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sexta-feira, 23 de março de 2018

A IMITAÇÃO DE CRISTO


Um Estudo Teosófico Sobre Obra Clássica

Primeira Parte

A Teosofia tem as suas maneiras próprias de identificar a sabedoria eterna presente nos ensinamentos cristãos, resgatando-a da letra morta do ritualismo e da crença cega.

Como um pequeno exemplo prático desse fato, apresentamos a seguir 34 fragmentos do livro clássico “Imitação de Cristo” [1]. Os Comentários visam decodificar estas passagens, liberando-as da forma exterior e revelando suas ideias internas, que fazem parte da visão teosófica da vida.

O autor de “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis (1380-1471), foi educado pela Irmandade da Vida em Comum e mais tarde se tornou membro dela. A esta Irmandade pertenceu também o cardeal e filósofo Nicolau de Cusa (1400-1464). [2] De acordo com Helena Blavatsky, Cusa foi um adepto e um precursor do movimento teosófico moderno. [3]

Os três primeiros Livros de “Imitação de Cristo” equivalem a um tratado de filosofia estoica, colocado sob uma roupagem cristã: daí a sua importância em teosofia. O quarto Livro ou quarta parte da obra, porém, não se harmoniza com o resto do conteúdo. Parece algo alheio. Poderia ter sido escrito para escapar da perseguição do Vaticano.

Há algumas “chaves de leitura” para o texto de “Imitação”. Em geral é correto ler a palavra “Deus” como significando “Lei Universal”. Em alguns casos, porém – como no caso da relação pessoal com Deus – o termo designa o próprio eu superior ou alma eterna do ser humano, cuja substância é universal.

O termo “cruz” significa “Carma”.

As palavras “Cristo” e “Jesus” são termos lendários que designam o sexto princípio da consciência humana, também conhecido como “eu superior” e “alma espiritual”.

Os 34 fragmentos são apresentados em itálico, em negrito. Ao final de cada um deles são indicados o Livro (ou Parte), o capítulo e o parágrafo a que pertencem.

 
 
Um: a Fonte Mais Alta

“A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos (…).” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

 
Comentário:

A primeira frase selecionada de “Imitação” significa que devemos ir à fonte mais elevada possível.

Os Evangelhos constituem uma autêntica luz inspiradora, quando lidos adequadamente. Eles contêm um grande número de ensinamentos pitagóricos, judaicos, confucionistas e budistas, e muitos princípios retirados de outras religiões.

No entanto, os ensinamentos de “Cristo” também estão além da literatura. Eles correspondem simbolicamente à “voz do silêncio”, o mantra sem palavras emitido pela própria alma de cada buscador da verdade, em seu aspecto universal e divino.

 
Dois: um Maná Invisível

“… E quem tiver seu espírito encontrará nela [na doutrina de Cristo] um maná escondido.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

 
Comentário:

Nenhuma leitura da letra morta pode ser eficiente em filosofia ou religião. O real significado está oculto, do ponto de vista do mundo das aparências. Portanto o estudo filosófico deve combinar vários níveis de consciência. É necessário decodificar as palavras para ver o ensinamento como um processo vivo e criativo.

 
Três: a Visão Correta

“Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

 
Comentário:

Para realmente entender a teosofia, devemos testar e aplicar o seu ensinamento na vida diária. O mundo sagrado está potencialmente presente em cada situação. A vida de H.P. Blavatsky – assim como a de outros sábios de diferentes épocas – constitui uma fonte autorrenovada de orientação e nos inspira.

 
Quatro: Além das Palavras

“Que te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição [arrependimento] dentro de minha alma, a saber defini-la.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

 
Comentário:

“Deus” é a lei universal, e é a Natureza em sua totalidade e diversidade absolutas. A Trindade simboliza o mistério da unidade interior que convive com o contraste e diferença externos.

Nenhuma fala pode ser mais valiosa que a intenção que está na sua origem. Tampouco pode ser muito mais forte que a prática diária da qual emerge.

 
Cinco: a Caridade e a Graça

“Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

 
Comentário:

Ainda que você saiba recitar de memória as escrituras religiosas de todos os povos e os ensinamentos de cada filósofo clássico, oriental e ocidental, o fato será inútil se você não perceber a unidade de todos os seres, e não enxergar o seu próprio dever para com a Vida Una da qual você faz parte.

 
Seis: a Suprema Sabedoria

“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Eclesiastes, 1, 2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

 
Comentário:

Tudo é vaidade, exceto a tarefa de cumprir nosso dever para com nosso eu superior e para com a lei do equilíbrio universal.

 
Sete: uma Felicidade que Dura Sempre

“Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 4.)

 
Comentário:

Estar preocupado sobretudo com coisas de curto prazo, e desprezar o futuro de longo prazo – que eu mesmo estou, em grande parte, preparando durante minha encarnação atual -; isso também é vaidade.

 
Oito: Buscar o Invisível

“Lembra-te a miúdo do provérbio: ‘Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir’ (Eclesiastes 1, 8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 5.)

 
Comentário:

A verdadeira consciência é a voz sem palavras do nosso eu superior ou alma espiritual.

As palavras “graça de Deus” designam a energia sutil e impessoal do amor cósmico e indicam o sexto princípio da consciência humana. A expressão revela a unidade transcendente dos seres ao mesmo tempo que respeita a sua aparente diversidade. A graça superior está em todas as partes. Não pertence a alguma divindade específica, muito menos a um deus “pessoal”.

 
Nove: o Valor do Conhecimento

“Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros mas se descuida de si mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 1.)

 
Comentário:

Nosso Criador é o nosso eu superior, que fez com que nascêssemos na presente encarnação, mas também pode ser descrito como a Lei Universal.

Aquele que “teme a Deus”, ou “reverencia o mundo divino”, é quem vive em harmonia com sua própria alma espiritual.

Em teosofia, o astrônomo e o humilde camponês devem ser a mesma pessoa. Não há oposição entre os dois: o real conhecimento é inseparável da pureza de coração.

 
Dez: Autoconhecimento

“Aquele que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 1.)

 
Comentário: 
 
“Desprezar-se” aqui significa desprezar o caminho falso do egoísmo e admitir sinceramente seus erros perante o tribunal da sua própria consciência.

Neste trecho temos um princípio teosófico central. O “deus” que me irá julgar é o meu eu superior. Ao final da minha encarnação atual, ele revisará cada ação feita, estabelecendo as linhas cármicas não só dos meus estados pós-morte, mas do meu próximo nascimento.

 
Onze: Evitar Distrações

“Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos como sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E muito insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera [renova] o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 2.)

 
Comentário:

A demonstração externa de santidade ou de erudição não satisfaz à alma. Conforme diz outra versão desta obra (“The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomberg, Dunstan Press), “é a bondade das nossas vidas que traz conforto às nossas mentes”. E Helena Blavatsky escreveu:

“…A Ética da Teosofia é ainda mais necessária à humanidade do que os aspectos científicos dos fatos psíquicos da natureza e do homem.” [4]

 
 
Doze: uma Vida Sagrada

“Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 3.)

 
Comentário:

O “Dia do Julgamento” é também individual e não necessariamente coletivo, conforme o pensador português Antônio Vieira explicou no ano de 1652 em um dos seus sermões.[5]

O “julgamento” individual é feito pelo nosso próprio eu superior de acordo com a Lei do Carma e acontece ao final de cada encarnação. Os “julgamentos” coletivos são pontos cármicos de não-retorno na evolução humana e planetária. Eles são examinados no livro “A Doutrina Secreta”, de Helena Blavatsky.

O que fazemos com o nosso suposto conhecimento é a questão-chave para a teosofia autêntica. O conhecimento precisa ser confirmado e validado pela ação correspondente, e esta será necessariamente imperfeita. A ação correta consiste na tentativa sincera de fazer o melhor que podemos. Nossos esforços nesse sentido devem ser corrigidos e renovados periodicamente, à medida que as circunstâncias se alteram. Gradualmente aprendemos a aprender com os erros, e a concentrar a mente e o coração na meta nobre livremente escolhida por nós.

 
Treze: Para Aprender o que é Útil

“Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. ‘Não presumas de alta sabedoria’ (Romanos, 11, 20), antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 3.)

 
Comentário:

Nossos pensamentos devem ser honestos e verdadeiros. Seja o que for que disserem os que nem sequer tentam agir com ética e com respeito pela verdade, eles são seres infelizes e estão muito longe do caminho correto. No entanto, merecem nosso respeito impessoal. Colherão o que plantaram, e no futuro terão uma chance de corrigir seus erros.

Devemos ter como objetivo aprender com quem é mais sábio que nós. Não importa se o nosso contato com eles é interno ou externo e se ocorre através de palavras escritas ou sem o uso de palavras. [6] Para viver esta aprendizagem superior, é preciso tratar de ajudar o trabalho das Almas que guiam a humanidade pelo caminho da luz.

 
Catorze: Permaneça Vigilante

“Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 4.)

 
Comentário:

Combata o crime e o egoísmo. Lute ainda mais contra as sementes deles e as suas fontes. Não lave as mãos diante da injustiça de qualquer tipo. Encare a injustiça contra qualquer um como uma injustiça contra o seu pai, a sua mãe ou seu mestre espiritual. Tenha piedade e compaixão diante das pessoas egoístas, mas não aceite as suas ações daninhas. Os desinformados são parte da família humana, assim como você.

 NOTAS:

[1] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes, Petrópolis, vigésima-oitava edição, 1993, 277 pp. O livro tem numerosas edições em português, inclusive da editora Ediouro (1968), em que o nome de autor aparece como Thomas A. Kempis; da Editora Ave-Maria Ltda. (SP, 1928), em que não há nome de autor; e da Livraria Editora Francisco Alves, RJ, 1898, traduzido em versos por Affonso Celso e com 620 páginas. O livro, o capítulo e o parágrafo de cada citação são mencionados entre parênteses no seu final. Edições em inglês da obra incluem: “The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomber, Dunstan Press, Maine, USA, copyright 1984, 250 pp.; “Of the Imitation of Christ”, by Thomas à Kempis, Whitaker House, USA, 1981, 256 pp.; “The Inner Life”, Penguin Books, 2004, translated by Leo Sherley-Price, 108 pp.; e “The Imitation of Christ”, Thomas A. Kempis, translated by George F. Maine, published by Collins Sons, 1957, London and Glasgow, 1957, 280 pp.

[2] “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, itens “Brethren of the Common Life”, “Kempis, Thomas à”, e “Nicholas of Cusa”.

[3] Sobre Nicolau de Cusa, veja em nossos websites o artigo “Reencarnação Consciente e Imediata”. Examine também “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, TPH, vol. XIV, pp. 377-378. Leia os itens “Nicholas of Cusa” e “Brethren of the Common Life”, conforme as indicações dadas na Nota 2, acima. Cabe ter presente o fato de que H.P. Blavatsky escreve, em “Ísis Sem Véu”, Ed. Pensamento, volume III, p. 29: “A Magia, em todos os seus aspectos, foi amplamente e quase abertamente praticada pelo clero até a Reforma.” De posse destas informações, fica mais fácil compreender por que a mística cristã, incluindo o franciscanismo, tem até hoje elementos teosóficos importantes.

[4] “Five Messages”, H. P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1922, Second message, p. 12. O livreto está disponível em nossos websites. Para vê-lo, basta clicar aqui.

[5] Padre Antônio Vieira, “Sermões”, Editora das Américas, SP, volume IV, 1957, 441 pp., ver por exemplo pp. 28-40.

[6] Um tal contato frequentemente inclui as palavras escritas de ensinamentos clássicos e uma inspiração silenciosa em níveis superiores de percepção.
 
 
 Carlos Cardoso Aveline
http://www.filosofiaesoterica.com 

 

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