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domingo, 5 de janeiro de 2020

MOMENTOS DE REFLEXÃO


Com Alexandre Jollien

Ao desejar boa-noite aos meus filhos, gosto de me lembrar que abraço seres que um dia vão morrer. Assim me lembro do presente excepcional que me é dado e saboreio a alegria de passar tempo na companhia deles. Tento também reverter meu olhar para considerar cada encontro, por mais banal que pareça, como um milagre, um lugar de ensinamento. E nunca deixo de me maravilhar diante da riqueza dos seres humanos. No metrô, penso que nunca mais vou cruzar com esse mendigo que está ao lado desse executivo. Esse instante nunca mais se produzirá. Fechar os olhos às dádivas do cotidiano é passar ao lado da alegria e viver pela metade. 

A vida sem porquê ainda é algo presente e essencial. O que me parece fundamental é ousar um abandono total à providência, aproveitar uma verdadeira generosidade e, en­fim, deixar vir o que está por vir. A cada vez que sofro, a cada vez que me agito por nada, minha mulher me lembra o título de meu livro, Viver sem Porquê.
 
Somos convidados a viver e a renascer de instante em instante.

Quem não está habituado a viver a fundo encontrará, ao descer ao coração de si mesmo, fantasmas, medo e este espectro que hoje ameaça: o tédio. No fundo, devemos talvez reaprender uma vida menos programada, menos perdida nas preocupações do cotidiano, uma vida em que vivamos a partir do íntimo, o que há de mais sagrado em nós.

Um mestre zen me dizia que 99% das opiniões que tenho em relação a mim e à realidade são uma ilusão total. E é verdade, quando examinamos nossas verdadeiras motivações, percebemos que é bem mais complicado do que parece. E aqui também trata-se de um trabalho alegre, o de ir em busca de todas as mentiras interiores para se apoiar no real. O conhecimento de si mesmo é um trabalho imenso. Portanto, não se trata de atingir o fim do caminho para ser feliz. Ao contrário, tomar consciência de minhas alienações é uma alegria em si.

O primeiro passo para a verdade em si é talvez enxergar sem julgar tudo o que nos habita: os fantasmas, as fantasias, os medos, os demônios, as lembranças, os traumas. Parar de temer todo esse amontoado passional, para colher tudo isso como uma expressão da vida. Mais nos julgamos, mais nos condenamos, mais matamos as forças que poderiam nos levar ao progresso e ao amor puro. Se pela manhã vestimos uma roupa e encenamos um personagem, se mentimos em permanência, nos privamos do contato com a realidade, que é um apoio fabuloso mesmo se trágica, e que nos possibilita avançar.

En­fim, o que me ajuda pessoalmente é tentar viver sem porquê, aqui e agora; pouco a pouco, abandonar os objetivos que não são essenciais e o peso da opinião dos outros. Também ousar atos gratuitos. Ajudar os outros não para que eles nos recompensem, mas para progredir verdadeiramente na paz, na alegria e no amor.

Querer ser perfeito é o ápice do orgulho, e querer avançar e criar solidariedade num mundo imperfeito é um desafio alto e nobre.

Para ir ao fundo, é preciso se desvencilhar, pois a felicidade está relacionada ao despojamento, a uma liberação, não a uma conquista. Não se trata de acrescentar o novo, mas sobretudo de se despojar daquilo que nos impede de ser livres e de amar.

Eu prefiro o termo liberação do que liberdade. Pois a liberação é o fruto de um processo, de uma ascese interior. Além disso, entendemos a liberdade como o fato de fazer o que queremos. A liberação exige que paremos de viver o cotidiano sob o signo do piloto automático, que cessemos de ser o brinquedo de nossas paixões, a marionete de nossos desejos inconscientes para, passo a passo, crescermos e nos tornarmos menos escravos.O que contraria nosso acesso à felicidade vem precisamente de que fazemos disso uma ideia preconcebida, limitada, rígida. A partir do momento em que nos ­fixamos em algo, numa imagem de nós mesmos e da felicidade, renunciamos, nos privamos da alegria dada a cada instante pelo cotidiano.

Deixar que passe. O Zen nos convida a não considerar a emoção como uma adversária. A prática espiritual consiste então em não subir mais no trem das emoções perturbadoras, mas olhar os vagões passarem: “Olhe, esta é a minha raiva”, “Olhe, este é o meu medo”. Ousar não se fixar em nada permite atravessar as tempestades sem se machucar. Não é grave que a raiva, o medo ou a tristeza venham me visitar. Tomara que nunca se instalem no coração. Portanto, mil vezes por dia deixar que passem...

Desde o momento em que pego o metrô, ainda que eu queira ter paz, sempre há algo para atrapalhar. São várias bofetadas, uma após a outra, mas, precisamente, tudo pode ser um chamado à prática, uma ocasião para me descentrar e me lembrar de que não sou o que os outros percebem de mim. Mais um passo e posso me alegrar por ser ridicularizado...

Isso quer dizer deixar de oferecer o ego como alvo dos elogios e dos sarcasmos.

Desobstruir o templo da nossa mente. Por muito tempo acreditei que a felicidade provinha da conquista. Hoje, acredito mais que se trata de desembaraçar. Em vez de acumular competências ou conhecimentos, tiremos aquilo que nos pesa: hábitos, reflexos, medos, avidez... A pepita da felicidade, a verdadeira alegria se encontra sob toneladas de lama. Portanto, vamos jogar fora o inútil e considerar os obstáculos da vida como meios hábeis para chegar lá.

Descansar nessa paz imensa é morrer da grande morte para renascer mais vivo, novo. Por muito tempo, acreditei que somente os santos e sábios tinham direito a isso. Mas a ascese talvez seja muito mais simples do que parece. Cem vezes por dia, posso me exercitar em deixar morrer o pequeno eu, deixar um pouco de lado o mundo das ideias. O silêncio, como a natureza da nossa mente, não pode ser manchado. Podemos berrar, insultá-lo da pior forma, nada pode perturbá-lo. Do mesmo modo, no âmago mais profundo, permanece uma parte sempre indene, que nenhum golpe do destino pode estragar. Cada um de nós, por mais ferido que esteja, pode mudar, descer até essa alegria.

O exercício é simples: identificar, para desarraigá-lo, esse hábito de se colocar no centro, sempre e acima de tudo, de nunca instrumentalizar o outro, mas amá-lo verdadeiramente. Um dia um monge me disse sem rodeios: “Estar verdadeiramente desperto consiste em não relegar mais os outros a um segundo plano, deixar de se atribuir privilégios sobre os outros seres animados”. Santo trabalho...

Toda vez que me limito a uma representação, a uma imagem que crio dentro de mim, estou sofrendo.

A sabedoria se enraíza em uma arte de viver, em exercícios espirituais praticados todos os dias.

https://obudaemmim.blogspot.com 

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