O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI - IX
Na realidade, o intelecto pode danificar e até mesmo destruir o corpo e
este, por sua vez, quando sem energia e insensível, corrompe e
deteriora o intelecto. Se descuidamos do corpo, pela tolerância, pela
satisfação exagerada dos desejos e apetites, concorremos para seu
embrutecimento e insensibilidade, fato que traz o enfraquecimento e a
preguiça do raciocínio. E o refinamento e a astúcia do pensamento levam
ao desleixo com o corpo que, por sua vez, afeta e distorce o intelecto. O
excesso de peso e gordura interferem no delicado mecanismo do cérebro e
este, ao tentar escapar dos conflitos e problemas que ele mesmo cria,
afeta o organismo todo. A capacidade de acompanhar o veloz e sutil
movimento da mente exige grande equilíbrio e harmonia do corpo e do
cérebro. A percepção da verdade é definitiva. A compreensão do fato, e
não sua avaliação, é essencial. Percebendo esta verdade, o cérebro
torna-se consciente dos hábitos, que são fatores de deterioração do
corpo, e recusa toda espécie de controle e disciplina impostos pela
cultura e sociedade.
Coisa estranha é o amor (apego), que se tornou tão respeitável: o amor a
um deus, à família, ao semelhante. Tido como sagrado ou profano, como
dever, disciplina e sacrifício, sacerdotes e generais, ao planejarem as
guerras, invocam o amor. Os políticos e donas-de-casa sempre se queixam
dele. O ciúme e a inveja alimentam o amor, que serve de prisão a toda
forma de relacionamento. A continuidade do amor resulta no prazer,
sempre seguido pela aflição vinda do medo de perder o objeto amado;
apegados ao prazer, receosos de perder aquilo que amamos, lutamos para
nos livrar do medo e da dor. Ao evitar-se qualquer mudança nas relações
que dão continuidade ao amor, fica-se enredado na sensação opressiva da
segurança ou na agonia do hábito. E, chamando de amor essa alternação de
prazer e dor interminável, nos tornamos seus prisioneiros. Para escapar
ao tédio buscamos refúgio na religião e no romantismo. Mas, nada disso é
amor. No verdadeiro amor não existe continuidade; ao contrário do
intelecto, o amor ignora o amanhã e o futuro. A memória nasce do
passado, mas o amor é livre da tirania do tempo e desconhece a promessa,
a esperança ou o desespero porque o amor é sempre amor. O cérebro nem
mesmo chega a imaginar o que seja o amor pois este não tem nada a ver
com nenhuma crença, religião ou sentimento e está fora de seus limites.
Ao findar o conhecido nasce o verdadeiro amor.
A ação baseada no raciocínio é geradora de conflito e sofrimento.
‘Aquela’ força vem da meditação, não da vontade; a vontade implica
resistência, confusão e sofrimento. Ao surgir o estado da pura
observação, no qual a inveja, a ambição e a avidez espontaneamente
deixam de existir, seremos aquele estado que é a própria humildade, no
qual a morte (do ego, do passado) se transforma em vida e, dessa
transformação surge o amor.
“Sua intensidade, de tão forte, tornava inúteis as tentativas do intelecto de ajustá-la a suas fantasias ou crenças”.
A imobilidade do cérebro, decorrente de sua sensibilidade, deve ser sem
motivo, sem busca de recompensa, sem esforço, não proposital,
espontânea portanto (somente pela sua própria sensibilidade aguçada). No
estado de atenção consciente, desperto, cessa a origem do pensamento (o
eu), de modo natural e espontâneo, sem nenhum esforço, controle ou
disciplina.
O que destrói aquela energia é a ambição, a inveja e a avidez, que
produzem conflito e sofrimento. Ao motivar uma ação, a inveja anula essa
energia, pois traz consigo insatisfação, dor e medo, este seguido do
sentimento de culpa, da ansiedade e das aflições nascidas da comparação e
do desejo de imitar.
Ao tentar ir além de seus próprios limites, coisa que lhe é impossível,
o pensamento se torna especulativo, fantasioso, cheio de ilusões e
vazio de significado. E, ainda que decifre seu próprio enigma, ele é
incapaz de penetrar nos mistérios da meditação, pois esta, para existir,
depende do findar do pensamento.
O cérebro é instrumento de surpreendente sensibilidade. Incansável em
sua atividade de captar, registrar, interpretar e acumular impressões e
informações, ele jamais pára de funcionar. Herdando do animal o instinto
de sobrevivência e a busca de segurança física, o cérebro criou todas
suas atividades e projeções, tais como um deus, a virtude, a moral, a
ambição, os desejos, as exigências e os ajustamentos. Com sua capacidade
de pensar, dedica-se ao cultivo do tempo, do passado, do presente e do
futuro. Com isso, ele tem a oportunidade de adiar a ação, de buscar a
satisfação, de imaginar que tem continuidade através da busca do ideal e
do preenchimento. Disso nasce a frustração, a dor, a fuga na crença, na
religião, na promessa do céu, nas múltiplas formas que idealizou para
sua segurança. A morte e o medo estão sempre presentes, levando o
intelecto a ter esperança e refúgio em crenças sem base e conceitos
racionais ou irracionais. Hábil ou experiente, profundo ou erudito, o
pensamento é sempre superficial. Acostumado a pensar e a reagir em
termos de opostos, o cérebro vive no conflito e na confusão, que são
origem de mais sofrimento.
O cérebro não pode compreender a vida integral. Essa compreensão nasce
de sua absoluta imobilidade, sem que ele esteja adormecido ou embotado
pela disciplina ou pelo controle, ou hipnotizado. Quando cessarem de
existir o julgamento, a comparação, a avaliação, nascerá aquele
insondável mistério. O estado de atenção, consciente e total, destrói a
origem de todo pensamento, de modo espontâneo e natural, sem violência
nem esforço.
“De novo, sentia-se a paz verdadeira, inacessível ao pensamento. Para
que a paz se torne real é preciso que o homem, tal como é, deixe de
existir”. (Somente é possível experimentar aquela bênção, dentro e fora
de nós, quando há o natural e completo esvaziamento do conteúdo
cerebral. Quando o eu não existe, Deus existe. Ou, “Aquieta-te e sabe:
eu sou Deus”.)
A tagarelice incessante, que o cérebro vive, deve cessar, para que do
vazio assim criado venha a correta resposta às questões imediatas,
resposta oriunda da ausência de reação (do ego). Toda manifestação do
pensamento serve apenas para prolongar o desespero e a agonia dos
problemas que, assim, se prolongam no tempo e se tornam insolúveis. A
resposta correta, definitiva, está além do intelecto (além do ego). A
quietude do cérebro nasce de seu vazio, que não é estado de vácuo ou de
apatia, mas um estado de tremenda energia.
O tempo cronológico é real, mas o tempo psicológico, é ilusão; não
passa de coisa falsa, inútil invenção da mente do homem. Por depender,
ilusoriamente, do tempo para realizar a transformação interior, o
pensamento enreda-se num círculo vicioso pois não consegue realizar
transformação nenhuma; apenas consegue fazer a continuidade modificada
do que já era. Desse modo, o pensamento se torna lerdo, preguiçoso,
deixando a ação sempre para depois, porque acredita no processo gradual
do tempo e nos ideais (‘no futuro, farei isso’). O tempo é necessário,
por exemplo, para se aprender uma técnica, para irmos de um lugar para
outro; mas todas suas outras necessidades são ilusórias.
O estado de atenção, sem o qual não há mutação, produz uma ação nova,
que não se transforma em hábito, nem na repetição de uma sensação, de
uma experiência, ou conhecimento; tudo isto embota o cérebro, tornando-o
insensível e incapaz de sofrer a mutação.
A virtude não é consequência da escolha de determinado hábito, ou
conduta mais correta. Sem qualquer restrição, ela não segue nenhum
padrão social de respeitabilidade, nem alguma forma de ideal. A mutação
só acontece quando negamos o hábito, a tradição, as reformas, os ideais e
tudo o que é transitório. Só na quietude do cérebro se realiza a
verdadeira e radical mutação.
Qualquer oração é totalmente sem sentido. Instintivamente, nos momentos
de crise, lembramo-nos da prece para pedir a solução de problemas,
dores, ou para ter uma vantagem qualquer. Dirigido aos deuses criados
pela mente do homem, o apelo contido na prece pode ser, às vezes,
satisfeito por coincidência, fato que é tido, em geral, como prova da
existência daquele deus. Mas, apesar das orações e súplicas, o homem
continua a sofrer, o que faz o cérebro e o corpo se esgotarem,
tornando-se insensíveis e sem energia.
A ilusão surge quando a realidade perde seu significado, quando a
mente, atordoada, por ter sucumbido às influências e aos hábitos e por
estar sempre em busca de segurança, torna-se indiferente perante a real
beleza do mundo que nos cerca. A busca de segurança através do poder, do
prestígio, do conhecimento ou das relações, ou da influência do poder
de outrem, destrói a sensibilidade e concorre para a deterioração do
cérebro.
http://obuscadordedeus.blogspot.com
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