MORTE PARCIAL - VIDA INTEGRAL
Quando uma dessas lagartas que vivem nas hortaliças ou nas árvores se aproxima do termo da sua existência larval, deixa de comer e torna-se triste, melancólica e como que pensativa. Em vez de passar o dia a triturar os tecidos celular das folhas, suspende a sua faina gastronômica, e parece que vai morrer…
E, de fato, a larva morre, em certo sentido. Morre aquele ser primitivo e informe, aquele estômago ambulante; morre a forma externa, mas não morre o conteúdo interno; este se prepara para uma nova existência, para a vida perfeita e definitiva.
E, para que nascer possa este ser definitivo e perfeito, é necessário que morra o ser provisório e imperfeito.
Morrer para viver — não é só uma máxima do Evangelho; é também um postulado da Natureza. Morrer em parte — para viver plenamente.
Chegada ao ocaso da sua semivida, na véspera duma plenivida, retira-se a lagarta do cenário quotidiano e procura algum cantinho sossegado. Ali, suspende-se debaixo dum galho, ou enclausura-se num casulo de fiosinhos de seda, quando não prefere sepultar-se no fundo da terra — à espera da ressurreição e da vida futura…
Dentro de poucos dias, desaparece a forma da larva, e aparece algo de indizivelmente belo, artístico e misterioso — a crisálida…
Não conhecemos a psicologia dos insetos; mas, a julgar pelas aparências, o inseto sofre com esta metamorfose, que não deixa de representar, para o seu organismo provisório, algo de insólito, inquietante e temeroso… Não poder mais comer nem se mover livremente… Ter de suspender a sua única ocupação, o seu viver habitual… Imobilizar-se num ângulo escuro… Perder a sua forma natural… Reduzir-se à estreiteza do casulo ou da crisálida… Submergir na úmida escuridão do solo, e esperar ali, dias ou semanas, sem saber por que — é de supor que este período de transição represente para o ser em evolução algo de doloroso e desagradável…
Mas é lei da Natureza que a todo estado superior preceda um período de relativo aniquilamento, e, quanto mais perfeito é o ser e quanto mais gloriosa a sua vida definitiva, tanto mais profunda é também a sua metamorfose — e tanto maior será o sofrimento por que há de passar…
Se uma dessas larvas pudesse raciocinar, e se alguém quisesse
convencê-la de que é preciso morrer parcialmente a fim de viver mais
plenamente, é certo que a larva não compreenderia tão alta filosofia. Só
compreenderia a vida que vive entre as folhas das hortaliças ou das
árvores, incapaz de imaginar que, algum dia, lhe pudessem nascer dois
pares de asas levíssimas, meia dúzia de pernas articuladas, dois
hemisférios furta-cores com milhares de pupilas reticuladas e, em vez
daquelas grosseiras mandíbulas de lagarta, a mais graciosa e estética de
quantas bocas tem a Natureza idealizado: um finíssimo cabelinho em
forma de espiral. Não compreenderia que, em vez de devorar folhas de
couve, se nutriria de gotinhas de néctar e passaria o dia a adejar pela
luminosa vastidão do espaço, quase como um espírito, como um sopro de
Deus.
Homem profano! — tu és como a lagarta. . .
Homem iniciado no espírito! — tu és como a borboleta. . .
Texto do livro Porque sofremos – do escritor Huberto Rohden
https://ihgomes.wordpress.com
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