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domingo, 10 de junho de 2018

O AMOR É O SUPREMO ESTADO 
DE INCERTEZA


Última Parte

Estais, pois, agora, frente a frente com o fato: a sensação ou apreensão que chamais “medo” e que foi produzida por uma ideia. Tendes medo da morte (estou tomando isso apenas para exemplo). Ordinariamente, considerais a morte uma simples ideia; não é um fato. O fato só se vos apresenta quando estais morrendo. Sabeis da morte de outras pessoas, e a compreensão de que também vós tendes de morrer se torna uma ideia geradora de medo. Olhais o fato através da ideia, a qual vos impede o contato direto com o fato. Há um intervalo entre o observador e a coisa observada. É nesse intervalo que surge o pensamento — sendo “pensamento” a ideação, a verbalização, a memória que oferece resistência ao fato. Mas quando esse intervalo não existe, isto é, quando ausente o pensamento, que é tempo, estais diante do fato; e então o fato atua sobre vós — vós não atuais sobre o fato.

Eu sinto que o viver com medo, de qualquer espécie que ele seja, é — se posso empregar o termo — coisa má. Viver com medo é coisa má, porque gera ódio, desfigura o pensar e perverte toda a vossa vida. Portanto, é absolutamente necessário que o homem religioso seja completamente livre de medo, tanto exterior como interiormente. Não me refiro à reação espontânea do corpo físico, para proteger-se, que é natural. É normal, ao verdes uma serpente, saltardes para longe dela — o que é apenas um instinto físico de autoproteção, e seria anormal não terdes tal reação. Mas o desejo de se estar em segurança, interiormente, psicologicamente, em qualquer nível do próprio ser, gera medo. Podemos ver em toda a parte os efeitos do medo e compreender, assim, quanto é importante que a mente não seja, em tempo algum, um “terreno de cultura” do temor.

Se bem escutastes o que aqui se disse nesta manhã, tereis visto que o medo nunca se acha no presente, porém sempre no futuro; ele é provocado pelo pensamento, pelo pensar no que poderá acontecer amanhã ou daqui a um minuto. Assim, o medo, o pensamento e o tempo são companheiros; e, para se compreender e transcender o medo, é necessária a compreensão do pensamento e do tempo. Todo pensar comparativo deve cessar; toda ideia de esforço — que envolve competição, ambição, adoração do êxito, luta por tornar-se alguém — deve findar. E, uma vez compreendido todo esse processo, não há conflito nenhum, há? Por conseguinte, a mente já não se acha num estado de deterioração, porquanto é capaz de enfrentar o medo e não propicia o seu aparecimento. Ora, esse estado livre do medo é absolutamente necessário, para que se possa compreender o que é criação.

Em regra, a vida é para nós entediante rotina, e nela não encontramos nada novo. Toda coisa nova que ocorre, logo a transformamos em rotina. Alguém pinta um quadro, que passa a ser novidade, mas logo depois deixa de sê-lo. O prazer, a dor, o esforço — tudo se torna rotina, tédio, luta perene e pouco significativa. Estamos sempre a buscar algo novo — o novo em filmes, o novo em quadros. Queremos sentir e expressar coisas novas, diferentes, não traduzíveis de imediato em termos do “velho”. Esperamos encontrar um certo truque, ou técnica engenhosa mediante a qual possamos expressar-nos e sentir-nos satisfeitos; mas, também isso acaba-se tornando uma terrível importunação, uma coisa feia, que temos vontade de destruir. Achamo-nos, pois, num constante estado de reconhecimento. Toda coisa nova é imediatamente reconhecida e, assim, absorvida pelo “velho”. O mecanismo de reconhecimento é, para a maioria de nós, de excepcional importância, visto que o pensamento está sempre funcionando dentro do campo do conhecido.

No momento em que se reconhece uma coisa, ela deixa de ser nova. Compreendeis? Nossa educação, nossa experiência, nosso viver diário — tudo isso é mecanismo de reconhecimento, de constante repetição, e confere continuidade à nossa existência. Com a mente presa nesse mecanismo, perguntamos se existe algo novo; queremos averiguar se há ou não há Deus. Partindo do conhecido, pretendemos encontrar o desconhecido. É o conhecido que causa o medo ao desconhecido, e por isso dizemos: “Preciso encontrar o desconhecido, reconhecê-lo e trazê-lo para o conhecido”. Tal é nossa busca, na pintura, na música, em tudo — a busca do novo, para interpretá-lo sempre em termos do velho.

Ora, esse mecanismo de reconhecimento e interpretação, de ação e de preenchimento, não é criação. Não há possibilidade de expressar o desconhecido. O que se pode expressar é uma interpretação ou reconhecimento de algo que chamais “o desconhecido”. Cumpre, pois, descobrir por vós mesmo o que é criação, porque, do contrário, vossa vida é mera rotina, em que nenhuma mudança, nenhuma mutação ocorre, e com a qual vos aborreceis rapidamente. A criação é o próprio movimento criador — e não a interpretação desse movimento na tela, na música, em livros, ou numa relação.

Afinal de contas, a memória encerra milhões de anos de lembranças, de instintos, e o impulso para ultrapassar tudo isso faz parte ainda da mente. Desse fundo do “velho” procede o desejo de reconhecer o novo; mas o novo é algo totalmente diferente — ele é amor — e não pode ser compreendido pela mente que está aprisionada no mecanismo do velho e tentando reconhecer o novo.

Esta é uma das coisas mais difíceis de transmitir, de comunicar; mas desejo comunicá-la, se possível, porque a mente que não se acha nesse estado criador está sempre em mecanismo de deterioração. Esse estado é intemporal, eterno. Não é “comparativo”, não é utilitário, nenhum valor tem em termos de ação; ninguém pode servir-se dele para pintar quadros ou escrever maravilhosa poesia shakespeariana. Mas, sem ele, não há realmente amor. O amor que conhecemos é ciúme, geralmente cercado de ódio, ansiedade, desespero, aflição, conflito; e nada disso é amor. O amor é coisa eternamente nova, irreconhecível; ele nunca é o mesmo, e, por conseguinte, é o supremo estado de incerteza. E só no “estado de amor” pode a mente compreender essa coisa extraordinária chamada “criação” — que é Deus, ou outro nome que lhe quiserdes dar. Só a mente que compreendeu as limitações do conhecido e, consequentemente, dele ficou livre — pode achar-se naquele estado criativo em que não existe fator de deterioração.


PERGUNTA: O sentimento de termos uma vontade individual é a causa do medo?

KRISHNAMURTI: Talvez seja. Mas, que entendeis pela palavra “individual”? Vós sois “individual”? Tendes um corpo, um nome, uma conta no banco; mas, se interiormente estais acorrentado, tolhido, limitado, sois um indivíduo? Como todos os outros, estais condicionado, não? E dentro dessa limitada área de vosso condicionamento que chamais “o indivíduo” tudo acontece — vossas aflições, desesperos, vosso ciúme, vossos temores. Essa entidade estreita e fragmentária, com sua alma individual, sua vontade individual e demais futilidades — dela tendes muito orgulho. E com ela desejais descobrir Deus, a verdade, o amor. Isso não é possível. O que pois fazer é só estar consciente do fragmento que sois e de vossas lutas, e perceber que o fragmento não pode, jamais, tornar-se o todo. O que quer que faça, o raio nunca poderá tornar-se roda. Por conseguinte, cumpre investigar e compreender essa existência separada, estreita, limitada, esse suposto “indivíduo”. O mais importante nisso tudo não é vossa opinião ou minha opinião, mas descobrir o verdadeiro. E, para descobrir o verdadeiro, não deve a mente temer — ser tão despida de medo, que seja de todo “inocente”. Só dessa “inocência” vem a criação.


Krishnamurti, em A mente sem medo
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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