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domingo, 28 de janeiro de 2018

A VERDADE RESIDE 
NO ADESTRAMENTO DO EU


Vou narrar-vos pequeno incidente que se passou comigo o ano passado, enquanto estava na Índia. Fui ao encontro de alguns amigos em uma estação de caminho de ferro — e não podeis imaginar o que é uma estação indiana, muito mais bulhenta e mesmo suja do que o costumam ser vulgarmente as estações ferroviárias. Vi um homem que fazia rodeios, desejoso de falar-me. Era um daqueles que puxam os rickshaw — carros de duas rodas nos quais um homem se senta e um outro o puxa. Por fim ele encheu-se de suficiente coragem e veio falar-me. Perguntou-me em inglês muito errado e falho onde eu morava, que fazia e se estava para assistir à chegada de irmãos e irmãs minhas. Expliquei-lhe onde me encontrava domiciliado; e, finalmente, perguntou-me se lhe seria permitido descer a plataforma, acompanhando-me. Achava-se quase tão acanhado quanto eu! Daí a pouco puxou um cigarro do bolso e começou a fumar. Após algumas baforadas perguntou-me se fumava. Disse-lhe que não. Então, olhou por algum tempo para o cigarro e disse: “Suponho ser desnecessário fumar”, e eu respondi-lhe: “Provavelmente”. Pois esse homem, cujo maior prazer era talvez fumar, retrucou: “De hoje para o futuro, nunca mais fumarei”, e atirou fora o cigarro com uma violência que, realmente, me surpreendeu.

Não vos narro este incidente para vos incitar a que não fumeis — isto é assunto aparte. Porém, um ato de real entendimento praticado com real profundeza de sentir, colocará um homem em um pináculo de grande visão, de grande entendimento, de grande deleite. Como disse em minhas palestras, para descobrir essa eternidade que é o eu em consecução, essa harmonia de estabilidade entre a razão e o amor, é necessário, do meu ponto de vista, afastar-se de todas as coisas não-essenciais e deve produzir-se uma expressão física desse afastamento. Por favor, não penseis que pelo fato de as coisas não serem essenciais deveis continuar a condescender com elas; sei que muita gente dirá: “Continuarei a fazer estas coisas por não serem elas essenciais”. Isto pode ser maneira muito cômoda de encarar a vida, porém vós necessitais, ao contrário, pelo processo de eliminação, afastar-vos de todas essas coisas não-essenciais, por serem absolutamente infantis, triviais, absurdas. Mediante este afastamento descobrireis o eu verdadeiro e disciplinareis a esse eu. Não é por meio dessas complicações, por meio dessas coisas não-essenciais, mas antes pela sua eliminação, pelo deixa-las de parte que encontrareis a verdade, que encontrareis o eu verdadeiro, mediante o qual o genuíno processo de autodisciplina começará.

Pela autodisciplina eu não entendo a repressão, mas antes a auto disciplina mediante o entendimento que vos conduz à libertação, esse equilíbrio da razão e do amor. Se quiserdes encontrar a verdade, essa disciplina do eu, que é a semente da razão e do amor, deve ter lugar a todo o instante do dia, deve estar focalizada agudamente em toda a coisa que fizerdes. A verdade está no processo e não na consecução. À medida que viverdes, vos manifestardes e atuardes na vida diária, a encontrareis. No adestramento desse eu reside a Verdade — e em nada mais. O assunto de importância, pois, não é a invenção de multidão de teorias ou filosofias, mas antes a descoberta do “Eu” que é progressivo e tornar esse “Eu” progressivo incorruptível. No educar, no cuidar, no encorajar este “Eu” em direção à liberdade, em direção ao reino no qual não existe limitação do ser, reside a verdade. Tendo como vossa visão essa libertação da qual vos falo, mediante o processo da autodisciplina imposta a vós próprios por vós próprios, não tendo em conta a recompensa ou o tenor da punição, encontra-se o verdadeiro atingimento, o preenchimento, a incorruptibilidade do eu. Toda a manifestação — não em sentido filosófico, pois estou usando a linguagem vulgar — é a criação do eu, é a sombra do eu. Se o eu for impuro, corruptível, então todas as manifestações desse eu serão impuras, e corruptíveis. Assim, necessitais buscar primeiramente a perfeição, a incorruptibilidade do eu, pois somente nisso reside a verdade. Deveis afastar-vos de todas as coisas não-essenciais, pois que põem uma limitação sobre o eu. Tendes de vir descarregados, livres, ilimitados; então essa verdade, que não está longe nem está perto, será descoberta e aquele que a houver descoberto constituir-se-á um perigo para todas as irrealidades, para todas as falsidades da vida.


 
Krishnamurti
pensarcompulsivo


"Chega um momento em que o caminho é dentro e é preciso disposição para fazer esse movimento para dentro com a mesma vontade que você se moveu para fora e conquistou tantas coisas. Há que se ter disposição para se sentar com os olhos fechados, pelo menos por alguns minutos durante o dia. Fechar os olhos para se desligar do mundo externo - os olhos são a janela da mente. Por isso você fecha os olhos para se desligar da sociedade e do outro a quem você tão desesperadamente quer agradar. Há que se ter disposição para ficar consigo mesmo". Sri Prem Baba está certo; é muito sério isso, pois se não 'adestrarmos' o eu não conseguiremos sair dessa roda de repetições. Carl Jung nos adverte muito bem quando diz que 'não há despertar de consciência sem dor... ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por se tornar consciente da escuridão'. 
 

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