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sábado, 2 de junho de 2018

SOBRE OS CONFLITOS


Como se pode observar na vida cotidiana, toda a relação com as pessoas, com as ideias, com as coisas, com o que se possui, está cheia de conflito. Todo relacionamento se tornou para nós um campo de batalha, uma luta constante.

Desde que nascemos até que morremos, viver é um processo de acumular problemas, sem nunca os resolver, de estar carregado de toda espécie de questões. É fundamentalmente um campo em que os homens estão uns contra os outros.

Assim, viver é conflito. Ninguém o pode negar. Quer nos agrade quer não, todos estamos em conflito. Como desejamos afastar-nos desse conflito permanente, inventamos então toda espécie de fugas — desde o futebol a uma imagem de Deus. Cada um de nós conhece, não só o fardo desse conflito, mas também o sofrimento, a solidão, o desespero, a ansiedade, a ambição e frustração, o imenso tédio, a rotina. Há ocasionais lampejos de alegria, a que a mente imediatamente se agarra, como algo muito raro, e que quer que se repita; depois, essa alegria torna-se uma lembrança, cinzas. É a isso que chamamos viver.

Se olharmos para a nossa própria vida — não verbalmente, ou intelectualmente, mas como ela é na realidade — veremos como é vazia. Pensem no que é passar quarenta, cinquenta anos indo todos os dias para o emprego, para juntar dinheiro, para sustentar a família, etc. É a tudo isso que chamamos viver — com a doença, com a velhice e com a morte. E tentamos fugir desse tormento por meio da religião, por meio da bebida, da erudição, do sexo, por meio de todas as formas de evasão religiosa ou de outra espécie. A nossa vida é isso, apesar de nossas teorias, dos nossos ideais, da nossa filosofia — vivemos em conflito e sofrimento.

A nossa vida dá origem a uma cultura, a uma sociedade que se torna a armadilha em que estamos prisioneiros. Somos nós que construímos a armadilha; cada um de nós é responsável por ela. Embora possamos revoltar-nos contra a ordem estabelecida, essa ordem é aquilo que temos feito, aquilo que temos construído. E a mera revolta contra ela tem pouquíssimo significado, porque se criará então uma outra ordem estabelecida, uma outra burocracia.

Tudo isto: as diferenças nacionais, raciais, religiosas, as guerras, o derramamento de sangue e lágrimas é o que chamamos vida; e não sabemos o que devemos de fazer. Estamos confrontados com isto. E não sabendo o que fazer procuramos fugir ou tentamos encontrar alguém que nos diga o que devemos fazer, alguma autoridade, algum guru ou instrutor espiritual, alguém que afirme: "este é que é o caminho."

Os instrumentos espirituais, os gurus, os mahatmas, os filósofos têm-nos orientado mal, porque, afinal, não temos resolvido realmente os nossos problemas; as nossas vidas não são diferentes. Continuamos atormentados, infelizes, carregados de sofrimento.

Sem sabermos o que é o sofrimento e sem compreendermos a sua natureza e estrutura, não saberemos o que é o amor, porque para nós o amor é sofrimento, aflição, prazer, ciúme. Quando o marido diz à mulher que a ama e ao mesmo tempo é ambicioso, será que esse amor tem algum significado? Um homem poderá amar? E apesar disso falamos de amor, de ternura, de acabar com as guerras, quando afinal somos competitivos, ambiciosos, procurando o nosso avanço pessoal, a nossa posição, etc... Tudo isso traz sofrimento.

O sofrimento poderá acabar? Só poderá acabar quando a pessoa compreender a si mesma — que é realmente aquilo que é. Então compreenderá por que é que sofre, quer esse sofrimento seja autopiedade, seja medo de estar só, seja o vazio de sua própria existência ou o sofrimento que surge quando se depende de outro. E isto faz parte de nossa vida.

Emocionalmente somos inautênticos, deformados, cheios de sentimentalismo, falsidade, hipocrisia e intelectualmente estamos limitados. Assim, na vida, perdemos toda a liberdade, exceto no sexo. Essa é provavelmente a única coisa livre que se tem. E com ele anda o prazer, a imagem que o pensamento cria a respeito do ato, e ruminamos essa imagem, esse prazer, como uma vaca mastiga repetidamente o alimento. É a única coisa que se tem em que a pessoa se sente realmente livre como ser humano. Em tudo o mais não é livre, porque somos escravos da propaganda(...) E, faltando a liberdade por todo o lado, apenas existe essa, que também não é liberdade, porque fica-se aprisionado pelo prazer e pela responsabilidade desse prazer, que é a família. Mas se realmente amassem a família, se realmente se amassem os filhos, de todo o coração, haveria um único dia de guerra?

Encontra-se segurança no prazer e por consequência nessa "segurança" há dor, tristeza e confusão; dessa maneira, em tudo, incluindo o sexo, há sofrimento, tortura, dúvida, ciúme, dependência. A única coisa que se tem em que a pessoa se sente livre também se torna uma escravidão.

Assim, ao vermos tudo isto — de fato, não verbalmente, sem sermos desviados pela descrição, porque a descrição nunca é o que é descrito — ao vermos com os nossos olhos, coração e a mente, com completa atenção, saberemos o que é o amor. E saberemos também, o que é a morte e o que é a vida.


Krishnamurti, em O Mundo Somos Nós
http://ventosdepaz.blogspot.com
 

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