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domingo, 10 de junho de 2018

O AMOR É O SUPREMO ESTADO 
DE INCERTEZA


Parte I

Se me é permitido, desejo falar sobre um assunto que me parece muito importante. Não se trata de nenhuma ideia, conceito, ou fórmula para ser posta em prática, porque conceitos, fórmulas, ideias, impedem efetivamente a compreensão dos fatos tais como são. Por “compreender um fato” entendo observar uma atividade, um movimento de pensamento ou de sentimento, e perceber o seu significado no momento da ação. A percepção de um fato, tal como é, deve verificar-se no momento da própria ação; e, se não compreendermos profundamente os fatos, estaremos sempre sendo perseguidos pelo medo.

Penso que quase todos levamos essa enorme carga de medo, consciente ou inconsciente. E, nesta manhã, desejo examinar este problema convosco, para ver se podemos despertar uma compreensão total do medo e causar, assim, sua completa dissolução, de modo que, ao sairmos daqui, estejamos verdadeira e efetivamente livres do medo. Assim sendo, permiti-me sugerir-vos que escuteis tranquilamente, sem estardes argumentando interiormente comigo. Iremos argumentar, permutar palavras, verbalizar nossos pensamentos e sentimentos dentro em pouco. Mas, por ora, fiquemos escutando, em certo sentido, negativamente, isto é, com total neutralidade no ato de escutar. Escutai, apenas. Eu vos estou comunicando alguma coisa — vós nada me comunicais. Para compreenderdes o que desejo transmitir-vos, deveis escutar — e no próprio ato de escutar tereis a possibilidade de comungar com o orador.

Infelizmente, a maioria de nós é incapaz desse escutar negativo, silencioso, não só aqui, mas também em vossa existência de cada dia. Quando saímos a passeio, não ouvimos os pássaros, o ciciar das árvores, o murmúrio do rio; não escutamos as montanhas, nem os céus distantes. Para estardes em comunhão direta com a natureza e com outras pessoas, deveis escutar; e só podeis escutar quando estais negativamente silencioso — isto é, escutando sem esforço, sem atividade mental, sem verbalizar, argumentar, discutir.

Não sei se já alguma vez experimentastes escutar de maneira completa vossa esposa ou marido, vossos filhos, o carro que passa, o movimento dos próprios pensamentos e sentimentos. Nesse escutar nenhuma ação existe, nenhuma intenção, nenhuma interpretação; e esse ato de escutar produz uma grande revolução na raiz mesma da mente.

Mas, em geral, não estamos acostumados a escutar. Se escutamos algo contrário ao nosso pensar habitual, ou se é atacado um dos nossos ideais favoritos, ficamos terrivelmente agitados. Temos “interesses adquiridos” em certas ideias e ideais, assim como os temos em propriedades e em nossa própria existência e conhecimentos, e quando vemos ser impugnada qualquer dessas coisas, perdemos o equilíbrio, a serenidade, resistimos a tudo o que se diz.

Ora, se desejais realmente escutar, esta manhã, o que se está dizendo, escutar sem percebimento vigilante e sem escolha, cumpre seguir o orador, não verbalmente — isto é, sem análise discursiva — e, por conseguinte, vos moveis em harmonia com o significado transcendente da palavra. Isso não equivale a pôr-se a dormir, ou encontrar-se num estado beatifico de sentimentalidade, grato ao “eu”. Pelo contrário, o escutar exige plena atenção — que não é concentração. Estas duas coisas são totalmente diferentes. Se escutais atentamente, talvez possamos — vós e eu — alcançar aquelas grandes profundezas onde se encontra a criação. E isso, sem dúvida nenhuma, é essencial; porque a mente superficial, ansiosa, sempre ocupada com múltiplos problemas, não pode compreender o medo, uma das coisas fundamentais da vida. Se não compreendemos o medo, não haverá nenhum amor, não existirá criação — não o ato de criar, porém aquele estado de criação eterna, o qual não pode ser expresso em palavras, quadros, livros.

Assim, temos de estar livres do medo. O medo não é uma abstração, uma simples palavra — embora para a maioria de nós a palavra se tenha tornado mais importante do que o fato. Não sei se já pensastes em libertar-vos total e completamente do temor. Isso pode ser feito de maneira tão completa que não haverá mais “sombra” de medo, porque a mente estará sempre à dianteira do fato. Isto é, em vez de preocupar-se com o medo e tentar vencê-lo depois de manifestar-se, a mente está à sua dianteira, e por conseguinte livre dele.

Para compreender o medo, cumpre examinar a questão da comparação. Porque comparamos? Em matéria técnica, a comparação revela progresso, que é coisa relativa. Há cinquenta anos, não havia bomba atômica, não havia aviões supersônicos, mas agora temos essas coisas; e daqui a mais cinquenta anos teremos outras que atualmente não temos. Isso se chama progresso, o qual é sempre comparativo, relativo, e nossa mente está enredada nessa maneira de pensar. Não apenas “por fora”, por assim dizer, mas também “por dentro”, na estrutura psicológica de nosso ser, pensamos comparativamente. Dizemos “sou isto, fui aquilo e serei diferente no futuro”. A esse pensar comparativo chamamos progresso, evolução, e todo o nosso comportamento — moral, ético, religioso, nas relações profissionais e sociais — nele se baseia. Observamo-nos comparativamente em relação a uma sociedade que é o produto dessa mesma luta comparativa.

Ora, a comparação gera medo. Observai este fato em vós mesmo. Desejo ser melhor escritor, ou pessoa mais bela e inteligente. Desejo possuir mais saber do que outrem; desejo ter muito êxito, tornar-me pessoa importante, ter mais fama no mundo. O sucesso e a fama são, psicologicamente, a vera essência da comparação, com a qual estamos constantemente criando medo. E a comparação dá também nascimento ao conflito, à luta — que se considera coisa muito respeitável. No vosso sentir, deveis estar em competição, para poderdes subsistir neste mundo, e assim comparais e competis nos negócios, na família, nos chamados assuntos religiosos. Precisais de alcançar o céu para sentardes ao lado de Jesus — ou quem quer que seja vosso particular Salvador. O espírito de comparação se reflete no vigário — que quer tornar-se arcebispo, cardeal e, por fim, papa. Esse mesmo espírito nós outros cultivamos diligentemente durante a nossa vida, lutando para nos tornarmos melhores ou para alcançarmos posição mais alta do que outro. Nossa estrutura social e moral nisso se baseia.


Krishnamurti, A mente sem medo
http://pensarcompulsivo.blogspot.com 

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