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domingo, 10 de junho de 2018

O AMOR É O SUPREMO ESTADO 
DE INCERTEZA


Parte II

Há, pois, em nossa vida, esse constante estado de comparação, competição, e a perene luta para sermos alguém — ou para sermos ninguém, o que vem a dar no mesmo. Isso, suponho, é a raiz de todo o medo, porquanto produz inveja, ciúme, rancores. Onde está o rancor, aí evidentemente não está o amor, e gera-se medo e mais medo.

Como disse, ficai só escutando. Não pergunteis: Como posso deixar de comparar? Que devo fazer para consegui-lo? — Nada podeis fazer para acabar a comparação. Se fizésseis alguma coisa, o vosso motivo seria também oriundo da comparação. O que podeis fazer é apenas perceber que essa coisa complexa chamada nossa existência é uma luta “comparativa”, e que se tentais atuar contra ela, se tentais alterá-la, de novo vos vedes apoderado do espírito comparativo, “competitivo”. O importante é escutar sem nada desfigurar; e desfiguramos o que estamos escutando ao desejarmos fazer algo a seu respeito.

Estamos, pois, vendo as implicações e o significado dessa avaliação comparativa da vida, e a ilusão de pensar que a comparação produz compreensão — comparação das obras de dois pintores ou de dois escritores; comparação de si próprio com outro menos inteligente, menos eficiente, mais belo, etc., etc. E pode-se viver neste mundo, tanto exterior como interiormente, sem comparar? Percebem o estado da mente que está sempre comparando — reconhecê-lo como fato e “deixar-se ficar” com esse fato — isso exige muita atenção. Essa atenção produz sua disciplina própria, a qual é extremamente flexível; não tem padrão, não é compulsiva, não é ato de controlar, subjugar, negar, na esperança de melhor compreender a questão do medo.

Essa atitude perante a vida, baseada na comparação, é um dos principais fatores de deterioração da mente, não achais? Deterioração da mente supõe embotamento, insensibilidade, declínio, e, portanto, completa falta de inteligência. O corpo se deteriora a pouco e pouco, porque vamos envelhecendo; mas a mente também se está deteriorando, e a causa desta deterioração é a comparação, o conflito, o esforço “competitivo”. A mente assemelha-se a um motor a funcionar com excesso de atrito: não pode funcionar adequadamente, e durante o seu funcionamento deteriora-se com rapidez.

Como vimos, a comparação, o conflito, a competição, não só danificam, mas também causam medo; e onde há medo, há obscuridade, e não existe afeição, compreensão, amor.

Pois bem, que é o medo? Alguma vez já vos vistes frente a frente com o medo, ou apenas com a ideia do medo? Há diferença entre as duas coisas, não? O fato real — o medo — e a ideia do medo são duas coisas totalmente diferentes. Em geral achamo-nos enredados na ideia do medo, numa opinião, num juízo, numa avaliação do medo, e nunca nos achamos em contato com o fato real — o temor em si. Isso precisa ser ampla e profundamente compreendido.

Tenho medo, por exemplo, de serpentes. Vi um dia uma serpente que me atemorizou, e essa experiência me permaneceu na mente como memória. Quando à noite saio a passeio, essa lembrança entra em função e já vou com medo de encontrar uma serpente; assim a ideia do medo se tornou mais vital, mais potente do que o próprio fato. Que significa isso? Que nunca estamos em contato com o medo, porém apenas com a ideia do medo. Observai esse fato em vós mesmo. E a idéia não pode ser afastada artificialmente. Podeis dizer: “Tentarei enfrentar o temor sem a ideia”; mas isso não é possível. Agora, se percebeis realmente que a memória e a “ideação” vos impedem de comungar com o fato — o fato do medo, do ciúme, o fato da morte — então se estabelecerá uma relação completamente diferente entre vós e a realidade.

Para a maioria de nós, a ideia é bem mais importante do que a ação. Nunca agimos completamente. Estamos sempre limitando a ação com a ideia, ajustando ou interpretando a ação de acordo com uma fórmula, um conceito e, por conseguinte, não há ação nenhuma — ou, antes, a ação é tão incompleta que cria problemas. Mas, uma vez compreendido esse fato extraordinário, a ação se torna coisa sumamente vital, porquanto já não se ajusta a uma ideia.

O medo não é uma abstração; está sempre em relação com alguma coisa. Tenho medo da morte, medo da opinião pública, medo de não me tornar benquisto, popular, medo de nada realizar, etc. A palavra “medo” não é o fato, é apenas um símbolo que o representa, e para a maioria de nós o símbolo, no sentido religioso ou em outro qualquer, é mais importante do que o próprio fato. Ora, pode a mente libertar-se da palavra, do símbolo, da ideia, e observar a realidade, a coisa existente, sem interpretação, sem dizer: “Preciso olhá-la” — sem ter nenhuma ideia sobre ela? Se encaramos o fato, a realidade, com uma opinião a seu respeito, estamos apenas a entreter-nos com ideias, não é verdade? Portanto, isto é algo que muito importa compreender: que, quando olho um fato através de uma ideia, não há comunhão nenhuma com o fato. Se quero estar em comunhão com o fato, então a ideia deve desaparecer completamente. Pois bem, prossigamos desse ponto, para ver aonde nos leva.

Há o fato de que temeis a morte, temeis o que alguém dirá, temeis dúzias de coisas. Ora, quando já não estais olhando esse fato através de uma ideia, de uma conclusão, de um conceito, através da memória, que acontece realmente? Em primeiro lugar, não há separação entre o observador e a coisa observada, o “eu” não está separado dessa coisa. A causa da separação foi eliminada e, por conseguinte, achais-vos em direta relação com o que chamais medo. O “eu” com suas opiniões, ideias, juízos, avaliações, conceitos, memórias — tudo isso está ausente, e só há aquela coisa.

O que estamos fazendo é difícil, não é um simples entretenimento matinal. Eu sinto que é possível uma pessoa sair deste pavilhão, nesta manhã, profunda e completamente livre do medo; e, então, essa pessoa é um verdadeiro ente humano.


Krishnamurti, A mente sem medo
http://pensarcompulsivo.blogspot.com 

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