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quarta-feira, 1 de abril de 2020

A    A R T E    D E    O U V I R

Sentir o rio de energia | João Magalhães


Ouvir com Facilidade
 
Alguma vez já se sentaram muito silenciosamente, sem que a vossa atenção esteja fixada em coisa alguma, sem fazerem qualquer esforço para se concentrarem, mas com a mente muito silenciosa, completamente quieta? Então ouvem tudo, não ouvem? Ouvem os ruídos distantes tão bem quanto aqueles que estão mais perto e aqueles que estão muito próximos, os sons circundantes — o que significa realmente que estão a ouvir tudo. A vossa mente não se encontra confinada a um pequeno canal estreito. Se conseguirem ouvir desta maneira, ouvir com facilidade, sem esforço, descobrirão que uma mudança extraordinária está a ter lugar dentro de vós, uma mudança que surge sem que a tenham desejado, sem que a tenham pedido; e nessa mudança existem uma grande beleza e uma percepção imediata e profunda.


Colocar os Véus de Lado
 
De que forma ouvem? Ouvem com as vossas projeções, através da vossa projeção, através das vossas ambições, desejos, medos, ansiedades, ouvindo apenas aquilo que desejam ouvir, apenas aquilo que vos satisfará, que será gratificante, que proporcionará conforto, que irá aliviar, no momento, o vosso sofrimento? Se ouvirem através do véu dos vossos desejos, então estão obviamente a ouvir a vossa própria voz, estão a ouvir os vossos próprios desejos. E haverá alguma outra forma de ouvir? Não será importante descobrirmos como ouvir não apenas o que está a ser dito, mas tudo — os ruídos da rua, o chilrear dos pássaros, o barulho do elétrico, o mar revolto, a voz do vosso marido, a vossa mulher, os vossos amigos, o choro de um bebê? O ouvir só é importante quando não estamos a projetar os nossos próprios desejos naquilo que estamos a ouvir. Será possível colocarmos de lado todos estes véus através dos quais ouvimos, e sermos capazes de ouvir realmente?


 Para Além do Ruído das Palavras
 
Ouvir é uma arte a que não se chega facilmente, mas nela residem uma grande beleza e uma grande compreensão. Ouvimos com várias profundidades do nosso ser, mas o nosso ouvir tem sempre lugar a partir de uma concepção prévia ou de um determinado ponto de vista. Não ouvimos simplesmente; está sempre lá a intervenção do véu dos nossos próprios pensamentos, conclusões e preconceitos... Para ouvirmos, necessitamos de uma quietude interior, de estarmos libertos da pressão da aquisição, uma atenção descontraída. Este estado de atenção passiva é capaz de ouvir o que está para além da conclusão verbal. As palavras confundem; são apenas os meios exteriores de comunicação; mas para se conversar intimamente, para além do ruído das palavras, deve haver no ouvir uma passividade alerta. Aqueles que amam podem ouvir; mas é extremamente raro encontrar um ouvinte. A maioria de nós anda atrás de resultados, da consecução de objetivos; estamos eternamente a superar e a conquistar, e com tal não conseguimos ouvir nada. É somente no ouvir que escutamos a melodia das palavras.


Ouvir sem Pensamento

Não sei se alguma vez ouviram um pássaro. Ouvir alguma coisa exige que a nossa mente esteja silenciosa — não um silêncio místico, silêncio simplesmente. Estou a dizer-vos algo e, para me ouvirem, têm de estar silenciosos, e não com todo o tipo de ideias a zunirem na vossa mente. Quando olham para uma flor, olham para ela, sem estarem a dar-lhe um nome, sem a estarem a classificar, sem dizerem que ela pertence a determinada espécie — quando o fazem, deixam de a ver. Assim, o que vos digo é que ouvir é uma das coisas mais difíceis — ouvir o comunista, o socialista, o deputado, o capitalista, qualquer pessoa, a vossa mulher, os vossos filhos, o vosso vizinho, o pássaro — apenas ouvir. É só quando ouvem sem nenhuma ideia, sem pensamento, que estão em contacto direto; e ao estarem em contato percebem se aquilo que o outro está a dizer é verdadeiro ou falso; torna-se desnecessário discutir. 


Ouvir Traz Liberdade
 
Quando vocês fazem um esforço para ouvir, estão a ouvir? Não será esse mesmo esforço uma distração que não permite que se ouça? Fazem algum esforço quando escutam algo que vos deleita?... Vocês não podem estar conscientes da verdade nem ver o falso como falso enquanto a vossa mente estiver de alguma forma ocupada com o esforço, com a comparação, com a justificação ou com a condenação...
 
Ouvir é um ato completo em si mesmo; o ato de ouvir traz, em si mesmo, a sua própria liberdade. Mas será que vocês estão verdadeiramente preocupados com o ouvir, ou em alterar o vosso tumulto interior? Se fossem capazes de ouvir... no sentido de estarem conscientes dos vossos conflitos e contradições sem os forçarem a moldar-se a um qualquer padrão de pensamento em particular, talvez eles cessassem completamente. Compreendem, nós estamos constantemente a tentar ser isto ou aquilo, atingir um determinado estado, ter um determinado tipo de experiência e evitar outro, de forma que a mente está continuamente ocupada com algo; nunca está suficientemente tranquila para ouvir o ruído das suas próprias lutas e dores. Sejam simples... e não tentem tornar-se algo ou obter determinada experiência.


Ouvir sem Esforço

Vocês estão, neste momento, a ouvir-me, não estão a fazer um esforço para prestar atenção, estão apenas a ouvir; e se houver verdade no que estão a ouvir, descobrirão uma mudança notável a ter lugar em vós — uma mudança que não é premeditada ou almejada, uma transformação, uma revolução completa na qual só a verdade pontifica e não as criações da vossa mente. E se me é permitido sugeri-lo, digo-vos que devem ouvir tudo dessa forma — não apenas o que eu estou a dizer, mas também aquilo que outras pessoas dizem, os pássaros, o silvo de uma locomotiva, o ruído do carro que passa. Descobrirão que quanto mais forem capazes de ouvir tudo, maior será o silêncio, e esse silêncio não é, então, quebrado pelo ruído. E somente quando vocês criam resistência em relação a algo, quando erguem uma barreira entre vós e aquilo que não desejam ouvir — c só nesse momento que existe uma luta. 


Ouvirem-se a Vós Mesmos
 
Questionador: Enquanto me encontro aqui a ouvi-lo, parece que compreendo, mas quando estou longe daqui, não compreendo, embora tente aplicar o que o senhor tem estado a dizer.
 
Krishnamurti: Está a ouvir-se a si mesmo, e não o orador. Se estiver a ouvir o orador, ele torna-se o seu líder, a sua forma de conseguir compreender — o que é um horror, uma abominação, porque então terá estabelecido a hierarquia da autoridade. Portanto, o que está a fazer aqui é ouvir-se a si mesmo. Está a olhar para o quadro que o orador está a pintar, que é o seu próprio quadro, não o do orador. Se isto estiver claro, que está a olhar para si próprio, então poderá dizer: «Bom, vejo-me tal como sou, e não quero fazer nada a respeito disso» — e fica tudo por aí. Mas se disser: «Vejo-me tal como sou, e tem de haver uma mudança», então começará a trabalhar a partir da sua própria compreensão — o que é inteiramente diferente de pôr em prática o que diz o orador... Mas se, à medida que o orador vai falando, estiver a ouvir-se a si mesmo, então, a partir desse ouvir haverá clareza, haverá sensibilidade; a partir desse ouvir a mente torna-se saudável, forte. Sem obedecer e sem resistir, ela torna-se viva, intensa — e só um tal ser humano pode criar uma nova geração, um novo mundo.


Olhar com Intensidade
 
... Parece-me que aprender é surpreendentemente difícil, tal como o é também o ouvir. Nunca ouvimos nada verdadeiramente, porque a nossa mente não está livre, os nossos ouvidos estão entupidos com as coisas que já conhecemos, e portanto o ato de ouvir torna-se extraordinariamente difícil. Penso — ou melhor, é um facto — que se conseguirmos ouvir algo com todo o nosso ser, com vigor, com vitalidade, então o próprio ato de ouvir torna-se um fator libertador, mas infelizmente vocês nunca ouvem realmente, pois nunca aprendem a fazê-lo. Afinal, só aprendem quando oferecem todo o vosso ser a algo. Quando vocês se entregam com todo o vosso ser à matemática, aprendem, mas quando se encontram num estado de contradição, quando não querem aprender, mas são forçados a fazê-lo, nessas circunstâncias a aprendizagem torna- se um mero processo de acumulação. Aprender é como ler um romance com inúmeras personagens; requer a vossa total atenção, não uma atenção contraditória. Se quiserem conhecer uma folha — uma folha primaveril ou uma folha estival — devem olhá-la verdadeiramente,ver a simetria que há nela, a sua textura, a qualidade da folha vivente. Existe beleza, existe vigor, existe vitalidade numa simples folha. Portanto, para conhecerem a folha, a flor, a nuvem, o pôr-do-sol ou um ser humano, têm de olhar com toda a intensidade.

J. Krishnamurti, O Livro da Vida - Reflexões de Um dos Maiores Pensadores do Nosso Tempo


Li, certa vez, que quando tivermos de fazer algo, por mais simples que seja, devemos fazê-lo com intensidade, com todas as células do corpo, com todos os átomos do corpo, devemos estar totalmente presentes na ação. Se assim o fizermos aquilo está terminado, não volta, não ficará vestígios, foi totalmente realizado. Suponho que ouvir, falar, sentir, apalpar e olhar deve ser realizado com total intensidade; o ser deve estar presente integralmente em todos os órgãos dos sentidos. 

 

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