível destruir um sem destruir o outro. Não se pode dar-lhe fim por um ato da vontade, por ser a vontade o próprio ego em ação. O pensamento significa acúmulo de memória e de experiência; é reação da memória, é condicionado, mecânico, e desconhece a liberdade. Está preso ao conhecido, que vem do passado e é condicionado por este; projeta a ilusão de um futuro e constrói sua prisão, modesta ou luxuosa. O pensamento é incansável no eterno esforço de aprimorar-se e controlar suas fantasias, inventar seu próprio padrão e ajustar-se ao ambiente. É incapaz de transcender a si mesmo, pois suas atividades, mesmo as mais amplas, nada trazem de novo pois nunca vão além do limite da memória. Esta é indispensável para a sobrevivência física do homem; mas é destrutiva no campo psicológico, porque a atividade egocêntrica do pensamento corrompe toda ação (que nunca será sem motivo).

A sensível percepção da totalidade da vida, seus problemas, contradições, aflições, alegrias, revela sabedoria. Estar consciente de tudo isso, sem escolha, é ser inteligente. A mente é sempre prisioneira do tempo, mas a inteligência derruba todas as barreiras, pois age livre de qualquer objetivo de ganho. A inteligência nasce da eliminação do pensamento e do tempo psicológico; sem inteligência, qualquer transformação é só continuidade modificada do que foi.

A compreensão das necessidades psicológicas é de vital importância. A satisfação das necessidades básicas de alimento, roupa e abrigo, é necessária. Mas, existirão outras necessidades? Mesmo que estejamos sujeitos ao conjunto das exigências psicológicas, devemos questionar sua validade. Será inevitável vivermos sob a pressão das exigências do sexo, da busca de preenchimento, da ambição, inveja, avidez, competição, de ser mais e melhor do que somos? Através dos tempos, o homem fez disso sua vida e esse padrão de existência é incentivado pela sociedade, pela religião e pelos psicólogos. Como somos condicionados e medrosos, não resistimos a esse apelo e aceitamos essa maneira de viver. E a fuga e a encenação tomaram lugar em nossa vida. A busca de preenchimento, a necessidade de ser alguém, nascem do medo do futuro, do medo do desconhecido. São inúmeras as necessidades psicológicas que se multiplicam e se modificam constantemente (pois são artificiais, criadas pela sociedade e pela cultura). Eis porque todo desejo é contraditório. O desejo é inevitável; variam os objetos do desejo, mas ele está sempre presente. Fraco ou forte, controlado, negado, aceito, reprimido ou aniquilado, está sempre ali. Que há de errado com o desejo que, mesmo causando sempre conflito, desordem, sofrimento, frustração, não conseguimos evitá-lo? Devemos compreendê-lo, sem repressão e sem disciplina; então poderemos entender as necessidades psicológicas. Essas exigências e o desejo são inseparáveis, bem como o anseio de preenchimento dessas necessidades e o medo de não o conseguirmos. Mas, seja o desejo nobre ou vil, sua essência é conflito. Do eremita ao santo, ao político, todos somos consumidos pelo desejo. No entanto, se compreendermos o porquê das exigências físicas e psicológicas, ele deixa de ser uma tortura. Dessa compreensão, ao superar o conteúdo do pensamento e do sentimento, a ansiedade do desejo se transforma numa chama criadora, na qual é consumida toda mesquinhez humana. Nessa chama estão o amor, a morte e a beleza, cuja inesgotável energia é a própria vida.

A atividade da memória, a ação baseada no conhecimento, o conflito dos desejos opostos, a busca de liberdade, estão dentro dos limites do cérebro. Por mais que este se aperfeiçoe, amplie ou acumule conhecimentos, jamais terá fim o sofrimento. Enquanto o raciocínio for apenas reação da memória, do que já conhecemos, o sofrimento não cessará. Existe, no entanto, um “pensar” nascido do completo vazio da mente; por ser destituído de centro, pois não existe o eu, este vazio é ação do infinito. Daí surge a verdadeira criação, diferente da criação humana. O amor, a compaixão e a inteligência estão nesse vazio criador.

Fala-se do medo. Trata-se apenas de imaginação, pois está sempre no futuro ou no passado, jamais no presente. Ao surgir o sentimento denominado medo, será, realmente, medo? Frente ao perigo, seja de ordem física ou psicológica, é impossível fugir dele. Contudo, quando existe total atenção o medo desaparece. O medo surge da desatenção, da distração, do desejo de escapar do fato. Logo, o medo é a própria fuga do fato; fuga, portanto, definitivamente impossível, pois é fuga daquilo que é.

Nas relações humanas, o medo assume diferentes formas: arrependimento, ansiedade, esperança, desespero. Está intimamente ligado à busca de segurança, àquilo que chamamos de amor e devoção, à ambição e ao bom êxito, à vida e à morte. O medo existe em todos os níveis de nossa consciência, sendo a origem da resistência, da autodefesa e da renúncia. Medo do claro e do escuro, de ir e de vir, de viver e de morrer. O desejo de segurança está sempre no princípio e no fim do medo; o desejo de segurança, física ou psicológica, o desejo de escapar à incerteza, à indecisão, o medo da impermanência das coisas, medo de fazer papel ridículo, medo de tudo. Desejamos que haja continuidade na vida, na virtude, nas relações, na ação, na experiência, no conhecimento, em tudo que julgamos bom para nós, em tudo que nos dê prazer. Todos buscam segurança, e dessa busca incessante, nasce o medo de não consegui-la.

Mas, existirá segurança material? E segurança psicológica? Sabemos que, mesmo no plano material, vivemos em total incerteza, porque sob a constante ameaça de guerras, revoluções, da implacável marcha do progresso, de acidentes, terremotos, cataclismos (além de doenças, bactérias, de epidemias, greves, falência, atentados, assaltos, roubos, balas perdidas, morte). É inegável a necessidade de abrigo, alimento e vestuário. Apesar da incessante busca de segurança, já conseguimos, alguma vez, ter segurança física ou segurança psicológica completa, permanente? É claro que não. E, a não aceitação desse fato, a fuga desse fato, é o medo. A incapacidade humana de aceitar o fato de que não existe segurança em lugar e em tempo nenhum, cria o medo, do qual se originam a esperança de encontrar segurança e, em seguida, o desespero pelo medo de não encontrá-la.
 

http://obuscadordedeus.blogspot.com

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