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quinta-feira, 14 de junho de 2018

COMPREENDER O SOFRIMENTO
É VIVER COM ELE


"Nós não podemos mudar nada
sem que primeiro a aceitemos".
(Carl Jung)

Parte II

Pois bem; observai um cérebro superficial — ou mente; notai, por favor que, quando digo "mente" ou "cérebro", refiro-me à mesma coisa. Outro dia estivemos considerando a distinção entre "mente" e "cérebro", mas tal distinção é só verbal, sem importância. Empregarei a palavra "mente" e espero que sigais e compreendais o que irei dizer.

A mente superficial não pode resolver este problema do sofrimento, porque sempre procura evitar o sofrimento. Foge ao fato — o sofrimento — por meio de uma reação fácil e imediata. Se tendes uma forte dor de dentes, naturalmente, logo tratais de procurar o dentista, porque desejais livrar-vos dessa dor física; e isso é uma reação normal e correta. Mas, a dor psicológica é muito mais profunda e sutil, e não há médico, não há psicólogo, não há nada que possa extingui-la. No entanto, vossa reação instintiva é fugir dela. Tratais de ligar o rádio, de ver televisão, de ir ao cinema — sabeis quantas distrações a civilização moderna inventou. Qualquer espécie de entretenimento, seja uma cerimônia religiosa, seja uma partida de futebol, é essencialmente a mesma coisa. É mera fuga à vossa aflição, ao vosso vazio interior; e é isto o que estamos fazendo em toda a parte: buscando em diferentes formas de entretenimento o auto esquecimento.

E, também, é a mente superficial que procura explicações. Diz: "Desejo saber por que sofro. Por que devo eu sofrer, e vós não?" Está apercebida de não ter praticado, na vida, nenhuma iniquidade e, assim, aceita a teoria de vidas passadas e a ideia disso que na Índia se chama karma — causa e efeito. Diz ela: "Pratiquei antes alguma ação injusta, e agora estou pagando por ela"; ou "Estou agora fazendo algo de bom, e colherei no futuro os correspondentes benefícios". E assim que a mente superficial se deixa enredar nas explicações.

Observai, por favor, vossa própria mente, observai como vos livrais de vossos sofrimentos com explicações, como vos absorveis no trabalho, em ideias, ou vos apegais à crença em Deus ou numa vida futura. E, se nenhuma explicação ou crença tiver sido satisfatória, recorreis à bebida, ao sexo, ou vos tornais mordaz, duro, acrimonioso, melindroso. Consciente ou inconscientemente, é isso o que de fato ocorre com cada um de nós. 

Mas, a ferida do sofrimento é muito profunda. Ela vem sendo transmitida de geração em geração, de pais a filhos, e a mente superficial nunca retira a atadura que cobre essa ferida: ela não sabe, em verdade, o que é o sofrimento, não o conhece intimamente. Tem apenas uma ideia a seu respeito. Tem uma imagem, um símbolo do sofrimento, mas nunca se encontra com ele próprio; só se encontra com a palavra "sofrimento". Compreendeis? Ela conhece a palavra "sofrimento", mas não estou certo se conhece o sofrimento.

Conhecer a palavra "fome" e sentir realmente fome, são duas coisas muito diferentes, não? Quando sentis fome, não vos satisfazeis com a palavra "comida". Quereis comida — o fato. Ora, quase todos nos satisfazemos com palavras, símbolos, ideias, e com as nossas reações a essas palavras, de modo que nunca estamos em intimidade com o fato. Quando subitamente nos vemos frente-a-frente com o fato do sofrimento, isso nos causa um choque e nossa reação é a fuga a esse fato. Não sei se já notastes isso em vós mesmo. Tende a bondade de observar o estado de vossa própria mente e não fiqueis meramente escutando as palavras que estão sendo proferidas. Nunca nos encontramos com o fato, nunca "vivemos com ele". Vivemos com uma imagem, com a memória do que foi e não com o fato. Vivemos com uma reação.

Ora, se ao enfrentar o sofrimento a mente tem um motivo, isto é, se deseja fazer algo a respeito do sofrimento, não é possível compreendê-lo, assim como também não é possível haver amor, se há motivo para amar. Entendeis? Em geral, temos um motivo quando encaramos o sofrimento: desejamos fazer alguma coisa em relação a ele. Isto é, suponhamos que eu tenha perdido alguém, por morte; profundamente, psicologicamente, já não posso obter o que dessa pessoa desejava e vejo-me a sofrer. Se nenhum motivo tenho, ao olhar o sofrimento, ele é ainda sofrimento, ou coisa totalmente diferente?

Estais seguindo?

Digamos que meu filho morre, e eu estou a sofrer porque me vejo só. Nele eu depositara todas as minhas esperanças e, agora, todo o meu mundo desabou. Desejara estabelecer para mim próprio uma certa espécie de imortalidade, uma continuidade, através de meu filho; ele deveria herdar meu nome, meus haveres, continuar com o meu negócio e o acabar de tudo isso causou-me um choque. Ora, posso compreender o sofrimento em que me acho, se algum motivo existe, que me impele a olhá-lo? E, se existe, atrás do amor, algum motivo, isso é amor? Por favor, não concordeis comigo: observai-vos, apenas. Por certo, não deve haver motivo algum, se desejo compreender o sofrimento, se desejo descobrir a profundeza plena e a significação do sofrimento — ou do amor, pois os dois andam sempre juntos. A morte, o amor e o sofrimento são inseparáveis, estão sempre juntos, e também os acompanha a criação; mas, esta é outra questão, que examinaremos noutra oportunidade. Se desejo compreender com profundidade e por completo o fato do sofrimento, não posso ter um motivo a ditar minha reação ao fato. Só posso viver com o fato e compreendê-lo, quando nenhum motivo tenho. Entendeis?

Se vos "amo" porque podeis dar-me alguma coisa — vosso corpo, vosso dinheiro, vossa lisonja, vossa companhia, o que quer que seja — isso, por certo, não é amor, é? É claro que também vós obtendes algo de mim, e essa permuta, para a maioria de nós, se chama "amor". Sei que encobrimos isso com palavras bonitas, mas, atrás dessa fachada, está a ânsia de ter, possuir, ser dono.

Agora, sofrimento não é autopiedade? De certa maneira, fostes despojado de alguma coisa, vossas relações com outro redundaram em fracasso, não vos preenchestes no sentido de serdes reconhecido como pessoa importante, em atividades de reforma social, em atividades artísticas e tantas outras coisas mais — e todas as correspondentes frivolidades; assim, há sofrimento. Compreender o sofrimento é viver com ele, olhá-lo, conhecê-lo como realmente é; mas não tendes possibilidade de conhecê-lo quando o olhais com um motivo — que supõe o tempo. A mente superficial, incessantemente ocupada em melhorar-se, em lastimar-se, em torturar-se numa dada relação; desejosa de libertar-se do sofrimento sem enfrentar o fato — essa mente prosseguirá sofrendo indefinidamente. 
O fato é que estais sozinho. Em virtude de vossa educação, de vossas atividades, pensamentos e sentimentos, vos isolastes profundamente em vosso interior e não sois capaz de viver com esse extraordinário sentimento de solidão, não sabeis o que ele significa, porque dele sempre vos abeirais com uma palavra que desperta o medo.

Estais vendo a dificuldade — as maneiras sutis com que a mente preparou suas vias de fuga, tornando-se incapaz de viver com essa coisa extraordinária que chamamos "sofrimento". Para sermos livres do sofrimento é necessário compreender, consciente e inconscientemente, todo o seu "mecanismo" e isso só é possível vivendo-se com o fato, olhando-o sem motivo. Deveis perceber as manhas de vossa mente, suas fugas, as coisas aprazíveis a que estais apegado e as coisas desagradáveis de que desejais livrar-vos com rapidez. Cumpre observar o vazio, o embotamento e a estupidez da mente que só trata de fugir. E pouca diferença faz, se se foge para Deus, para o sexo, ou para a bebida, porquanto todas as fugas são essencialmente a mesma coisa. Compreendeis?

Que sucede quando perdeis alguém arrebatado pela morte? A reação imediata é uma sensação de paralisia, e ao saírdes desse estado vos encontrais com o sofrimento. Ora, que significa esta palavra — "sofrimento"? — A camaradagem, os colóquios ditosos, os passeios e tantas outras coisas agradáveis que fizestes e planejáveis fazer em companhia um do outro — tudo isso vos foi arrebatado num segundo e ficastes vazio, desamparado, sozinho. E contra isso que estais protestando, é contra isto que vossa mente se revolta: ter ficado subitamente a sós consigo, isolada, vazia, sem amparo. Ora, o que verdadeiramente importa é viver com esse vazio, com ele viver sem reação alguma, sem racionalizá-lo, sem dele fugir com recorrer a médiuns espíritas, à doutrina da reencarnação, e outras futilidades que tais; viver com ele, com todo o vosso ser. E se, passo a passo, examinardes bem o fato, vereis que há um findar do sofrimento — um findar real, e não simplesmente verbal, não o findar superficial, resultante de fuga, de identificação com um conceito ou devotamento a uma ideia. Vereis que nada há para proteger, porquanto a mente está toda vazia e já não reage no sentido de preencher o seu vazio; e quando assim o sofrimento termina completamente, tereis encetado uma outra jornada — jornada sem fim e sem começo. Existe uma imensidade que ultrapassa todas as medidas, mas nesse mundo não ingressareis sem a prévia e total extinção do sofrimento.  


Krishnamurti em, Experimente um novo caminho http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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