Anteontem…
Sentia-me eu possuído dum grande idealismo.
Indômita coragem enchia-me o coração.
Sentia-me eu possuído dum grande idealismo.
Indômita coragem enchia-me o coração.
Estava disposto a sofrer por ti, Senhor, afrontas e ludíbrios em praça pública.
Invejava os mártires do Coliseu, dilacerados pelos leões da Mesopotâmia e pelas panteras da Numídia.
Suspirava pela sorte dos heróis que, entre hinos e sorrisos, subiam às fogueiras ou se estendiam nas rodas de suplício.
Quem me dera sair pelo mundo afora a pregar o Evangelho a povos bárbaros!
Tão grande era o idealismo e a sede de sofrimento que me ardia na alma, que insípidas e vergonhosas me pareciam essas vinte e quatro horas da vida cotidiana.
Assim foi anteontem…
Assim foi anteontem…
Ontem…
Quando acordei, chamei a empregada para me trazer o café e o jornal.
Quando acordei, chamei a empregada para me trazer o café e o jornal.
E ela me trouxe, mas não me disse “bom dia” – e encheu-se de ira o coração…
E por que não deu o jornal o meu nome entre os benfeitores do Abrigo Cristo Redentor? Não sabe que contribuí com dez milhões de cruzeiros?
E por que me apelida essa revista ilustrada de “senhor”, quando eu sou “doutor”?
O cigarro que mandei comprar era de qualidade inferior – e transbordou-me a bílis, enchendo-me de fel as vias do sangue.
Ao sair de casa, verifiquei que faltava um botão da camisa – e taxei de relaxada a companheira da minha vida.
Ao tomar o ônibus, encontrei-o superlotado – e mandei ao inferno a empresa com todos os seus funcionários.
Assim foi ontem…
Assim foi ontem…
Hoje…
Fui intimado a comparecer às barras do tribunal…
Sobre a cátedra de juiz estava sentada a Consciência, calma, serena, austera.
Fui intimado a comparecer às barras do tribunal…
Sobre a cátedra de juiz estava sentada a Consciência, calma, serena, austera.
E eu, no banco dos réus, humilde, sincero, confuso…
E, abrindo os lábios, disse a Consciência, inexorável:
E, abrindo os lábios, disse a Consciência, inexorável:
“Tu, que sonhas com os feitos heroicos – sucumbes a uma ninharia?
Tu, que queres lutar com leões e panteras – capitulas em face de uma mosca?
Tu, disposto a derramar o sangue por amor do Cristo – ignoras o á-bê-cê da caridade?…”
Eu, de olhos baixos e coração pequenino, ouvia, calado…
“Não exijo de ti” – prosseguiu a Consciência – “que tomes entre dois dedos o Corcovado e o jogues às águas da Guanabara – mas exijo que seja senhor dos teus nervos, e não te reduza a escravo dos teus escravos.
Exijo de ti o menor e o maior de todos os sacrifícios: que suportes, sereno, calmo, amável, as vinte e quatro horas de cada dia…
Huberto Rohden
Huberto Rohden
http://www.samsabel.com
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