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sábado, 17 de abril de 2021

UM OLHAR SOBRE A SUPERFICIALIDADE
DE NOSSAS VIDAS

Antes de tudo, valeria a pena reconhecermos por nós mesmos o quanto somos superficiais. A mim me parece que quanto mais superficiais, tanto mais ativos e mais “coletivos” nos tornamos, e tanto mais nos entregamos às atividades de reformas sociais. Colecionamos obras de arte, tagarelamos interminavelmente, dedicamo-nos a atividades sociais, frequentamos concertos, bibliotecas, galerias de arte, e submergimos na interminável rotina do emprego e dos negócios. Estas coisas tornam-nos embotados; e quando percebemos esse embotamento, procuramos fazer-nos mais penetrantes, por meio de palavras, do intelecto, das coisas da mente. E, reconhecendo-nos superficiais, tentamos fugir a esse vazio, entregando-nos a práticas religiosas, às orações, à contemplação, à busca de saber; tornamo-nos idealistas, adornamos de quadros as paredes, etc. Acho que estamos suficientemente cônscios de sermos muito superficiais, bem cônscios de que a mente que segue um hábito ou pratica uma disciplina a fim de “vir a ser algo” torna-se cada vez mais embotada e estúpida, perdendo toda penetração e sensibilidade. É dificílimo a uma mente superficial despedaçar sua própria estreiteza, suas próprias limitações, sua própria insignificância. Não sei se já pensastes nisso alguma vez.


(…) Evidentemente, nossas vidas são vazias, superficiais. E a mente superficial facilmente se satisfaz. Ao ver-se descontente, põe-se a seguir uma estreita rotina, fixa um ideal, sai atrás do que deveria ser. E essa mente, não importa o que faça — quer estejamos sentados de pernas cruzadas, a contemplar meditativamente o umbigo, quer meditemos a respeito do Supremo — permanecerá sempre vazia, porque sua mesma essência é sem profundeza. Uma mente estúpida nunca se tornará uma mente superior. O que ela pode fazer é compreender sua própria estupidez; e, no momento em que perceber, por si mesma, o que ela própria é, sem imaginar o que deveria ser, “quebra-se” então a estupidez. Com esta compreensão, toda busca termina — mas isto não significa que a mente se torna “estagnada”, adormentada. pelo contrário, está enfrentando o que é, em sua realidade; e isto não é processo de busca, porém de compreensão.

Afinal, a maioria das pessoas está em busca de Deus, da Verdade, do eterno amor, de uma eterna morada celestial, um amor permanente. E a mim me parece que a mente que busca é muito superficial. Acho que devemos compreender mais ou menos este ponto, investigá-lo, ver quanto são absurdas a mente superficial e suas atividades, pois não poderemos penetrar fundo, em nossa investigação desta tarde, se continuarmos a pensar em termos de busca, de esforço para descobrir. Ao contrário, necessitamos de uma mente sobremodo penetrante, quieta, tranquila. A mente sem profundeza, que se esforça para se tornar silenciosa, continua a ser apenas qual poça d’água, sem profundidade. A mente limitada, sempre tão sabedora, tão sagaz, tão empolgada da ambição de achar Deus, a Verdade, ou um santo qualquer, porque seu desejo é chegar a alguma parte — essa mente continua superficial, porquanto todo esforço é superficial, produto da mente limitada, estreita. Jamais pode ser sensível essa mente; e parece-me necessário encararmos esta verdade. O esforço para ser, “vir a ser”, rejeitar, resistir, cultivar a virtude, reprimir, sublimar — tudo isso, em essência, constitui a natureza da mente superficial. Provavelmente a maioria não concordará com isso, mas não importa. A mim me parece um óbvio fato psicológico.

Ora, quando uma pessoa percebe isso, se torna cônscia disso, percebe a sua verdade, realmente e não verbal e nem intelectualmente — e não deixa a mente fazer perguntas sem conta sobre como modificar esse fato, como libertar-se desta superficialidade — sendo que tudo isso envolve esforço — reconhece então a mente que nada pode fazer contra esse estado. O que pode fazer é apenas perceber, ver as coisas cruamente, tais como são, sem deformação, sem invocar opiniões a respeito do fato; quer dizer, observar simplesmente. E é dificílimo observar pura e simplesmente, porque nossa mente foi exercitada para condenar, comparar, competir, justificar ou identificar-se com o que vê. Por esta razão, nunca vê as coisas tais como são. "Viver com um sentimento” tal qual ele é — seja ciúme, inveja, ambição, ou seja o que for — “viver com ele” sem o deformar, sem imitir opinião ou julgamento a seu respeito, isso requer uma mente dotada de energia para seguir todos os movimentos do fato. Um fato nunca é estático; ele se movimenta, vive. Mas nós o queremos estático, aprisionando-o com uma opinião, um juízo.

Assim, a mente que está vigilante, que é sensível, percebe a futilidade do esforço. Mesmo na educação, a criança, o estudante que forceja para aprender, nunca aprende realmente. Poderá adquirir conhecimento, tirar um diploma; mas aprender é coisa transcende o esforço. Talvez possamos nesta tarde aprender juntos, sem esforço, em lugar de ficarmos presos na esfera do conhecimento.

Estar cônscio do fato, sem o desfigurar, sem o colorir, sem lhe dar nenhuma tendência — observar a nós mesmos tais como somos — com todas as nossas teorias, esperanças, desesperanças, sofrimentos, fracassos e frustrações — isso torna a mente em extremo penetrante. O que torna a mente embotada são as crenças, os ideais, os hábitos, a busca de seu propósito, engrandecimento, desenvolvimento, seu próprio vir a ser ou ser. Como disse, para se seguir o fato requer-se uma mente precisa, sutil, ativa, porquanto o fato nunca é estático.

Não sei se já alguma vez olhastes a inveja como um fato, seguindo-a. Todas as nossas sansões religiosas baseiam-se na inveja, do arcebispo ao ínfimo clérigo; e toda a nossa moralidade social, nossas relações, estão baseadas na aquisição e na comparação, e esta, por seu turno, significa inveja. E seguir isso até o fim, em todos os seus movimentos, em todas as nossas atividades diárias, requer uma mente muito alertada. É muito fácil — não achais? — reprimi-lo, dizendo: “Vejo que não devo ser invejoso”, ou “Já estou aprisionado nesta sociedade corrompida, tenho de aceitar esta condição”. Mas seguir todos os movimentos do fato, cada curva, cada linha, cada nuança, cada sutileza — esse próprio “processo” de seguí-lo torna a mente sensível, sutil.

Ora bem, se fazemos isso, se seguimos o fato sem tentar alterá-lo, não existe então contradição entre o fato e o que deveria ser, e, portanto, nenhum esforço existe. Não sei se estais percebendo isto realmente; que se a mente está seguindo o fato, não está então empenhada em alterá-lo, em torná-lo diferente. Isto, também, é uma verdade psicológica. E esse seguimento do fato precisa ser feito a todas as horas, noite e dia, mesmo durante o sono. Pois a atividade da mente quando o corpo dorme é muito mais deliberada, positiva, e essas atividades são descobertas pela mente consciente através de símbolos, sugestões, sonhos.

Mas se a mente se conserva vigilante, no correr do dia, observando a todas as horas cada movimento, cada gesto, cada movimento de pensamento, não há então sonhar; pode então a mente ultrapassar a própria consciência. Não prosseguiremos nisso, por ora, porque o que desejamos salientar é a necessidade de uma mente sensível. Para se descobrir o que é a Verdade, Deus, ou o nome que preferirdes, é absolutamente necessário uma mente lúcida — não no sentido de talentosa, intelectual, arguitiva; uma mente capaz de raciocinar, de examinar, de duvidar, de indagar e investigar, a fim de descobrir. A mente que tem fronteiras, que está condicionada, não é sensível. O nacionalista, o crente, por certo não tem uma mente sensível, porquanto sua crença, seu nacionalismo lhes limita a mente. Assim, no seguir o fato, a mente se torna sensível. O fato a torna sensível e não há necessidade de fazermos a mente sensível.

Se está mais ou menos claro isso, qual é a natureza da beleza que essa mente descobre? A beleza, para a maioria de nós, reside nas coisas que vemos objetivamente — um edifício, um quadro, uma árvore, um poema, um rio, uma montanha, o sorriso de um belo rosto, a criança que vemos na rua. E existe também, para nós, a negação da beleza, a reação à beleza, que é o dizermos: “Isto é feio”. Mas a mente sensível é sensível tanto para o feio como para o belo e, por consequência, não há nenhuma busca daquilo a que chama belo e nenhuma evitação do feio. E com essa mente descobrimos que existe uma beleza inteiramente diferente das avaliações feitas pela mente limitada. Deveis saber que a beleza requer simplicidade, e a mente muito simples, que vê os fatos tais como são, é uma mente muito bela. Mas não podemos ser simples se não houver passividade, e não há passividade se não há austeridade. Não me refiro a austeridade da tanga, das longas barbas, do monge, do tomar uma só refeição por dia, porém a austeridade da mente que se vê como é e segue infinitamente aquilo que vê. E esse seguir é passividade, porquanto a mente a nada está apegada. A mente deve ficar completamente passiva, para ver “o que é”.

Assim, o percebimento da beleza requer a paixão da austeridade. Estou empregando propositadamente as palavras “paixão” e “austeridade”. Já expliquei o que é austeridade; e da paixão necessitamos obviamente para ver a beleza. Necessita-se de intensidade, e necessita-se de penetração. A mente embotada não pode ser austera, não pode ser simples e, por conseguinte, é sem paixão. É na chama da paixão que se percebe a beleza, que se pode “viver com a beleza”.

Talvez tudo isso, para vós, não passe de palavras, para serem lembradas, invocada e sentidas mais tarde. Não há “mais tarde”; não há “interim”. Isso tem de acontecer agora, enquanto conversamos, enquanto estamos em comunhão uns com os outros. E esse percebimento da beleza não reside apenas nas coisas — em vasos, estátuas, o céu — mas começa-se também a descobrir a beleza da meditação, e a intensidade, a paixão da mente meditativa.
 
Krishnamurti
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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