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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - IX


Ver usando o pensamento e ver sem usar o pensamento são duas formas totalmente diferentes de ver. Ao vermos com o pensamento qualquer objeto ou coisa, o cérebro permanece preso ao tempo, à experiência e à memória, e faz, inevitavelmente, associações e interpretações. Essa atividade incessante do pensamento tira energia do cérebro. Ver com o pensar mantém o cérebro preso ao hábito e ao reconhecimento. O cérebro só atinge a liberdade quando o pensamento está ausente, o que não significa desequilíbrio ou loucura. Ausente o pensamento, resta apenas o estado de pura observação, livre do processo mecânico de reconhecer, interpretar, comparar, julgar e avaliar. Ver sem o pensamento é ver sem a interferência do tempo, da memória, do conhecimento e do conflito (sem a interferência do observador, do eu). É ver sem restrições, de modo imparcial, livre de qualquer barreira (de condicionamento), porém capaz de distinguir os diversos elementos que compõem o mundo em que vivemos. Ver sem o pensamento não significa um cérebro adormecido. Ao contrário, é então que ele está inteiramente desperto, atento, e livre do conflito e da dor. A meditação explode desse estado de atenção, além dos limites do espaço-tempo.

Na realidade, o intelecto pode danificar e até mesmo destruir o corpo e este, por sua vez, quando sem energia e insensível, corrompe e deteriora o intelecto. Se descuidamos do corpo, pela tolerância, pela satisfação exagerada dos desejos e apetites, concorremos para seu embrutecimento e insensibilidade, fato que traz o enfraquecimento e a preguiça do raciocínio. E o refinamento e a astúcia do pensamento levam ao desleixo com o corpo que, por sua vez, afeta e distorce o intelecto. O excesso de peso e gordura interferem no delicado mecanismo do cérebro e este, ao tentar escapar dos conflitos e problemas que ele mesmo cria, afeta o organismo todo. A capacidade de acompanhar o veloz e sutil movimento da mente exige grande equilíbrio e harmonia do corpo e do cérebro. A percepção da verdade é definitiva. A compreensão do fato, e não sua avaliação, é essencial. Percebendo esta verdade, o cérebro torna-se consciente dos hábitos, que são fatores de deterioração do corpo, e recusa toda espécie de controle e disciplina impostos pela cultura e sociedade.

Coisa estranha é o amor (apego), que se tornou tão respeitável: o amor a um deus, à família, ao semelhante. Tido como sagrado ou profano, como dever, disciplina e sacrifício, sacerdotes e generais, ao planejarem as guerras, invocam o amor. Os políticos e donas-de-casa sempre se queixam dele. O ciúme e a inveja alimentam o amor, que serve de prisão a toda forma de relacionamento. A continuidade do amor resulta no prazer, sempre seguido pela aflição vinda do medo de perder o objeto amado; apegados ao prazer, receosos de perder aquilo que amamos, lutamos para nos livrar do medo e da dor. Ao evitar-se qualquer mudança nas relações que dão continuidade ao amor, fica-se enredado na sensação opressiva da segurança ou na agonia do hábito. E, chamando de amor essa alternação de prazer e dor interminável, nos tornamos seus prisioneiros. Para escapar ao tédio buscamos refúgio na religião e no romantismo. Mas, nada disso é amor. No verdadeiro amor não existe continuidade; ao contrário do intelecto, o amor ignora o amanhã e o futuro. A memória nasce do passado, mas o amor é livre da tirania do tempo e desconhece a promessa, a esperança ou o desespero porque o amor é sempre amor. O cérebro nem mesmo chega a imaginar o que seja o amor pois este não tem nada a ver com nenhuma crença, religião ou sentimento e está fora de seus limites. Ao findar o conhecido nasce o verdadeiro amor.

A ação baseada no raciocínio é geradora de conflito e sofrimento.

‘Aquela’ força vem da meditação, não da vontade; a vontade implica resistência, confusão e sofrimento. Ao surgir o estado da pura observação, no qual a inveja, a ambição e a avidez espontaneamente deixam de existir, seremos aquele estado que é a própria humildade, no qual a morte (do ego, do passado) se transforma em vida e, dessa transformação surge o amor.

“Sua intensidade, de tão forte, tornava inúteis as tentativas do intelecto de ajustá-la a suas fantasias ou crenças”.

A imobilidade do cérebro, decorrente de sua sensibilidade, deve ser sem motivo, sem busca de recompensa, sem esforço, não proposital, espontânea portanto (somente pela sua própria sensibilidade aguçada). No estado de atenção consciente, desperto, cessa a origem do pensamento (o eu), de modo natural e espontâneo, sem nenhum esforço, controle ou disciplina.

O que destrói aquela energia é a ambição, a inveja e a avidez, que produzem conflito e sofrimento. Ao motivar uma ação, a inveja anula essa energia, pois traz consigo insatisfação, dor e medo, este seguido do sentimento de culpa, da ansiedade e das aflições nascidas da comparação e do desejo de imitar.

Ao tentar ir além de seus próprios limites, coisa que lhe é impossível, o pensamento se torna especulativo, fantasioso, cheio de ilusões e vazio de significado. E, ainda que decifre seu próprio enigma, ele é incapaz de penetrar nos mistérios da meditação, pois esta, para existir, depende do findar do pensamento.

O cérebro é instrumento de surpreendente sensibilidade. Incansável em sua atividade de captar, registrar, interpretar e acumular impressões e informações, ele jamais pára de funcionar. Herdando do animal o instinto de sobrevivência e a busca de segurança física, o cérebro criou todas suas atividades e projeções, tais como um deus, a virtude, a moral, a ambição, os desejos, as exigências e os ajustamentos. Com sua capacidade de pensar, dedica-se ao cultivo do tempo, do passado, do presente e do futuro. Com isso, ele tem a oportunidade de adiar a ação, de buscar a satisfação, de imaginar que tem continuidade através da busca do ideal e do preenchimento. Disso nasce a frustração, a dor, a fuga na crença, na religião, na promessa do céu, nas múltiplas formas que idealizou para sua segurança. A morte e o medo estão sempre presentes, levando o intelecto a ter esperança e refúgio em crenças sem base e conceitos racionais ou irracionais. Hábil ou experiente, profundo ou erudito, o pensamento é sempre superficial. Acostumado a pensar e a reagir em termos de opostos, o cérebro vive no conflito e na confusão, que são origem de mais sofrimento.

O cérebro não pode compreender a vida integral. Essa compreensão nasce de sua absoluta imobilidade, sem que ele esteja adormecido ou embotado pela disciplina ou pelo controle, ou hipnotizado. Quando cessarem de existir o julgamento, a comparação, a avaliação, nascerá aquele insondável mistério. O estado de atenção, consciente e total, destrói a origem de todo pensamento, de modo espontâneo e natural, sem violência nem esforço.

“De novo, sentia-se a paz verdadeira, inacessível ao pensamento. Para que a paz se torne real é preciso que o homem, tal como é, deixe de existir”. (Somente é possível experimentar aquela bênção, dentro e fora de nós, quando há o natural e completo esvaziamento do conteúdo cerebral. Quando o eu não existe, Deus existe. Ou, “Aquieta-te e sabe: eu sou Deus”.)

A tagarelice incessante, que o cérebro vive, deve cessar, para que do vazio assim criado venha a correta resposta às questões imediatas, resposta oriunda da ausência de reação (do ego). Toda manifestação do pensamento serve apenas para prolongar o desespero e a agonia dos problemas que, assim, se prolongam no tempo e se tornam insolúveis. A resposta correta, definitiva, está além do intelecto (além do ego). A quietude do cérebro nasce de seu vazio, que não é estado de vácuo ou de apatia, mas um estado de tremenda energia.

O tempo cronológico é real, mas o tempo psicológico, é ilusão; não passa de coisa falsa, inútil invenção da mente do homem. Por depender, ilusoriamente, do tempo para realizar a transformação interior, o pensamento enreda-se num círculo vicioso pois não consegue realizar transformação nenhuma; apenas consegue fazer a continuidade modificada do que já era. Desse modo, o pensamento se torna lerdo, preguiçoso, deixando a ação sempre para depois, porque acredita no processo gradual do tempo e nos ideais (‘no futuro, farei isso’). O tempo é necessário, por exemplo, para se aprender uma técnica, para irmos de um lugar para outro; mas todas suas outras necessidades são ilusórias.

O estado de atenção, sem o qual não há mutação, produz uma ação nova, que não se transforma em hábito, nem na repetição de uma sensação, de uma experiência, ou conhecimento; tudo isto embota o cérebro, tornando-o insensível e incapaz de sofrer a mutação.

A virtude não é consequência da escolha de determinado hábito, ou conduta mais correta. Sem qualquer restrição, ela não segue nenhum padrão social de respeitabilidade, nem alguma forma de ideal. A mutação só acontece quando negamos o hábito, a tradição, as reformas, os ideais e tudo o que é transitório. Só na quietude do cérebro se realiza a verdadeira e radical mutação.

Qualquer oração é totalmente sem sentido. Instintivamente, nos momentos de crise, lembramo-nos da prece para pedir a solução de problemas, dores, ou para ter uma vantagem qualquer. Dirigido aos deuses criados pela mente do homem, o apelo contido na prece pode ser, às vezes, satisfeito por coincidência, fato que é tido, em geral, como prova da existência daquele deus. Mas, apesar das orações e súplicas, o homem continua a sofrer, o que faz o cérebro e o corpo se esgotarem, tornando-se insensíveis e sem energia.

A ilusão surge quando a realidade perde seu significado, quando a mente, atordoada, por ter sucumbido às influências e aos hábitos e por estar sempre em busca de segurança, torna-se indiferente perante a real beleza do mundo que nos cerca. A busca de segurança através do poder, do prestígio, do conhecimento ou das relações, ou da influência do poder de outrem, destrói a sensibilidade e concorre para a deterioração do cérebro.

http://obuscadordedeus.blogspot.com

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