Translate

segunda-feira, 19 de março de 2018

APRENDER A CONHECER-SE


Primeira Parte
 
Se considerais importante conhecerdes a vós mesmo só porque eu ou outro disse que é importante, receio então que esteja terminada toda comunicação entre nós. Mas, se concordamos ser de vital importância compreendermos a nós mesmos, totalmente, torna-se então diferente a relação entre vós e mim e poderemos explorar juntos, fazer com agrado uma investigação cuidadosa e inteligente.
 
Eu não vos exijo fé; não me estou arvorando em autoridade. Nada tenho para ensinar-vos — nenhuma filosofia nova, nenhum sistema novo, nenhum caminho novo para a realidade; não há caminho para a realidade, como não o há para a verdade. Toda autoridade, de qualquer espécie que seja, sobretudo no campo do pensamento e da compreensão, é a coisa mais destrutiva e danosa que existe. Os guias destroem os seguidores, e os seguidores destroem os guias. Tendes de ser vosso próprio instrutor e vosso próprio discípulo. Tendes de questionar tudo o que o homem aceitou como valioso e necessário.
 
Se não seguis alguém, vos sentis muito solitário. Ficai solitário, pois. Porque tendes medo de ficar só? Porque vos defrontais com vós mesmo, tal como sois, e descobris que sois vazio, embotado, estúpido, repulsivo, pecador, ansioso — uma entidade insignificante, sem originalidade. Enfrentai o fato; olhai-o e não fujais dele. Tão logo começais a fugir, começa a existir o medo. Ao investigar-nos não nos estamos isolando do resto do mundo. Não se trata de um processo mórbido. O homem, em todo o mundo, se vê enredado nos mesmos problemas diários, tal como nós, e, assim, investigando a nós mesmos, não estamos de modo nenhum procedendo como neuróticos, porque não há diferença entre o individual e o coletivo. Este é um fato real. Criei o mundo tal como sou. Portanto, não nos desorientemos nesta batalha entre a parte e o todo.
 
Tenho de estar cônscio de todo o campo de meu próprio ser, que é constituído da consciência individual e social. É só quando a mente transcende a consciência individual e social, que posso tornar-me a luz de mim mesmo, a luz que nunca se apaga.
 
Pois bem; onde começarmos a compreender a nós mesmos? Aqui estou eu, e como é que vou estudar-me, observar-me, ver o que realmente está sucedendo em meu interior? Só posso observar-me em relação, porque a vida é toda de relação. De nada serve ficar sentado num canto a meditar sobre mim mesmo. Não posso existir sozinho. Só existo em relação com pessoas, coisas e idéias e, estudando minha relação com as pessoas e coisas exteriores, assim como com as interiores, começo a compreender a mim mesmo. Qualquer outra forma de compreensão é mera abstração, e não posso estudar-me abstratamente; não sou uma entidade abstrata; por conseguinte, tenho de estudar-me na realidade concreta — assim como sou, e não como desejo ser.
 
A compreensão não é um processo intelectual. A aquisição de conhecimentos a vosso próprio respeito e o aprendizado de vós mesmo são duas coisas diferentes, porque o conhecimento que a vosso respeito acumulais é sempre do passado, e à mente que leva a carga do passado é uma mente lamentável. O aprendizado de vós mesmo não é como o aprendizado de uma língua, uma técnica ou uma ciência; neste último caso, naturalmente, tendes de acumular e memorizar, pois seria absurdo voltar sempre de novo ao começo. Mas, no campo psicológico, o aprendizado de vós mesmo está sempre no presente, ao passo que o conhecimento está sempre no passado e, como a maioria de nós vive no passado e está satisfeita com o passado, o conhecimento se torna sumamente importante para nós. É por essa razão que endeusamos o homem erudito, talentoso, sagaz. Mas, se estais aprendendo a todo momento, a cada minuto, aprendendo pelo observar e pelo escutar, aprendendo pelo ver e atuar, vereis então que o aprender é um movimento infinito, sem o passado.
 
Se dizeis que aprendereis a conhecer-vos gradualmente, acrescentando sempre mais alguma coisa, pouco a pouco, não vos estais estudando agora como sois, porém por meio do conhecimento adquirido. O aprender requer muita sensibilidade. Não há sensibilidade se existe alguma ideia, que é do passado, dominando o presente. A mente já não é então ágil, flexível, alertada. A maioria de nós não é sensível, nem mesmo fisicamente. Comemos em excesso, sem nos importarmos com o regime mais adequado; abusamos do fumo e da bebida, e, dessa maneira, o nosso corpo se torna pesado e insensível; a capacidade de atenção do próprio organismo se embota. Como pode haver uma mente muito alertada, sensível, clara, se o próprio organismo está embotado e pesado? Podemos ser sensíveis a certas coisas que nos atingem particularmente, mas, para sermos completamente sensíveis a tudo o que decorre das exigências da vida, não deve haver separação entre o organismo e a psique. Trata-se de um movimento total.
 
Para compreendermos qualquer coisa, temos de viver com ela, observá-la, conhecer-lhe todo o conteúdo, a natureza, a estrutura, o movimento. Já experimentastes viver com vós mesmos? Se o experimentardes, começareis a ver que "vós" não sois uma entidade estática, porém uma coisa vigorosa, viva. E, para poder viver com uma coisa viva, vossa mente também tem de estar viva. Não pode, porém, estar viva, se está enredada em opiniões, juízos e valores.
 
Para observardes o movimento de vossa mente e de vosso coração, de vosso ser inteiro, necessitais de uma mente livre; e não de uma mente que concorda e discorda, que toma partido numa discussão, disputando por causa de meras palavras, porém que acompanha a discussão com a intenção de compreender. Isso é dificílimo, porque não sabemos olhar nem escutar o nosso próprio ser, assim como não sabemos olhar a beleza de um rio, ou escutar o murmúrio da brisa entre as árvores.
 
Quando condenamos ou justificamos, não podemos ver com clareza, e também não podemos fazê-lo quando nossa mente está a tagarelar incessantemente; não observamos então o que é; só olhamos nossas próprias "projeções". Temos, cada um de nós, uma imagem do que pensamos ser ou deveríamos ser, e essa imagem, esse retrato, nos impede inteiramente de vermos a nós mesmos como realmente somos.
 
Uma das coisas mais difíceis do mundo é olharmos qualquer coisa com simplicidade. Como nossa mente é muito complexa, perdemos a simplicidade. Não me refiro à simplicidade no vestir ou no comer, no usar apenas uma tanga ou bater um recorde de jejum, ou qualquer outra das absurdas infantilidades que os santos praticam; refiro-me àquela simplicidade que nos torna capazes de olhar as coisas diretamente e sem medo, capazes de olhar a nós mesmos sem nenhuma deformação, de dizer que mentimos quando mentimos e não esconder o fato ou dele fugir.
 
Outrossim, para compreendermos a nós mesmos, necessitamos de muita humildade. Se começais dizendo: "Eu me conheço" — já travastes o processo do auto-aprendizado; ou, se dizeis "Não há muito que aprender a meu respeito, porque sou apenas um feixe de memórias, ideias, experiências e tradições" — tereis também parado o processo de aprendizado a vosso próprio respeito. No momento em que alcançais qualquer alvo, perdeis o atributo da inocência e da humildade; no momento em que chegais a uma conclusão ou começais a examinar com base no conhecimento, está tudo acabado, porque então estais traduzindo tudo o que é vivo em termos do velho. Mas se, ao contrário, não tendes nenhum ponto de apoio, nenhuma certeza, nenhuma perfeição, estais em liberdade para olhar, e quando olhais uma coisa em liberdade, ela é sempre nova. 
 
Um homem seguro de si é um ente morto.
 

 
Krishnamurti - Liberte-se do Passado
http://pensarcompulsivo.blogspot.com.br
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário