Translate

sábado, 18 de janeiro de 2020

ANALISANDO O SOFRIMENTO


Há o enorme fato do sofrimento, que o homem nunca foi capaz de superar; ele pode fugir do sofrimento por meio da bebida, das várias formas de fuga, mas isso não é superação, isso é evitar. Então há o fato - como o fato da morte, como o fato do tempo - você consegue olhar para ele em completo silêncio? Você consegue olhar para o seu sofrimento em completo silêncio? - não que a coisa seja tão grande, de tal magnitude, de tal complexidade, que force você a ficar quieto, mas o contrário; consegue olhar para o fato, sabendo-lhe a magnitude, sabendo o quão extraordinariamente complexa é a vida, o viver e a morte? Consegue olhar para ele de modo completamente objetivo e em silêncio? Penso que essa é a solução. Uso o termo “penso” com certa hesitação, mas realmente essa é a única solução.

O que é que diz: "Estou sofrendo", "Sou um infeliz", "Tenho passado dias em conflito, em sofrimento, em desespero sem fim"? O que é a coisa que fica a repetir: "Não consigo dormir, não tenho estado bem", "Sou isso, sou aquilo", "Estou infeliz", "Você não olhou para mim", "Você não me amou" – o que é essa coisa que continua falando para si mesma? Certamente, é o pensamento. Voltamos à coisa principal, o pensamento, que buscou prazer e ficou frustrado, o qual se queixa: "perdi uma pessoa a quem eu amava e estou só, estou infeliz, profundamente triste", que é autopiedade, é ter pena de si mesmo.

O sofrimento nos acompanha qual a nossa sombra, e parece que não somos capazes de resolver isso...
 
O sofrimento tem um fim, mas ele não acontece por meio de nenhum sistema ou método. Não há nenhum sofrimento quando há percepção do “que é”. Quando você vê muito claramente “o que é” – seja o fato de que a vida não tem realizações, o fato de que o seu filho, o seu irmão, ou o seu marido está morto; quando você vê o fato como ele realmente é, sem interpretação, sem ter uma opinião sobre ele, sem nenhuma ideação, ideal ou julgamentos, então penso que o sofrimento termina.

Quando há sofrimento, ele constitui um grande choque para o sistema nervoso, como uma pancada em todo o ser fisiológico e psicológico. Geralmente tentamos fugir dele tomando drogas, bebendo, ou por meio das várias formas de religião, nos tornamos céticos ou aceitamos as coisas como inevitáveis.
 
Será que podemos examinar essa questão profundamente, com seriedade? É possível não fugir do sofrimento? Talvez meu filho morra, e há um pesar, um choque imenso, e descubro que sou realmente um ser humano muito solitário. Não consigo encarar isso, não posso tolerar. Então fujo da dor. E há muitos tipos de fuga – mundana, religiosa ou filosófica. Essa fuga é desperdício de energia. Não fugir de forma alguma do sofrimento, da dor da solidão, do pesar, do choque, mas permanecer completamente com o evento, com essa coisa chamada de sofrimento – isso é possível? Podemos permanecer com qualquer problema – mantê-lo sem tentar resolvê-lo – tentar olhar para ele como se segurássemos uma bela e preciosa joia? A própria beleza da joia é tão atraente, tão prazerosa, que ficamos olhando para ela. Do mesmo modo, se pudermos segurar a nossa dor completamente, sem um movimento de pensamento ou de fuga, então essa própria ação de não se afastar do fato traz consigo uma libertação total daquilo que causou a dor.

Pode-se permanecer com essa dor? Posso olhar para aquela dor, segurá-la, conservá-la como uma joia preciosa – não fugir, não suprimir, não a racionalizar, não procurar sua causa, mas guardá-la como um vaso guarda água? Mantenha essa coisa chamada sofrimento, a dor, que é “eu perdi o meu filho e estou só”, não fugir dessa solidão, não a suprimir, não a racionalizar, mas olhar para essa solidão, compreender sua profundidade, sua natureza. 

Não se deve dar fim ao sofrimento pela ação da vontade. Por favor, compreenda isso. Você não pode “livrar-se” disso. O sofrimento é algo que precisa ser abraçado, é preciso viver com ele, compreendê-lo; a pessoa precisa ficar íntima do sofrimento. Mas você não é íntimo do sofrimento, é? Você pode dizer: “Conheço o sofrimento”, mas conhece realmente? Você viveu com ele? Ou, ao sentir o sofrimento, você fugiu dele? De fato, você não conhece o sofrimento. O que você conhece é a fuga. Você só conhece a fuga ao sofrimento.
 
Assim como o amor não é coisa para ser cultivada, para ser adquirida mediante disciplina, também não se pode dar fim ao sofrimento mediante nenhuma forma de fuga, de cerimônias ou símbolos, mediante o trabalho social dos “bons samaritanos”, mediante o nacionalismo, ou mediante qualquer uma das coisas horríveis que o homem inventou. O sofrimento tem de ser compreendido, e a compreensão não é do tempo. 

Todos nós conhecemos a dor física – muito ou pouco – e podemos lidar com ela com remédios ou de outras formas. Você pode observar a dor com uma mente que não esteja apegada, com uma mente capaz de observar a dor física como que de fora. Pode-se observar a dor de dente e não ficar envolvido nela emocionalmente, psicologicamente. Quando você está envolvido emocional e psicologicamente com essa dor de dente, a dor aumenta; você fica terrivelmente ansioso, temeroso. Não sei se você já notou esse fato.
 
O importante é ficar cônscio da dor física, fisiológica, biológica, e, nesse percebimento, não se deixar envolver com ela psicologicamente. Estar cônscio da dor física – e do envolvimento psicológico nela que intensifica a dor e causa ansiedade, medo – e manter completamente afastado o fator psicológico, exige muita percepção, certa qualidade de distanciamento, certa qualidade de observação desapegada. Então, essa dor não distorce as atividades da mente; então essa dor física não causa atividade neurótica na mente.

O sofrimento perverte e distorce a mente. O sofrimento não é o caminho da verdade, para a realidade, para Deus, ou o nome que você quiser lhe dar. Temos tentado enobrecer o sofrimento, dizendo que ele é inevitável, necessário, que traz entendimento, e tudo o mais. Mas a verdade é que, quanto mais intensamente você sofre, maior o desejo de fugir, de criar uma ilusão, de encontrar um meio de fuga. Então, parece que uma mente sã, saudável, precisa compreender o sofrimento e ser totalmente livre dele. Será que isso é possível?  

A mente que está sofrendo torna-se, obviamente, insensível, pois o sofrimento é sua ocupação; a mente usa o sofrimento como meio de autoproteção. O meu filho morre, ou morre o meu marido, e fico só; não tenho quem me faça companhia, e sinto que a minha vida foi apagada. Então, continuo sofrendo, e a minha mente não está preocupada em ficar livre do sofrimento; de fato, faço do sofrimento outro meio de existência. A mente usa o sofrimento, como usa a alegria, para se enriquecer, porque a mente pensa que, sem estar ocupada, ela é pobre, ela é vazia, embotada. Essa mesma ocupação da mente cria sua própria destruição. O sofrimento não é coisa com a qual se deva ocupar, tampouco a alegria. 

A mente precisa compreender por que existe sofrimento, em vez de continuar ocupada com o sofrimento. A mente deseja segurança, esteja ela sofrendo ou feliz. Assim, o sofrimento torna-se um meio de segurança. O que estou dizendo não é uma coisa cruel, pois, se você pensar nisso, se você o investigar, perceberá como a mente prega peças em si mesma. Só a mente desocupada é inteligente, é sensível.

Dar fim ao sofrimento é encarar o fato da solidão, do apego, da exigência insignificante de fama, a fome de ser amado; é ficar livre da preocupação e da infantilidade que é a auto-piedade. E quando a pessoa já tiver ultrapassado tudo isso e talvez dado fim ao seu próprio sofrimento, haverá ainda o imenso sofrimento coletivo, o sofrimento do mundo. Pode-se dar fim ao próprio sofrimento encarando em si mesmo o fato e a causa do sofrimento – e isso precisa acontecer para que a mente fique completamente livre. Mas, quando tiver acabado com tudo isso, haverá ainda o sofrimento da extraordinária ignorância que existe no mundo – não a falta de informação, de conhecimento livresco, porém, a ignorância do homem sobre si mesmo. A falta de compreensão de si mesmo é a essência da ignorância, que provoca essa imensidão de sofrimento que existe por todo o mundo. Então, o que realmente é o sofrimento?
 
Não há palavras para explicar o sofrimento, como também não há palavras para explicar o que é o amor.

O sofrimento tem suas raízes na auto-piedade, e, para compreender o sofrimento, é preciso haver primeiro uma brutal operação na auto-piedade. Não sei se já observou quanta pena você tem de si mesmo, por exemplo, quando diz: “Estou solitário.” No momento em que há auto-piedade, você terá proporcionado o solo em que o sofrimento poderá deitar raiz. Por mais que você justifique sua auto-piedade, por mais que a racionalize, dê-lhe polimento, a encubra com ideias, ela ainda estará lá, supurando profundamente em você. Então, o homem que deseja compreender o sofrimento, precisa começar livrando-se dessa trivialidade brutal, autocentrada, egoística, que é a auto-piedade. Você pode ter auto-piedade porque tem uma doença, ou porque perdeu alguém por morte, ou porque não se realizou e, por isso, está frustrado, embotado; mas, qualquer que seja a causa, a auto-piedade é a raiz do sofrimento. E quando livre da auto-piedade, você poderá olhar para o sofrimento sem o adorar e sem fugir dele, ou sem dar a ele um significado sublime, espiritual, tal como dizer que você precisa sofrer para encontrar Deus – o que é completa tolice.

Uma das causas do sofrimento é o apego. Sendo apegados e descobrindo que o apego é doloroso, tentamos cultivar o desapego, que é outro horror. Por que a mente é apegada? O apego é uma forma de ocupação da mente. Se eu sou apegado a você, estou pensando em você, estou me preocupando com você. Estou preocupado com você do meu modo autocentrado porque não quero perdê-lo, não quero ser livre, não quero fazer algo que perturbe o meu apego. Nesse apego sinto-me um tanto seguro. Portanto, no apego há medo, ciúme, inveja, ansiedade, sofrimento. Agora, apenas olhe para isso. Não diga: “Que devo fazer?” Você não pode fazer nada. Se você tentar fazer algo a respeito do seu apego, então estará tentando criar outra forma de apego. Certo? Então, apenas o observe. Quando apegado a uma pessoa ou uma ideia, você domina essa pessoa, você quer controlar essa pessoa, você nega liberdade a essa pessoa. Quando você é apegado, nega totalmente a liberdade. Se eu for apegado a um ideal comunista, então levo destruição aos outros.
 
Se a mente vê que essa solidão, esse apego, é uma das causas do sofrimento, haverá possibilidade de a mente ficar livre do apego? 

O que queremos dizer com a palavra tristeza? Você vê uma criança de corpo saudável e rosto belo, de olhos brilhantes, inteligentes, e de sorriso feliz. Enquanto ela cresce, passam-na pela máquina chamada educação. Ela é obrigada a se conformar ao padrão daquela sociedade, e com isso aquela alegria espontânea de viver, é destruída. É triste ver tais coisas acontecerem, não é verdade? É triste perder alguém a quem você ama. É triste perceber que se respondeu a todos os desafios da vida de modo insignificante, medíocre. E não é triste quando o amor acaba numa pequena represa do vasto rio da vida? É triste também quando a ambição conduz você, e você alcança o que desejava – só para ficar frustrado. É triste compreender o quão pequena é a mente – não a mente de outrem, mas a sua própria. Conquanto ela possa adquirir grande quantidade de conhecimentos, possa ser muito engenhosa, perspicaz, erudita, a mente continua sendo coisa muito superficial, vazia; e a compreensão desse fato acarreta um sentimento de tristeza, sofrimento.
 
Mas há uma tristeza muito mais profunda do que essas – a tristeza que acompanha a compreensão da solidão, do isolamento. Embora esteja entre amigos, numa multidão, numa festa, ou falando com sua mulher ou seu marido, você subitamente se apercebe de uma vasta solidão; há um sentimento de isolamento completo, que traz sofrimento. E há também o sofrimento da saúde precária. 

Se você andar estrada afora, verá o esplendor da natureza, a extraordinária beleza dos campos verdes, dos céus abertos e ouvirá o riso das crianças. Mas, a despeito disso tudo, há uma sensação de dor. Existe a angústia de uma mulher carregando um filho; existe sofrimento na morte; há sofrimento quando você está esperando alguma coisa e ela não acontece; há sofrimento quando uma nação entra em decadência, se deteriora; e há o sofrimento da corrupção, não só no coletivo, mas também no individual. Há dor na sua própria casa, se você observar bem – a dor de não ser capaz de se realizar, a dor da sua própria insignificância ou incapacidade e várias dores inconscientes.  


Coletânea de citações de Krishnamurti
 http://legacy.jkrishnamurti.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário